Quando Fellini sonhou com Pasolini

por Roberto Acioli de Oliveira “Desse ponto em diante,  podemos dizer que para Fellini a vida é sonho” Tullio Kezich, a respeito da influência de Jung sobre o cineasta (1). Súbito Vazio Psíquico Fellini e Pasolini – O ano era 1954, restavam apenas vinte dias para a conclusão das filmagens de A Estrada da Vida (La Strada). Federico Fellini mergulhou numa profunda depressão que descreveria mais tarde como uma explosão, um súbito vazio psíquico. Anos depois, Fellini ainda se referia ao episódio como “uma espécie de Chernobyl psíquico”. Subitamente, todas as ansiedades dos tempos de criança reaparecem. Na época Fellini escondeu o fato, temendo que Dino De Laurentiis, o produtor do filme, cancelasse todo o projeto. Giulietta Masina, sua esposa, percebeu o que estava acontecendo mesmo que Fellini tenha tentado esconder dela também. Muitas noites de insônia passaram a povoar o cotidiano do cineasta, que vivia em constante temor do colapso total. Giulietta chamou um psicanalista. Na primavera de 1954, a chegada de Emilio Servadio na casa de Fellini marca a entrada oficial da psicanálise no mundo do cineasta italiano. “É como se alguém, sem qualquer aviso, apagasse as luzes subitamente”  Federico Fellini sobre depressão (2). A psicanálise, conclui Tullio Kezich, crítico de cinema do jornal Corriere della Sera, entra na vida de Fellini como um pronto-socorro, não como um interesse intelectual. Servadio sugere que o cineasta se acalme e siga com as filmagens, terminar o filme era essencial. Fellini iniciou o tratamento após a estreia de A Estrada da Vida, mas disse que só compareceu a duas sessões e não gostou da relação entre paciente e analista. O som do relógio que marcava o final de cada sessão era como um regulamento burocrático e achou o divã sufocante. Certo dia, Servadio vê seu paciente correr para a janela do consultório à procura de ar. A tempestade de verão que desabava lá fora foi a desculpa do cineasta para escapar. Muito tempo depois, Servadio questionou a versão dos fatos fornecida por Fellini. Foram mais de duas sessões, e não foram inúteis. Não havia uma tempestade naquele dia, embora tenha ocorrido algo realmente importante: Fellini era um caso clássico de “fuga para a cura”(3).  O Insaciável Dragão de Fellini “Uma mulher possui uma mensagem, e o prazer da vida está na espera  pela  mensagem, não pela mensagem propriamente dita” Fellini (4). Fosse real ou imaginária, o que aconteceu durante essa tempestade? Fellini disse que se refugiou numa árvore, quando surgiu uma lindíssima mulher com um guarda-chuva oferecendo abrigo. Ela parecia ter saído de uma revista de moda! Ela passará a ser identificada como a “mulher felliniana” por excelência. Depois da chuva, o casal continuou a se encontrar e separar durante alguns anos. As mulheres sempre foram importante assunto na vida de Fellini. Ele estava sempre fazendo piadas sobre sexo e considerava o amor uma “feliz obsessão”. Vivia desenhando cenas eróticas e pornográficas em guardanapos de papel, mas seus amigos costumavam dizer que Fellini “fala muito e faz pouco”. O cineasta respondia ameaçando expor seu “insaciável dragão” escondido dentro da calça! Ainda assim, Kezich garante que nada seria capaz de abalar os laços de seu casamento com Giulietta Masina (5). “A traumática iniciação sexual do jovem Fellini foi num bordel e teria gerado  uma intratável “ansiedade em relação ao sexo” (6). De acordo com Kezich, Fellini só foi infiel a Giulietta Masina duas vezes: com Lea Giacomini e Anna Giovannini. Lea chegou a ameaçar o casamento, ele não resistia à sensualidade dela. Baseado em conversas e meias confissões que obteve, Kezich sugeriu que Lea inspirou a criação de Emma – a namorada de Marcello Rubini, em A Doce Vida (La Dolce Vita, 1959). Insegura ao extremo, Marcello se vê obrigado a provar incessantemente que a ama, embora não aprove a concepção que ela tem de um relacionamento afetivo. Emma tentará se suicidar. Kezich definiu Lea como uma “personalidade difícil”. Alguns sugerem que a cena em que (para variar) o casal estava brigando teria sido baseada em fato real. Marcello acaba mandando ela embora numa estrada deserta. Em seguida, a chama de volta, ela não quer voltar para o carro. Mas então volta, e aí começa outra discussão. Desta vez Marcello a expulsa de vez do carro. É quase dia quando ele volta para buscá-la. Os dois, este é o ponto, são irredutíveis. Para cada um, apenas a fantasia do outro é que é uma fantasia! O detalhe é que os gritos e argumentos de Emma não teriam sido nada perto da reação violenta de Lea – que apedrejou o carro de Fellini. Marisa, o “trem sexual” de A Voz da Lua (La Voce della Luna, 1990), também parece ter sido inspirada pela exuberância de Lea – ainda que nessa época ela já tivesse morrido num hospital psiquiátrico. Segundo Kezich, os únicos rastros conhecidos de Lea são alguns desenhos feitos por Fellini. Lea era passional e violenta. Fellini reagiu da única forma que sabia, criou Emma, uma personagem de A Doce Vida, insegura ao extremo e suicida. O caso com Anna Giovannini seria ainda mais intenso e longo. Fellini a chamava de la Paciocca – uma pessoa carnuda e animada. Foi em 1957, e ela largou seu emprego de caixa numa farmácia a pedido dele – para ficar disponível. Kezich afirma com certeza que Anna e sua voluptuosa figura foram o modelo para Carla, a espirituosa e charmosa amante de Guido Anselmi em Fellini 8½ (Otto e Mezzo, 1963). Apesar da intensidade do caso, Anna nunca ameaçou o casamento do cineasta, mesmo que Giulietta – alertada por almas bem-intencionadas de plantão – estivesse enciumada. Existe até uma referência ao caso em Julieta dos Espíritos (Giulietta Degli Spiriti, 1965), na cena em que Giorgio, o marido infiel, é seguido e filmado por um detetive. Anna inspirou a criação de Carla, que parecia mais independente do que ela. De acordo com Anna, em nome de seu amor Fellini a “rodeava com nada” (7). Fora Lea e Anna, Kezich disse que a vida secreta do cineasta estava mais para o cômico. Disse também que Fellini adorava “atuar” em seus flertes como o grande sedutor – que ele … Continue lendo Quando Fellini sonhou com Pasolini