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Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

Um pouco sobre a ética em tempos de cólera

           por Fernando do Valle Espantoso como a falsa moral e bons costumes da elite brasileira, que sonega bilhões e corrompe o Estado há séculos, é incorporada bovinamente no discurso da classe média. Impossível acreditar que “honestos” empreiteiros, industriais, CEOS, diretores de empresa foram ludibriados por Lula, o “ladrão operário que fala palavrão e que vai mofar na prisão” (discurso rápido ouvido em elevador). Ingênuos os muitos que acreditaram na conciliação de classes em um país ainda profundamente desigual. Lula perpetuou velhas relações promíscuas do Estado com alguns empreiteiros do 0,1% que controla a grana e agora está escancarado o modo irresponsável como essas empresas operam. Em uma das ligações da República Federativa dos Grampos, vulgo Brasil, Marcelo Odebrecht chamou o ex-presidente de Brahma, quem mandou Lula bicar o Blue Label que embala os papos da alta roda, Odebrecht deu a senha, lugar de operário é no boteco tomando cachaça e cerveja. Não sei se Eduardo “Caranguejo” Cunha, evangélico que é, entorna Blue Label, convidado com certeza é, mas sempre soube seu lugar. O mundo político foi mais uma vez abalado com uma lista de 316 políticos de 24 partidos  que receberam dinheiro da construtora Odebrecht nas eleições de 2012 e 2014. O grande capital compra políticos no varejo e ainda os apelida na planilha com nomes hilários: Jaques Wagner é o Passivo, Eduardo Cunha, o Caranguejo, Renan Calheiros o Atleta, Eduardo Paes o Nervosinho, José Sarney o Escritor, Humberto Costa o Drácula, Lindbergh Farias o Lindinho e Manuela D’Ávila o Avião e por aí vai. Na lista, não constam Brahma e Dilma.  “A “boa consciência” das classes privilegiadas torna-se perfeita, já que o problema está sempre longe, na corrupção estatal, por exemplo, permitindo uma perfeita legitimação de práticas cotidianas de exploração e humilhação” (Jessé Souza em “A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite”, página 156). O mais tragicômico entre os inúmeros grampos ilegais do juiz Sérgio Moro mostra o prefeito olímpico Eduardo Paes, o Nervosinho, sem papas na língua, criticando a “alma de pobre” do ex-presidente que frequenta sítio e compra barquinho. Lula ri do outro lado da linha. Quem está rindo também são empresários, muitos deles encastelados na Fiesp, que enxergam na crise política a oportunidade de guindar ao posto mais alto do executivo um político mais alinhado aos seus interesses. Para isso distribuem filé mignon a manifestantes a favor do impeachment, se a estratégia der certo, mais tarde a classe média “que luta contra a corrupção” vai engolir acém moído. Se reclamarem, tropa de choque a postos, dessa vez sem selfie. Mas então Lula não tem culpa de nada? É um santo? Pode perguntar a dona de casa com a camiseta da impoluta CBF. O boquirroto Ciro Gomes sempre acusa seu amigo Lula de ter “vocação para virar Deus”. Dizia o capeta na pessoa de Al Pacino no final do filme Advogado do Diabo que a vaidade é um dos seus pecados preferidos. Quem não se lembra de 2007, 2008, enquanto o mundo se afogava na crise financeira, vivíamos uma vibração positiva no país, como se nossas diferenças tivessem sido colocadas debaixo do tapete e o Brasil encontrado seu destino glorioso. Lula só não saiu da presidência em 2010 elegendo uma ministra pouco conhecida, como era aprovado por 83% da população. Mais: 84% dos brasileiros acreditavam que o país estava melhor. Quem não ficaria vaidoso que atire a primeira pedra. Mas boa parte da classe média que engoliu Lula por um período o regurgita agora com doses maciças de preconceito e ódio, teleguiados por uma imprensa torpe e grupos organizados da direita com as burras cheias de dólares. Em uma catarse triste, muitos agora sentem-se à vontade para gritar pela janela que Lula é vagabundo e analfabeto. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão” (Cláudio Abramo). Há sempre legitimidade no protesto movido pelo descontentamento contra qualquer governo, mesmo o mais empedernido governista não pode fechar os olhos aos repetidos erros de Dilma nos últimos meses que desembocaram em uma difícil situação econômica e uma forte rejeição ao seu governo, mas se a crítica é contaminada por um discurso excludente, ela não é direcionada aos equívocos de Dilma e sim às mudanças que beneficiaram parcelas da população mais pobre no quadro social brasileiro, que permaneceu praticamente inalterado por décadas. Sonho que um pouco dessa indignação contra Lula se voltasse a favor de demandas justas e necessárias. Antes de Lula assumir a presidência, jamais vi parte da classe média conservadora se indignar contra a fome, a desigualdade, a violência policial, a barbárie da situação carcerária brasileira. E pelo jeito, continuam os mesmos, e ainda mais raivosos. Do outro lado, talvez a mobilização do protesto do dia 18 de março sirva para alguma mudança na correção dos rumos do governo que não cansa de agradar a plutocracia que manda neste país e já provou que não tem fidelidade a ninguém, só a seus interesses privados. Lula nunca foi revolucionário e propunha reformas em junho de 2002 na Carta ao Povo Brasileiro , muitas delas não cumpridas ou cumpridas em parte. É inegável o aprimoramento de certas instituições, como da Polícia Federal (apesar de certos abusos) e da Procuradoria Geral da República nos últimos anos. O ex-chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, afirmou em entrevista “que Lula sempre dizia: daqui pra frente, quem não quiser ser investigado no governo, que não erre. Doa quem doer. Eu me lembro da nossa dor quando o José Dirceu, o [Antonio] Palocci foram investigados”. Agora observamos a força do injusto pacto social intermediado por muitos políticos sem caráter. No início da Operação Lava Jato, a prisão de empreiteiros trazia a falsa esperança de que os poderosos fraudadores e sonegadores não eram mais inatingíveis, mas agora o sistema tenta

