As Deusas de François Truffaut

François Truffaut –  “As mulheres, tal como Truffaut as descreve, muitas vezes existem menos como presença (em) (a) (para) si mesmas do que como realização das visões masculinas. Primeiramente, os homens e espectadores percebem a imagem, em seguida a mulher que a encarna” Annette Insdorf (1)   Mais complexas do que alguns homens imaginam Antipáticas e atraentes, destrutivas e aconchegantes, dominadoras e conciliadoras, desesperadamente loucas e desesperadamente apaixonadas. A lista de qualidades das personagens femininas que Annette Insdorf encontrou em filmes de Truffaut sugere que ele foi capaz de compreender que o contraditório é um traço básico que elas compartilham com os homens! (2). Antoine Doinel, personagem/alter ego do cineasta em vários de seus filmes, vivia se questionando e perguntando para todo mundo se as mulheres são mágicas. Insdorf acredita que a esta poderia somar-se pelo menos mais duas perguntas: as mulheres são vulneráveis? Elas são mais complexas do que os homens supõem? Para Insdorf, levando-se em consideração os tipos femininos criados por Truffaut, a resposta é sim. Ainda de acordo com Insdorf, a coexistência de diversas personalidades numa mesma mulher é um padrão tão recorrente em Truffaut que o “duplo” é uma presença marcante em sua obra. Por um lado, temos os filmes onde um personagem masculino sente-se atraído por duas figuras femininas complementares. É o caso de Thérésa/Léna em O Tiro no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960), Franca/Nicole em Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), Linda/Clarisse (interpretadas pela mesma Julie Christie) em Fahrenheit 451 (1966), Christine/Fabienne em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Christine/Kyoko em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e Anne/Muriel em As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971). Por outro lado, existem também aqueles filmes em que as mulheres possuem pelo menos duas facetas. É o caso de Catherine em Jules e Jim (Jules et Jim, 1962), Julie/Marion em A Sereia do Mississippi (La Sirene du Mississipi, 1969), Julie/Pámela em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) e Adèle/Madame Pinson em A História de Adèle H (Adèle H, 1975). A obra de Truffaut gira em torno das relações entre os adolescentes e sua deusa. Insdorf sugere que a atitude do cineasta em relação aos personagens femininos se assemelha à dos pivetes. Outro tema recorrente é o movimento que vai da adoração (Bernadette em Os Pivetes, Les Mistons, 1957) ao ressentimento (Théresa e Léna em O Tiro no Pianista, e Catherine em Jules e Jim, morrem; poderíamos incluir a mãe de Antoine em Os Incompreendidos, já que ele desejou a morte dela), passando pelo testemunho da morte do herói/rival (em Um Só Pecado, Fahrenheit 451, A Noiva Estava de Preto e A Sereia do Mississipi, as esposas destroem os homens, Linda sendo a menos direta), chegando ao distanciamento (Camille Bliss e Adèle H) (3). Jean-Luc Godard, o pierrô? Julie Kohler e Camille Bliss: múltiplas personalidades Cinco homens diferentes equivalem a cinco maneiras distintas de perceber uma mulher, ou poderia ser a descrição de cinco maneiras diferentes dessa mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos Para cada um de seus pretendentes, Julie em A Noiva Estava de Preto (La Mariée Était en Noir, 1967) e Camille em Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une Belle Fille Comme Moi, 1972) apresentam cinco personalidades. Adaptações de dois romances distintos, as duas se encaixam na obra de Truffaut como mulheres fatais. Num sentido literal, Julie é extremamente moral e mata por vingança, enquanto Camille é amoral e mata por prazer. Um pouco antes, Bernadette Lafont (a atriz que interpreta Camille) foi o fetiche de cinco garotos em Os Pivetes. Eles a seguem e chegam a hostilizar o namorado dela até que descobrem a respeito da morte do rapaz. No final, ao vê-la passar vestida de preto, os garotos já não sentem prazer. Na opinião de Insdorf, A Noiva Estava de Preto retoma esse filme onde ele parou: o que acontece com a mulher depois da morte do homem que ela amava – com Julie, o amor frustrado se transforma em hostilidade. Seus pretendentes são mais velhos, mas não menos ingênuos assegura Insdorf. De fato, Insdorf acredita que em Uma Jovem Tão Bela Como Eu pode-se dizer que Bernadette se vinga dos garotos de Os Pivetes. A culpabilidade masculina é o contexto de A Noiva Estava de Preto, clichê da mulher que imagina ganhar o amor de um homem adaptando-se ao modelo de mulher ideal dele, ela se insinua na vida de seus cinco pretendentes/vítimas, encarnando os sonhos de cada um. Truffaut explicou que através desses cinco homens poderia descrever cinco maneiras de perceber as mulheres, mas era também um meio de descrever cinco maneiras de uma mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos. Cinco homens diferentes entre si (a única ligação é o interesse comum pela caça, e também pela caça às mulheres), aquilo que os une é o que assombra Truffaut: acreditar no ideal para além do imediato, no eterno para além do efêmero, na deusa sonhada para além da mulher. E cada um deles será punido por isso. Insdorf mapeia o perfil das vítimas de Julie, mostrando os pontos fracos decorrentes das ilusões deles. Playboy prestes a se casar, Bliss (mesmo sobrenome de Camille, em Uma Jovem Tão Bela Como Eu) enxerga Julie como um possível conquista. Ela aparece misteriosamente vestida de branco. Julie é evasiva, acreditando que está apaixonada por ele, Bliss se apaixona por ela. Solteiro e sentimental, Coral é tímido e solitário (o que o assemelha a Charlie Kohler, segunda personalidade de Edouard Saroyan em O Tiro no Pianista). Julie se transforma no alimento romântico dos sonhos dele, uma mulher ideal que Coral imagina destinada a ele. Aspirante a político, Bertrand está fechado em sua complacência e pretensão, incapaz de enxergar mais longe do que seus interesses mesquinhos. Ele parece satisfazer-se com o papel de mulher servil de Julie, a mulher como um bibelô conveniente. Artista e playboy, Fergus faz dela seu próprio molde particular de uma deusa. Fazendo-a posar como Diana a caçadora, ele não … Continue lendo As Deusas de François Truffaut