Se isso é cinema de poesia, poderíamos dizer que seria também um auto-retrato neurótico? Prenúncio de Uma Revolução? Pasolini – Ao iniciar as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Pier Paolo Pasolini já havia realizado dois longas-metragens, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), e mais um média-metragem, A Ricota (La Ricotta, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1963), havia também elaborado muitos roteiros. Além de uma grande preocupação com a tradição pictórica clássica, seu estilo misturava o interesse pelo real com uma visão crítica em relação ao Neorrealismo. Neste início da carreira de Pasolini como cineasta, Stéphane Bouquet ressaltou uma curiosa hibridação. Os “pobres coitados” (poveri cristi) da periferia de Roma tinham suas vidas contadas através de um estilo com muitas referências à pintura da primeira Renascença florentina (Masaccio) ou aos maneiristas italianos (Pontormo, Rosso Fiorentino). Inicialmente, em O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini pensava utilizar os mesmos princípios: filmar picturalmente as paisagens miseráveis do sul da Itália em busca daquilo que definiu como uma espécie de “sacralidade técnica” (1). O Evangelho Segundo São Mateus não é apenas “mais um filme religioso”, uma espécie de acidente de percurso na obra de um pensador caótico. O título original do filme omite (como o faz o próprio Evangelho) o “São” adicionado na versão norte-americana, uma distorção que desagradava Pasolini (2). De fato, o filme foi incluído na lista de filmes aprovados pelo Vaticano – sendo o primeiro filme italiano a consegui-lo. Pasolini nunca escondeu seu ateísmo e marxismo, embora não fosse ortodoxo em nenhum dos dois casos. A história da produção é complexa. Em outubro de 1962, na condição de convidado em Assis da Pro Civitate Christiana, uma instituição atenta às tendências liberais e de esquerda na promoção da cultura católica na Itália contemporânea, Pasolini leu o Evangelho que encontrou em sua cabeceira. Numa troca de cartas com seu produtor Alfredo Bini e membros da Pro Civitate, Pasolini descreveu sua impressão do texto em termos que conotavam um senso de religiosidade, intercambiável em sua mente com uma revelação estética. Tendo em vista tal entusiasmo por parte de uma figura famosa, ainda que de má reputação, os diretores do escritório de cinema da Pro Civitate, sob consulta de padres, teólogos e especialistas na bíblia (que avaliaram também o tratamento da Crucificação em A Ricota) concordaram em apoiar o projeto de Pasolini. O líder da Igreja Católica de então era o Papa João XXIII, a quem Pasolini dedicou O Evangelho Segundo São Mateus. Tal atitude partindo de um católico não praticante anticlerical evidencia a postura de João XXIII, que se abriu ao anticolonialismo, à esquerda, a cooperação entre as diferentes ideologias, a justiça social e a luta no Terceiro Mundo. A Pro Civitate Christiana financiou uma expedição à Palestina, que resultou no documentário Locações na Palestina (Sopralluoghi in Palestina, 1963-1965) (3). Em relação a seu filme anterior, A Ricota, um conselheiro da Pro Civitate Cristiana confirmou que não manifesta desprezo, mas sim uma séria exploração contemporânea do tema. Na opinião de Noa Steimatsky, de fato apenas uma análise superficial sugeriria que o filme parece “desconsagrar” (profanar, secularizar) (4). A primeira coisa que surge na lembrança dos conhecedores de Pasolini é o conceito de Cinema de Poesia, mas ao que parece poucos sabem que foi em função das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus que surge a tese. Outro elemento central no pensamento de Pasolini que deve muito ao trabalho neste filme é sua relação com o passado, bastante problematizado pelo cineasta-poeta em sua denúncia da perda dos valores tradicionais na sociedade moderna consumista. Trabalhos como A Ricota (onde um ator faminto, cujo personagem é um dos ladrões crucificados com Cristo, se encontra atormentado pela indiferença da indústria cinematográfica que, mesmo produzindo um filme sobre a Crucificação, não é capaz de perceber a Paixão quando presencia uma) e Teorema (onde o anjo-Cristo passa sua mensagem através do ato sexual) (5) são dois exemplos dos desdobramentos possíveis da mensagem de Cristo segundo Pasolini. Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury O arcaico na modernidade Antes de filmar O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini partiu em busca de locações na terra onde tudo teria acontecido. Pesquisa que foi registrada no infelizmente pouco conhecido documentário Locações na Palestina. Embora não estivesse surpreso, Pasolini ficou desapontado com o aspecto industrial moderno de Israel. Mais impressionante foi sua descoberta das dimensões modestas dos lugares santos – como disse Pasolini na época, tudo cabia na palma de sua mão. A diferença entre o aspecto humilde do local real e a sombra grandiosa do mundo arcaico na Bíblia aprofundou a noção de contaminação, já utilizada por Pasolini: “A contaminação [entre] humildade e grandeza talvez descreva, num nível mais fundamental, a impregnação de restos arqueológicos reais – aparentemente apenas ‘fragmentos miseráveis’ espalhados, poeirentos – por uma carga mítico-visionária cuja pretensão de autenticidade e valor é de uma ordem completamente diferente daquela das próprias ruínas” (6). Na contaminação, uma paisagem de pobreza e ruínas, as suntuosas riquezas da arte cristã, o contemporâneo e o arcaico, o real e o fantasmático, se cruzam e interpenetram sem neutralizarem um ao outro. Em outras palavras, ao invés de utilizar a evidência arqueológica para destruir o dogma teológico, Pasolini abraçou ao mesmo tempo a concretude material dessa evidência e a grande ressonância do mito. Em Accattone -Desajuste Social, Pasolini já havia utilizado a contaminação (quando Accattone luta com o irmão de Ascenza ao som da Paixão Segundo São Mateus, bwv 244, de Johann Sebastian Bach). De acordo com Pasolini, no caso de Locações na Palestina, filmado na Galiléia, Jordânia e Síria, a contaminação é imanente à própria paisagem. A impressão dominante, repetidamente articulada neste documentário que coleciona locações para O Evangelho Segundo São Mateus, é da humildade – este é o termo utilizado por Pasolini – dos locais que o Evangelho determina como o grande palco da pregação e Paixão de Jesus. Do ponto de vista da contaminação, a paisagem pobre e em ruínas se deixa penetrar pelas … Continue lendo O Evangelho segundo Pasolini
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