Honduras ainda sob o golpe

por Elaine Tavares Na madrugada do dia 3 de março mais uma lutadora social tombou em terras hondurenhas. Berta Cáceres, ecologista e ativista dos direitos humanos foi assassinada dentro de sua casa, em La Esperanza, por mercenários encapuçados. Nos jornais locais, Berta apenas engordou as estatísticas de crimes políticos que vem sendo cometidos à exaustão desde o malfadado golpe de estado de 2009, quando os militares sequestraram Manuel Zelaya e o retiraram da presidência em nome de coisa nenhuma. Naqueles dias, o golpe, armado na embaixada dos Estados Unidos, visava retirar Honduras da órbita de Hugo Chávez, uma vez que Zelaya estabelecia acordos e buscava melhorias para o povo hondurenho via projetos em comum com o presidente venezuelano. Logo após o golpe, uma eleição completamente ilegítima – porque negada por todas as forças de esquerda do país – colocou na cadeira presidencial Pepe Lobo, nada mais do que marionete dos interesses das grandes corporações e do governo estadunidense. A partir daí, com o país vivendo em clima de quase guerra civil, intensificaram-se os assassinatos políticos. Jornalistas, sindicalistas, militantes do movimento popular, um a um foram sendo eliminados e de pouco adiantou a gritaria geral em todo o mundo. Os países reconheceram o novo governo e Lobo governou com mão dura até passar a faixa para o atual presidente Juan Orlando Hernández, que segue governando na mesma linha. A morte de Berta Cáceres balançou o mundo todo e incendiou outra vez a luta em Honduras. Ela era uma liderança do povo originário Ienca – o mais importante grupo indígena em Honduras – e sua luta tinha destaque mundial. No ano passado ela chegou a receber o Prêmio Goldman, o máximo reconhecimento que pode ter um ativista ambiental. Ninguém acredita na versão da policia local de que os homens que entraram em sua casa tivessem unicamente o intento de roubar. Isso chega a ser um acinte à inteligência de toda gente. Durante sua luta em defesa do território e do povo Ienca Berta coordenando o Conselho Cívico das Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), Berta viveu cercada de ameaças. Recebia telefonemas e bilhetes com gente dizendo que iria estuprá-la, linchá-la, atacar sua mãe, matar suas filhas e estourar os miolos de seus companheiros de luta. Mesmo assim Berta seguia seu caminho de denúncia de violação dos direitos das gentes, principalmente no âmbito da construção da represa de Água Zarca, que estava prevista para ser erguida num espaço sagrado para as comunidades indígenas. Suas denúncias e seu trabalho de organização popular fizeram com que a empresa chinesa Sinohydro, que compunha o consórcio construtor da represa, retirasse sua participação do projeto hidrelétrico, o que provocou o ódio no governo e nas multinacionais envolvidas. Berta não era ingênua. Sabia que estava se movendo num país que registra o maior número de assassinatos per capita de militantes sociais no mundo, mas ela mesma dizia que não podia fiar parada enquanto destruíam as terras ancestrais e a vida das comunidades. Entre 2002 e 2014 foram informadas 111 assassinatos de ambientalistas em Honduras, portanto, Berta tinha plena consciência de que estava com a cabeça a prêmio. Mas seu senso de justiça sempre foi maior do que o medo. Aprendera com a mãe, que fora parteira e enfermeira de refugiadas salvadorenhas, durante as guerras de libertação nos anos 80. “Somos de uma família de muitas mulheres que aprenderam a lutar em comunhão. Minha mãe nos criou sozinhas, enfrentando ditaduras, golpes, guerra e sempre atuou na defesa dos direitos humanos. Ela nos motiva”, dizia. Por conta de sua história e sua luta no movimento estudantil, Berta imediatamente se levantou em rebelião quando o território Ienca passou a ser novamente ameaçado com megaprojetos. A etnia Ienca tem uma história milenar em Honduras e hoje soma 400 mil almas. Apesar de todos os massacres já vividos eles resistem e insistem em preservar sua cosmovisão, na qual a natureza é considerada sagrada. “Nós, os Ienca, somos os guardiões da terra e dos rios”, apontava Berta quando, em 2006 começou sua luta contra a represa de Agua Zarca. Naquele ano, a comunidade de Rio Blanco procurou a ambientalista para denunciar a chegada de máquinas pesadas na região, sem que ninguém tivesse conhecimento do que se tratava. Era a hidrelétrica. E sua construção iria significar o desalojo de milhares de famílias, a destruição de rios e de espaços sagrados. Não houve dúvidas sobre a necessidade da luta e começaram as assembleias nas comunidades que queriam ser ouvidas, conforme garante o convênio 169 da OIT. O governo fez ouvidos moucos e Berta organizou protestos na capital Tegucigalpa. O silêncio governamental seguia, as ameaças também. As comunidades decidiram ocupar as estradas em múltiplos protestos e atos públicos. A rota que levava à região da obra ficou fechada por um ano (2013), sendo o período mais duro para Berta e as gentes tiveram de enfrentar as incursões militares, os guardas privados e os assassinos de aluguel. Três companheiros morreram nessa luta e por várias vezes crianças e velhos tiveram armas apontadas para suas cabeças durante os protestos. Mas, a batalha valeu, pois a empresa chinesa saiu do consórcio e a obra parou. Só que o governo cogitava agora fazer a represa em outro lugar, o que mantinha acesa a luta, bem como a militância de Berta. De novo, as comunidades não estavam sendo ouvidas e a luta seguia. Dois dos filhos de Berta saíram do país por conta das ameaças, mas ela permanecia, incansável. Por todo esse histórico fica mais do que claro que o assassinato de Berta Cáceres teve a clara intenção de calar uma das mais importantes vozes do país contra o projeto hidrelétrico. Na noite do crime, quando os assassinos balearam Berta, também foi ferido o militante ambientalista mexicano Gustavo Castro, que estava na casa de Cáceres. Ela morreu nos seus braços. Hoje, o mundo se levanta em defesa de Gustavo, que foi detido pela polícia hondurenha sob a alegação de prestar depoimento e agora está impedido de deixar o país por 30 dias.

