Jean-Luc Godard, o pierrô?

por Roberto Acioli de Oliveira “(…) O clichê da arte burguesa no século 19 foi que ela denunciava a burguesia; no final do século 20, equivalente gesto é criar um belo bem   de   consumo que  denuncie  o consumismo” (1)   Burguesia Estúpida se Explodindo Godard – Ferdinand está fugindo de uma existência burguesa estúpida ao lado de sua amante de espírito livre. Marianne o acompanha em sua fuga pelo sul da França, a caminho de uma utopia que eles nunca encontram. No começo do filme vemos Ferdinand lendo para sua filha. A seguir ele está se vestindo para uma festa onde, como ressalta sua esposa, ele deve se comportar apropriadamente para impressionar potenciais empregadores – já que Ferdinand recentemente foi demitido ou se demitiu de seu emprego na televisão. A babá, supostamente a sobrinha de amigos que acompanham Ferdinand e sua esposa à festa, é Marianne. O clima da festa evidencia a esterilidade da existência de Ferdinand, o que precipita sua partida. Ele oferece carona para Marianne, mas na verdade ambos já estão envolvidos. É o ponto de ruptura na vida de Ferdinand e o ponto de partida para o que será um voo permanente em relação à sua vida em Paris, a Família, a Lei, aos inimigos… Terminando apenas com a morte dos dois. Ferdinand não sabe o que quer   ou   para  onde  ir,  ele conseguiu  fugir  de  sua  vida burguesa, mas não consegue preencher o vazio com vida No relacionamento com Ferdinand, que ela prefere chamar (para descontentamento dele) de Pierrô, Marianne parece continuamente aumentar as apostas em termos de suas expectativas em relação a ele. Mas Pierrô nunca parece saber o que realmente deseja e parece impotente para buscar seja o que for. Desde o começo ele estava à deriva até ser arrastado para a esfera de influência de Marianne, uma coisa que aconteceu basicamente por acaso – a realidade simplesmente se apresentou a ele. Com o tempo, as coisas vão mudando de rumo. Ao demonstrar sua frustração pela incapacidade de segurar aquela mulher (e sob o pretexto da infidelidade), Pierrô mata Marianne – liga para a esposa em Paris, mas não consegue nada. Então pinta seu rosto de azul, amarra dinamite na cabeça. Naquilo que poderia ser considerado como seu primeiro e último ato decisivo, ele tenta apagar o pavio. Acaba explodindo numa bola de fogo. As Deusas de François Truffaut Todo o Godard, entre o bandido e o pierrô Segundo a censura da época, um filme que incita  ao  anarquismo moral e intelectual O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965) é o resultado da adaptação de Obsession, romance de Lionel White. Em seu lançamento, a censura o interditou para menores de 18 anos devido a seu “anarquismo intelectual e moral”. O título original em francês refere-se ao mesmo tempo a dois personagens. Primeiramente, ao bandido Pierre Loutrel, cujo fim foi tão patético quanto o de Ferdinand. Em segundo lugar Pierrô, o personagem lunar da comedia dell’arte, que aqui representa a inocência violada e o amor traído. Essa dualidade caracteriza (além da forma como Godard se situa em relação a seu caso com a atriz/esposa Anna Karina) um filme onde o desdobramento é um dos motivos principais. Duplo nome do personagem interpretado por Jean-Paul Belmondo (Ferdinand/Pierrô); duplo gênero (a fuga dos amantes criminosos/romantismo tipo Robinson Crusoé); vida dupla (comum/sonhada); dupla linguagem (publicitária/poética); lógica dupla (homem/mulher); dupla cor (azul/vermelho) (2). O Demônio das  Onze  Horas  foi feito durante os “anos Anna Karina” Na opinião do crítico francês Jacques Mandelbaum, O Demônio das Onze Horas recapitula todos os filmes anteriores de Godard, da traição feminina em Acossado (A Bout de Souffle, 1960), até ao isolamento de O Desprezo (Le Mépris, 1963), passando por Uma Mulher é Uma Mulher (Une Femme Est Une Femme, 1961), Viver a Vida (Vivre sa Vie, 1962), Alphaville (1965), assim como prefigura aqueles que ainda estão por vir – como Masculino-Feminino (Masculin Féminin: 15 Faits Précis, 1966), A Chinesa (La Chinoise, 1967), etc. A periodização do filme (o abandono da criança, a ruptura com a sociedade, o isolamento na ilha, a seguir o retorno ao palco para celebrar o sol negro da melancolia e a estrela morta do cinema) parece oferecer a esse respeito uma visão fulgurante das modalidades ao mesmo tempo existenciais e estéticas que em breve Godard irá empregar. O período de O Demônio também é referido como os “anos Anna Karina”, por conta da presença da atriz/esposa dinamarquesa. Uma relação que irá estruturar a obra de Godard de 1960 a 1967, fase também de maior êxito comercial do cineasta (3). Bandidos e burgueses O Demônio  das Onze Horas e Acossado se complementam O cineasta norte-americano Samuel Fuller, mestre dos filmes de baixo orçamento, aparece na festa surpresa de Monsieur e Madame Espresso. Nesta cena ficamos sabendo por que Ferdinand resolve abandonar sua família e ir para a estrada com uma mulher com quem tivera um caso no passado. A presença do cineasta aqui não está articulada a nenhuma função narrativa, ele serve apenas para contrastar as pessoas na festa. Enquanto Fuller se refere ao cinema como “um campo de batalha”, repetem slogans comerciais ao seu lado. Segundo Willians, a oposição nesta cena se dá entre o cinema de Fuller (cineasta um tanto individualista e marginal) e a sociedade de consumo (4). Marianne chama seu amante de Pierrô, ao que ele sempre retruca, “meu nome é Ferdinand”. Quem sabe ela insiste nisso porque Ferdinand é o nome de um touro selvagem covarde da literatura infantil. Noutra oportunidade ela comenta sobre um autor quase homônimo, Louis-Ferdinand Céline. Entretanto este foi um modernista de direita notório, cuja política era similar (embora mais extrema do que) a Sam Fuller e que contava estórias de outsiders solitários fazendo uma “jornada para o final da noite”. No caso de Marianne, ela aparece justaposta com Retrato de Uma Garotinha, de Auguste Renoir – Marianne… Renoir”. A outra referência é a Marianne, o mítico espírito da Liberdade durante a Revolução Francesa. Nesse último caso, seu nome … Continue lendo Jean-Luc Godard, o pierrô?