Do país dos “direitos humanos”

por Elaine Tavares Foram 43 anos numa solitária, na prisão de Angola, estado de Louisiana, Estados Unidos. Alguém pode imaginar maior violação dos direitos humanos? Ainda mais quando o “crime” cometido foi ser negro, e militante, num tempo em que os Estados Unidos viviam o auge da luta contra o racismo. Albert Woodfox, que foi liberado no último dia 20 de fevereiro torna-se assim, a pessoa que mais tempo passou isolada numa cela nos Estados Unidos. Ele é também o último dos “três de angola”, conhecidos pela luta dentro da prisão que leva esse nome e que ficaram confinados em solitária poucos anos depois da prisão por roubo, em 1972, acusados de terem matado um agente prisional. Albert Woodfox e Herman Wallace foram condenados pela morte de Brent Miller e colocados em isolamento, bem como também ficou na solitária um terceiro homem, Robert King, acusado de outro crime. King foi libertado em 2001, depois de passar 29 anos na cela solitária. Herman Wallace morreu em 2013, poucos dias depois de sair da prisão,  sem, portanto, desfrutar da liberdade e Albert Woodfox saiu no dia 20, completando 43 anos em completa solidão, por um crime que ele nega. Angola A prisão Angola é a maior dos Estados Unidos e é conhecida como “a plantação”. Nela, 85% dos presos estão com pena de prisão perpétua e três quartos dos detentos são negros. O complexo tem 18 mil acres e foi transformado em prisão no final do século XIX. Levou esse nome “angola” porque no período da escravidão a maioria dos negros escravizados vinha desse país africano. Desde aqueles dias e até hoje os presos cultivam a cana de açúcar e o algodão. Todos trabalham na terra, menos os que estão na solitária. No começo dos anos 70, quando Albert foi preso, essa penitenciária era o sinônimo do inferno, considerada a mais violenta dos EUA, na qual morrer esfaqueado era comum. Até hoje corre a lenda de que centenas de corpos estão enterrados no pântano que cerca Angola. Pego sob a acusação de roubo, tão logo chegou ao complexo, Albert decidiu fundar uma célula do partido Panteras Negras, naqueles dias em ascensão nos EUA. Foi o que bastou para que os dirigentes da prisão – todos brancos – tramassem o seu fim. Assim, para evitar que o rastro de pólvora dos Panteras corresse pelos corredores de Angola forjaram uma acusação de homicídio contra Woodfox, Wallace e King e os confinaram em solitárias. O julgamento dos três negros foi uma fraude. Júri exclusivo de brancos, testemunhas falsas, todos os ingredientes de uma conspiração. A militância de Woodfox e Wallace no grupo dos Panteras Negras já era anterior à prisão em Angola, por isso foi natural ele buscar a organização dos companheiros. Dentre as tarefas dos panteras estava a formação dos prisioneiros, a defesa dos mais jovens, evitando a violação, a prostituição e a escravatura sexual, práticas bastante comuns no complexo e qual participavam ou eram coniventes todos os guardas. Eles buscavam ainda trabalhar a divisão entre brancos e negros, que a direção da prisão manipulava para fomentar ainda mais violência. Essas atividades obviamente eram vistas como um risco à “ordem” há tanto tempo imposta. Por isso, bastava que algum negro se mostrasse mais reivindicativo e lá estava a solitária para isolar e causar terror. Quando em abril de 1972 o guarda Brent Miller foi assassinado, num contexto de rebelião que estava em andamento contra algumas punições que vinham sendo impostas indiscriminadamente, apresentou-se a oportunidade para quebrar as pernas dos mais fortes. Brent é morto com 32 punhaladas num dos dormitórios. Poucos presos estavam no local que tinha sido evacuado. Interrogatórios sob tortura foram realizados e todos os presos que tinham cabelo afro, à moda dos panteras, foram obrigados a raspar a cabeça, sofrendo ainda todo o tipo de abuso físico e psicológico. Uma única pessoa alegou ter visto o assassinato, mas a “confissão”, hoje se sabe, foi conseguida através de todo esse barbarismo. Com medo de levar ele mesmo a culpa pelo assassinato, o preso de nome Hezekiah Brown, apontou Woodfox e Wallace como os responsáveis, “reconhecendo-os” a partir de fotografias. O julgamento dos dois também foi uma farsa e os dois acabam condenados. A partir daí começou uma grande luta para provar a inocência dos dois, bem como todas as ilegalidades ocorridas durante o processo. Mas, quem se importa com dois negros, ativistas políticos, e num estado racista como Louisiana? A batalha seguiu inglória, como tem sido a que busca a libertação de Mumia Abu Jamal . Toda a história desses 45 anos de prisão de Wallace é um enredo sinistro de filme de terror e ódio. Woodfox saiu da prisão nesse dia 20. Está velho, trêmulo e um pouco confuso. Foram 43 anos sozinho, numa cela, com raros contatos humanos. Sua história é eivada de horrores e violências. E tudo isso num país que realiza cruzadas pela democracia e pelos direitos humanos, mas que não olha para suas entranhas. Wallace, que foi libertado em 2013, morreu poucos dias depois de sair do “buraco” onde viveu confinado por décadas. Albert quer viver. E deu sua primeira entrevista à jornalista Amy Goodman, contando como manteve a sanidade esses anos todos. Veja a entrevista com Woodfox realizada pelo site Democracy Now: Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos. Não acredito, pai  

Cala a boca, jornalista!

por Elaine Tavares Ser jornalista é padecer. A profissão é, sem qualquer dúvida, filha do capitalismo. Nasce para “embelezar” o anúncio das mercadorias e com o andar da carruagem acaba fazendo do jornalismo também mercadoria. Mas, como bem diz Adelmo Genro Filho, que pensou uma teoria marxista do jornalismo, pode ser bem mais do que isso. Na sua forma/mercadoria está contida a contradição e, por isso mesmo, vez em quando, seja por ação do jornalista ou da realidade mesma, ele assume a forma conhecimento. E é aí que pode gerar o pensamento crítico, instrumento único da transformação. No Brasil, a profissão passa por uma fase agônica. Nos grandes meios de comunicação pouco se salva. A regra é escrever ao estilo de manual de geladeira. O que escapa é a sempre existente exceção, nada mais que isso. No geral, os jornalistas fazem um jornalismo chapa-branca, oficialista, estilo porta-voz. Priorizam as fontes ritualísticas, que vão dizer aquilo que o veículo quer que digam. Ao mesmo tempo, esses meios comerciais silenciam as vozes dissonantes, e quando a realidade se impõe, não sendo possível calar os que fazem a crítica, os ridicularizam ou criminalizam. Basta pensarmos nas coberturas das ocupações de terras rurais, espaços urbanos, escolas em vias de desaparição ou os movimentos pela mobilidade urbana e o movimento indígena. Os que lutam são os bandidos e os que criam o caos os mocinhos. Esse é o jogo. Quem quer fazer jornalismo de verdade, narrando a vida na sua imanência, com descrição, contexto histórico e impressão, tem de saltar fora do barco da mídia produzida nos grandes meios. Hoje, com as novas tecnologias, isso ficou mais fácil, através dos blogs pessoais, ou das páginas de sindicatos e movimentos sociais. Mas, apesar das melhorias das condições objetivas pra produzir jornalismo sem censura, os jornalistas esbarram em outras variantes que os amarram. Uma elas é a força do poder econômico e político dos alvos da crítica. Paulo Henrique Amorim, por exemplo, que é um jornalista conhecido nacionalmente e que mantém um blog pessoal independente, já foi condenado à prisão por conta de matérias publicadas ali. Falar de políticos, políticas e denunciar falcatruas dos poderosos gera processos e outras punições, o que constitui um bom motivo para calar a boca de qualquer um. Sem a cobertura de uma empresa, com departamento jurídico bom, o jornalista solitário está completamente exposto e desprotegido. Qual blogueiro – que não tenha fama nem dinheiro – pode arcar com pesados custos judiciais? Outra forma de calar o jornalista é arruinar sua reputação, como tentam fazer com o Leonardo Sakamoto, vítima mais recente de manipulação e calúnia. Suas palavras são distorcidas e ele sofre frequentes e sistemáticas agressões através das redes sociais, ele também foi processado por ter simplesmente divulgado uma lista de pessoas e empresas que mantinham trabalhadores escravizados. Ou seja, informação da mais importante relevância social. Só não se deu mal porque pegou um bom juiz pelo caminho. E assim poderíamos seguir falando de outras dezenas de casos, como o do Lúcio Flávio Pinto, jornalista paraense que há décadas denuncia os desmandos praticados na Amazônia. Ele tem tantos processos nas costas que quase não pode sair do estado, sempre tendo de estar em alguma audiência referente a um ou outro. Um exemplo raro de jornalista de verdade, quase solitariamente enfrentando as forças gigantes do agronegócio e da política da destruição. Exemplos como esses, se por um lado inspiram a uma prática do bom jornalismo, por outro lado também amedrontam aqueles que já saem da faculdade com a boca fechada pela autocensura, aprendida nos bancos escolares. Navegar contra as correntes não é coisa fácil. Exige coragem demais. E quem pode tê-la nesse universo duro de necessidades de manutenção da vida?   América Latina sangra Mas, se no Brasil as batalhas no geral estão no campo da intimidação e dos processos judiciais, em outros espaços geográficos exercer a profissão de jornalista e buscar narrar a realidade do que os poderosos querem esconder pode significar a perda da vida. Um dos casos mais escabrosos é o México, país que tem por sina estar colado aos Estados Unidos, e por isso mesmo enfrenta desde séculos a dominação cultural, econômica e política mais pesada. Ali, ser jornalista é literalmente arriscar a vida. Na última semana, o bárbaro assassinato da jornalista Anabel Flores Salazar, colocou o país em destaque mundial. A trabalhadora do jornal El Sol de Orizaba, de 27 anos e mãe de dois filhos, foi sequestrada dentro de casa, sofreu torturas e seu corpo foi abandonado numa autoestrada. Ela foi a morte número 16 – desde o ano 2000 – na estatística dos jornalistas assassinados no estado de Vera Cruz, o mais violento do México para o exercício do jornalismo.  Em todo o país, na última década, mais de 90 profissionais de imprensa foram assassinados e 23 estão desaparecidos. Todos estavam envolvidos em denúncias de temas quentes como os cartéis de drogas, prostituição, tráfico de pessoas, danos ao meio ambiente. Cinicamente, os governantes ainda tentam atribuir aos jornalistas ligações com o crime organizado, visando “justificar” as mortes como acertos de contas ou coisas do tipo. Outro assassinato que gerou comoção no México, no mesmo estado de Vera Cruz, foi o do jovem repórter-fotográfico Rubén Espinosa. Ele chegou a sair do estado por conta das ameaças e perseguições, mas foi alcançado na capital, Cidade do México, onde tombou com dois tiros no peito e um na cabeça. Seu “crime”? Cobrir os protestos sociais e estudantis, dando foco aos trabalhadores e estudantes em luta. Ousou caminhar com os que lutavam contra o governo e o sistema. Pagou caro. E, assim como Rubén ou Anabel, qualquer um que pratique o jornalismo no México, está sujeito à morte e à violência.  Dura decisão precisam tomar os jovens jornalistas. Honduras, na América Central, também é outro foco de ataque sistemático ao jornalismo de verdade. Se o profissional está integrado nos grandes meios, cobrindo as pautas ritualísticas de propaganda do sistema e do governo, tudo bem. Mas, se resolve mostrar a vida que

O ano que vem

por Elaine Tavares A abertura dos trabalhos legislativos no Brasil mostrou que o ano de 2016 não vai ser fácil para os trabalhadores. Com a presença da presidenta Dilma, que falou para os deputados e senadores, buscando apoio para suas pautas, o que ficou nítido e claro é que muita luta será necessária para garantir que direitos não sejam tirados e outros possam vir. Tendo como mote a retomada do crescimento, Dilma pediu apoio para a aprovação de um novo tributo, a CPMF, que incidirá sobre movimentações financeiras e também para as novas medidas que aprofundarão o chamado ajuste fiscal. Não precisa ser muito esperto para saber que o tal ajuste será pago pela maioria dos trabalhadores, uma vez que o carro chefe da sua proposta é a desvinculação das receitas. E o que isso significa: que com ela, o governo poderá manejas os recursos do orçamento jogando verbas para onde julgar mais necessário. Com isso, o orçamento da seguridade social, que envolve saúde, moradia, educação, assistência social e previdência, poderá ser movido para outros objetivos, coisa que atualmente não pode ser feita. A Constituição define que arrecadação das contribuições sociais só podem ser gastas com o social. Desvinculando as receitas, o governo pode puxar recursos das contribuições sociais e garantir o superávit fiscal sem precisar criar outros tributos. Com essa proposta de desvinculação o governo já acena com redução de financiamento do programa Minha Casa, Minha Vida, para quem tem menos renda, e cortes no Pronatec (formação técnica e para o trabalho) e o programa Ciência sem Fronteiras (formação no exterior). O argumento da presidenta para que aconteça a desvinculação é de que a carga tributária – que é a parte do orçamento que pode ser movida – diminuiu de 16% do PIB para 13,5%, enquanto que as contribuições previdenciárias aumentaram. A proposta é criar a CPMF e colocar parte dos recursos desse imposto na previdência. É deveras, uma matemática estranha, já que põe e tira recursos ao mesmo tempo e ainda continua com o velho discurso de que a previdência é deficitária. Não bastasse querer mexer nos valores orçamentários das contribuições sociais, a presidenta ainda quer fazer nova reforma na Previdência que vai aumentar a idade mínima, mudar o fator previdenciário e ajustar a previdência dos trabalhadores públicos. Com isso, as novas gerações  – as mudanças não valerão para quem já está no sistema – terão de trabalhar muito mais tempo para garantir aposentadoria, além de terem de recorrer, obrigatoriamente à previdência privada, caso seus salários ultrapassem o valor definido como máximo que é, na verdade, muito baixo: 2.400 reais. Nesse pequeno mas significativo pacote de propostas se esconde um mundo de mudanças que mexe diretamente com o bolso e vida da maioria dos trabalhadores, visto que os mais ricos seguirão acumulando sem maiores problemas. Dilma acenou com medidas que beneficiam os empresários médios e prometeu abrir novos mercados para os grandes exportadores, bem como a privatização de estratégicos espaços, como é o caso dos terminais dos portos públicos e estradas. As pautas legislativas Mas se as metas do governo federal não parecem muito atrativas para os trabalhadores, as outras pautas que estarão em debate nesse ano novo legislativo também representam péssimas mudanças, quando não um retrocesso abismal. Pelo menos 10 grandes projetos deveriam preocupar sobremaneira os brasileiros e mobilizá-los no debate e na resistência pois, ainda que sejam temas periféricos às questões estruturais influem demasiado na vida cotidiana e reforçam preconceitos e ódios que já se expressam em grande número no país. Um deles é a proposta de um Estatuto da Família, da bancada evangélica, que considera família apenas a união entre um homem e uma mulher. Nada poderia ser mais atrasado que isso, mas já foi aprovado nas comissões. Outro é o da redução da maioridade penal para 16 anos, que pretende encher as cadeias para melhor alimentar a roda do capital. Também estará em pauta a chamada lei antiterrorismo que nada mais é do que legalizar a criminalização das lutas sociais visto que, hoje, o conceito de terrorismo ficou mais largo, abrangendo nele qualquer pessoa que se coloque em luta contra os governos. Nessa linha de leis esdrúxulas está também a que criminaliza os agentes de saúde que informarem às mulheres sobre soluções abortivas como por exemplo a pílula do dia seguinte, mesmo que em caso de estupro. A pauta do ano igualmente se ocupará de temas como a permissão da terceirização sem limites, a retirada da Petrobras como exploradora exclusiva do pré-sal, a revogação do estatuto do desarmamento, a privatização dos Correios e da Caixa Federal, a flexibilização do conceito do trabalho escravo e a redução da idade para o trabalho que deverá ficar em 14 anos. Assim que os dramas serão intensos e a vida nacional colocada num profundo turbilhão. Nesse cenário temos um movimento social ainda muito dócil, sindicatos adormecidos e centrais de trabalhadores mais ocupadas em defender o governo, o que torna tudo muito incerto. Permitirão os trabalhadores brasileiros a retirada de mais direitos? Suportarão uma nova reforma da previdência? Estarão dispostos a aceitar retrocessos bárbaros e a consolidação de preconceitos? Recentes pesquisas mostraram que 1% da população mundial detém a riqueza equivalente aos 99% restantes, o que mostra que o abismo entre os mais ricos e os mais pobres só aumenta. Os dados ainda comprovam que 62 pessoas no mundo detém uma riqueza equivalente a riqueza da metade da população – ou seja, do que 3 bilhões e meio de pessoas. Isso não é bolinho. São dados aterradores. Esse abismo se expressa igualmente nos países capitalistas, nos quais os índices de riqueza também aumentam e se separam drasticamente dos mais pobres. Isso significa que motivos para luta existem e sobram. Ocorre que o capitalismo moderno e sua pedagogia da sedução ainda tem muito poder sobre as pessoas que, ingenuamente, acreditam que “com muito esforço” podem vencer na vida, “chegar lá”. Esse tipo de crença é o que permite que os pobres permaneçam pobres e os ricos cada vez mais

América Latina e seus dilemas

por Elaine Tavares Já vai longe o tempo em que as notícias chegadas dos países irmãos da América Latina enchiam a vida de esperanças. Cooperação, soberania, equidade, mudanças, os ventos cambiantes soprando desde a Venezuela e se espalhando pelo continente. Nada muito revolucionário, mas pequenas e significativas transformações que começavam a cimentar um caminho diferente para uma população sempre subjugada dentro de um capitalismo dependente, no qual só sobrevivem os que mais roubam e exploram. Com Chávez à frente foram criados novos espaços de integração latino-americana como a Unasul, a Celac, o Caricom, bem como um Banco do Sul e uma emissora de televisão que buscava igualmente integrar o continente pela cultura: a Telesul. Durante mais de uma década, esse lugar geográfico denominado América Latina finalmente conseguiu olhar-se e descobrir-se parte de uma mesma proposta, a mesma com a qual um dia sonharam Petión, Bolívar  e Artigas, uma América unida, grande e soberana.   Mas, apesar desses avanços, os Estados Unidos, que acreditam ter como destino manifesto a posse sobre a riqueza e a vida de todos os que vivem abaixo do rio Bravo nunca desistiram de barrar esse sonho. Por isso, em 2002, o governo de Washington jogou pesado no apoio ao golpe contra Chávez. Só que a bravata do empresariado local aliada aos EUA acabou debelada pelo povo nas ruas e pelo exército bolivariano. Foi uma derrota fragorosa que obrigou o governo estadunidense a pensar formas alternativas de destruição do chavismo e da ideia de integração. E, de qualquer forma, mostrava claramente que o tempo dos “golpes” não se acabara. Eles sempre poderiam voltar, se fosse do desejo do governo imperial. Assim, dois anos depois, em 2004, os Estados Unidos desestabilizavam a região do Caribe com a deposição do presidente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide. A partir desse golpe, o país foi invadido pelas tropas da ONU, incluindo aí soldados de países como o Brasil e a Bolívia, que, em tese, deveriam estar alinhados com a Pátria Grande e não com o Império. Já foi mais uma jogada de mestre dos Estados Unidos, pois além de tirar o Haiti da rota da esquerda, criaram desconforto e desconfiança entre os governos latino-americanos. Depois, também no combate contra o avanço das ideias bolivarianas no Caribe, os Estados Unidos fomentaram o golpe em Honduras, no qual os militares locais sequestraram o presidente Manuel Zelaya, deportando-o para Costa Rica. Foi o retorno explícito de uma prática que a América Latina pensava já ter sido vencida. E, apesar de toda a gritaria da comunidade internacional Zelaya não voltou ao cargo e a constituição do país foi rasgada. Os militares golpistas realizaram eleições que foram consideradas ilegais, mas o presidente eleito no pleito imoral acabou sendo reconhecido e a vida seguiu. É que apesar dos percalços e das perdas a corrente bolivariana seguia arrastando dirigentes governamentais, movimentos e sindicatos. Transformações na saúde, na educação, nas matrizes energéticas, tudo tomava novo ritmo. Países como a Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Argentina, Nicarágua, com governos considerados progressistas, iam – cada um no seu ritmo e com suas especificidades – mudando leis, nacionalizando riquezas, distribuindo renda. É claro que tudo isso não se deu sem contradições. A Venezuela não conseguia sair da matriz petrolífera, o Brasil se rendia ao agronegócio, o Equador excluía os indígenas e se aproximava das multinacionais do petróleo e da mineração, o Uruguai cedia aos transgênicos, a Argentina não atendia os trabalhadores. A batalha se dava também internamente em cada país. Então, em 2012, a fábrica de golpes apresenta um novo formato. E ele aparece no Paraguai, onde o presidente Fernando Lugo tentava – ainda que timidamente – dar combate ao latifúndio. Por conta de um conflito entre policiais e camponeses na região de Curuguaty, o qual terminou com 22 mortes, o legislativo nacional apresenta um pedido de impedimento de Lugo, acusando-o de omisso, e num processo relâmpago, eivado de ilegalidades, no dia 22 de junho, o presidente constitucional é deposto pelo Senado paraguaio, numa votação que contou 39 votos a favor e 4 contra. De novo, a gritaria geral dos países latino-americanos e de outras partes do mundo não mudou a realidade. O golpe foi respaldado. Caía mais um governo articulado na ala dos progressistas. No ano seguinte, em março de 2013, a onda bolivariana que embalara mais de uma década de transformações na América Latina, sofre mais um golpe. Morre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que era o principal condutor desse processo. Com ele, desaparece muito da força carismática que carregava multidões e encantava governos. E, a partir daí, abre-se um flanco para que – tal e qual nas guerras de independência – os governos até então alinhados aos sonhos de integração passem a atuar de forma mais individualizada. Chávez, o que puxava as orelhas, o que chamava para a boa direção, já não estava, e cada um tratou de cuidar de si. Mais um ponto para a águia, os EUA, que seguia não apenas à espreita, pronta para o bote, como ajudando no processo – inclusive financeiramente – de revitalização das entidades e organizações conservadoras nos países latino-americanos. Em 2014, os ataques se concentraram na Venezuela, onde tentaram de todas as formas derrubar o governo de Nicolás Maduro. Ajudada pelos erros do novo presidente, a elite local – aliada dos EUA – produziu uma poderosa guerra econômica na qual os venezuelanos se viram sem produtos para consumir, com uma inflação galopante e com o dinheiro desvalorizado. O contexto de caos e carestias levou ao crescimento das forças conservadoras que acabaram vencendo as eleições legislativas em 2015, tirando a maioria do governo. Em 2015 também o Brasil foi sacudido por forte crise política que já se manifestava desde 2013, e que foi crescendo ao ponto de se tornar uma espécie de cruzada contra o PT. Apesar de o governo de Dilma Roussef jamais ter sido um obstáculo para os conservadores e para a elite local, essas forças atuaram fortemente no sentido de derrubá-la do poder. E, como numa

E mataram um menino kaingang…

por Elaine Tavares O primeiro originário dessas terras a perceber que os homens brancos e barbudos que chegavam pelo mar, naquele distante 1492, não eram “flor que se cheirasse” foi Hatuey, um jovem cacique da etnia Taíno, que vivia onde hoje está a República Dominicana, lugar onde desembarcou o grupo de Cristóvão Colombo. Bastaram alguns encontros para que ele percebesse que a cobiça e a violência eram tudo o que eles traziam. Foi então que decidiu dar combate aos espanhóis, mesmo em desvantagem no quesito armas. Percebeu aí que sozinho não poderia vencer e decidiu ir remando até a ilha próxima, onde hoje fica Cuba, para avisar aos demais povos da região sobre as atrocidades que o grupo estava cometendo e preparar a resistência. Junto a um baú com ouro e joias, ele falou aos parentes: “Este é o Deus que os espanhóis adoram. Por isso eles lutam e matam, por isso eles nos perseguem e por isso é que temos de atirá-los ao mar. Nos dizem, esses tiranos, que adoram um deus de paz e igualdade, mas usurpam nossas terras e nos fazem de escravos. Eles falam de uma alma imortal e de recompensas e castigos eternos, mas roubam nossos pertences, seduzem nossas mulheres, violam nossas filhas. Incapazes de nos igualar em valor, esses covardes se cobrem com ferro que nossas armas não podem romper”. Hatuey liderou muitas batalhas, mas acabou sendo capturado. Sofreu horríveis torturas e foi condenado a morrer na fogueira. Contam que um padre, de nome Olmedo, ainda tentou convertê-lo na hora final. E Hatuey encontrou forças para perguntar: – Os espanhóis também vão para o céu dos cristãos? – Sim, claro – disse Olmedo. – Então eu não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente. Nesse final do ano de 2015, um pequeno garoto da etnia Kaingang encontrou com Hatuey em alguma terra sem males, bem longe da presença de gente tão cruel. O menino indígena, de nome Vitor Pinto, e com apenas dois anos de idade, foi degolado no colo da mãe, enquanto mamava. Um homem acercou-se, fez um carinho no rosto de Vitor e quando ele ergueu os olhinhos para ver quem lhe afagava, recebeu o golpe fatal. Uma faca, ou um estilete, ainda não se sabe, lhe rasgou a garganta. A mãe, em choque, correu em busca de ajuda enquanto o homem saiu tranquilo para longe dali. Na temporada de férias, é bastante comum que famílias indígenas se movam até o litoral para melhor vender seus artesanatos. E foi o que fez a família de Vítor, saindo de Chapecó, no oeste de Santa Catarina, indo para Imbituba, no litoral. Lá, obviamente sem condições de pagar uma hospedagem, eles tiveram de improvisar e encontrar algum lugar razoavelmente seguro para dormir. O melhor espaço foi o da rodoviária, onde havia movimento e, por isso mesmo, segurança. Jamais poderiam supor que alguém, de maneira tão deliberada, pudesse fazer o que foi feito. Três dias depois do assassinato foram divulgadas as imagens capturadas por algum dessas câmeras de rua e nelas se vê o rapaz se aproximando, normal, como se fosse conversar. Foi tudo muito rápido. A mulher estava sentada no chão, com o filho no colo. Ele chegou, abaixou-se, moveu a mão, primeiro no carinho, depois no golpe, e saiu. Tudo depois é perplexidade e dor. Um garotinho indígena degolado enquanto se alimentava. Uma cena de arrepiar. A mesma velha cena de mais de 500 anos, repetida e repetida, à exaustão. Desde a chegada dos espanhóis e portugueses às terras de Abya Yala, mais de 40 milhões de indígenas foram exterminados. Chamados primeiro de não humanos, depois de seres de segunda classe, infiéis, inúteis. Não é, portanto, sem razão, que alguém se ache no direito de fazer o que fez esse rapaz em Imbituba. Ato parecido foi feito em Brasília contra Galdino Pataxó, quando alguns rapazes ricos o queimaram enquanto dormia num banco em um abrigo de ônibus. É que ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a invasão e o roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como um atrapalho, uma lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o melhor acaba sendo confiná-los em alguma “reserva” longe dos olhos das gentes. Mas, se eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a coisa fica feia. Assim que cada pessoa que siga disseminando essa ideia inventada de que índio é preguiçoso, é feio, é sujo, é ruim, é também cúmplice do assassinato de Vitor. Cada criatura que repete esses absurdos pelas redes sociais, nos encontros de família, na escola, nos bares e nas igrejas, armou a mão que degolou Vítor. E é responsável pela morte não só desse garotinho, mas de centenas de outros indígenas que tombam pelas mãos assassinas do latifúndio, da jagunçagem, do ódio. Esse mesmo ódio que escorre pela redes sociais contra o índio, o negro, as mulheres, os gays. No mundo capitalista, no qual tudo vira mercadoria, não há espaço para o indígena. E não é só porque ele é uma presença incômoda, lembrança indelével do primeiro crime – a invasão. Mas porque ele é também a recusa histórica desse sistema. Ele não faz da terra uma mercadoria, ele não explora os parentes em fábricas de coisas, nem inventa produtos inúteis para vender aos incautos. O indígena pensa o território como espaço de vida e de espiritualidade. Reproduz suas cerâmicas, seus cestos, colares e bichinhos como resistência cultural e como única possibilidade de sobreviver no mundo que lhe foi imposto. E, se ocupa as ruas, as marquises e as rodoviárias é porque não têm outra escolha. Então é assim, em Santa Catarina, nesse dia 30 de dezembro, um jovem se deu ao direito de degolar um menino Kaingang. Desde há anos a brava cacica dos Guarani do Morros dos Cavalos vem recebendo ameaças de morte por defender sua terra e sua

E se fosse numa escola particular

 por Fernando do Valle Agora fica mais cristalino que a água (ops!) o motivo que leva parte da classe média a posar orgulhosa em selfies com a tropa de choque alckimista. Naquele momento, as forças policiais recebiam seu voto de confiança para prosseguirem seu trabalho de colocar “em seu devido lugar” a juventude pobre. Poucos meses depois das constrangedoras fotos, a PM retribui o apoio. A extrema violência da repressão policial aos protestos dos estudantes das escolas públicas que lutam contra o fechamento de 94 escolas estaduais pelo governador mostra que o diálogo com os estudantes mais pobres é na base do cassetete. Nas fotos e vídeos que circulam pelas redes sociais nestes dias não há espaço para o sorriso fake de uma selfie. Tentei explicar pra minha filha de 9 anos o que acontecia enquanto assistíamos um vídeo em que policiais militares prendiam com violência estudantes no pátio de uma escola, ela me perguntou: “pai, eles podem fazer isso na minha escola também?”. Respondi que não e fiz esforço hercúleo para esclarecer os motivos que a protegiam desse tratamento desumano da polícia, não sei se ela entendeu. Aquela pergunta me persegue há dois dias e imaginei um hipotético e improvável cenário em que os alunos de uma escola particular de um bairro considerado nobre ocupem a escola em protesto contra a diretora que não tomou nenhuma providência após um acidente grave de trânsito com um aluno em frente à escola. Irmã de um delegado, a diretora desesperada liga 190 e a PM invade sem mandado o estabelecimento particular. Seria mais ou menos assim: Pietra foi presa hoje pela manhã, em estado de choque, sua mãe já esvaziou duas cartelas de calmante tarja preta. Um advogado que estudou na mesma escola do pai da adolescente a soltou prontamente. Para se recuperar do trauma, em janeiro, Pietra embarca para um intercâmbio no Canadá para aprimorar seu inglês. Leonardo tentou impedir a entrada da PM na escola, foi enforcado pelo cassetete de um PM enraivecido e ficou com dois hematomas no rosto, mesmo com 15 anos, seu pai o levou ao pediatra que o atende desde que nasceu, “você sabe como é médico de convênio”, sua mãe escreveu para uma amiga pelo celular depois que deixou um cheque-borracha de R$ 450 pela consulta. O pai de Fred adora publicar memes contra a “corrupissão” no face, nos protestos de março e abril na Paulista, tirou selfies com a tropa de choque com a hashtag #vemprarua. Achou melhor Fred ficar em casa no dia da invasão quando soube da movimentação dos estudantes no dia anterior. Quando chegou do trabalho e Fred contou sobre a invasão da escola pela polícia, ele ligou para seu primo juiz e exigiu providências: “você tem que mexer os pauzinhos, o que aconteceu foi muito grave!” Catarina ficou assustada com a violência da PM e perguntou antes de dormir pra avó os motivos de tanta raiva no olhar de um soldado. Sua avó respondeu: “é que o Brasil é muito violento, minha neta, e se eles não fizerem nada, isso vira uma bagunça”. Catarina não entendeu. No dia após a invasão, o governador convocou a imprensa para uma coletiva para comunicar a demissão de seu secretário de segurança e do comandante da PM. Hoje pela manhã, pais, alunos, professores fecharam a avenida em frente da escola em uma passeata contra a violência. A PM não deu as caras, pelo jeito, não ia rolar selfie.

O deputado no espelho

por Fernando do Valle Foi em uma manhã antes de embarcar para Brasília. O deputado estacionou em frente ao espelho ainda com a escova de dentes no canto da boca. Ficou ali por vários minutos, como se o mundo tivesse parado e ficado quieto, e notou os detalhes de seu rosto envelhecido, a careca, as rugas sob os olhos, os pelos escapando do nariz adunco. O clique de desconhecido interruptor o transportou para outra dimensão. Passou a viver dominado pelo medo, sofria do pânico de que gravassem suas conversas, de que descobrissem suas contas tão bem escondidas (pelo menos o que ele achava até agora) em um paraíso fiscal. Depois da paúra, surgiu um ensaio de arrependimento. O deputado começou a sentir-se diferente, ele mesmo não sabia explicar, censurava assessores boquirrotos, retrucava aliados insensíveis à realidade do país em almoços da bancada, não atendia telefonemas de certos lobistas. Ao chegar do shopping de mãos ocupadas com sacolas, sua mulher o surpreendeu tomando uísque com o olhar perdido debruçado em um móvel próximo ao parapeito da janela da sala. “Roberto, você anda muito estressado, precisamos fazer uma daquelas nossas viagens”. Ele não respondeu e deu um longo gole na bebida. O olhar injetado de uma mulher negra de cabelos todos brancos misturava-se agora às memórias de uma vida que parecia não fazer mais sentido. Alguns flashes do passado começaram a envergonhá-lo agora que já beirava os 70 anos. A raiva nos olhos da negra penetrou fundo pelas suas pupilas que o fez sentir um frio na espinha em uma tarde na última campanha no centro da cidade. Ele ficou ali parado com a mão direita estendida para o aperto de mão, ela não esticou o braço e foi embora. Ele seguiu sua rotina de sorrisos e afagos nas cabeças das crianças embalado pelos gritos de cabos eleitorais. O deputado sempre se escudou com o argumento íntimo de que nunca desviou dinheiro da merenda, da educação, da saúde. O por fora sempre veio de empreiteiras, multinacionais, banqueiros, ele se punha na conta de um facilitador, ajudava no fechamento de negócios. Nada mais justo que eu receba algo em troca, pensava no chuveiro, afinal de contas não fui eu que inventei a maneira como as coisas funcionam, elas sempre foram assim, até parece que essas merrecas vão fazer falta pra essa empresa, ela fatura isso em uma hora, se conformava. Ontem o deputado acordou suado aos gritos e sua mulher acendeu a luz do abajur. “Ela falou comigo, me abraçou, a mulher até me deu um beijo rápido no rosto”, urrava agitado. Sua mulher colocou os óculos e de batimento cardíaco acelerado perguntou: “quem? o que você tá falando, tá doido, Roberto?” “Ela, ela… aquela mulher não me odeia”.  A mulher do deputado ficou preocupada, no outro dia pela manhã, marcou uma consulta pro marido no psiquiatra mais caro da cidade e cancelou a sessão de botox do próximo dia. “Acho que precisamos viajar mais pro Roberto espairecer”, sussurrou.

A mineração e os eco-chatos

por Elaine Tavares Desde muito tempo temos ouvido essa “acusação” quando alguém se levanta em luta pelo equilíbrio ambiental: eco-chatos, inimigos do progresso, uma gente chata que não quer ver o desenvolvimento da nação. Hoje, com a nação perplexa diante da tragédia que se abateu sobre a vida em Minas, se faz mais do que necessário rever esse conceito. Qualquer pessoa que tenha consciência crítica sabe que o capitalismo enquanto tal é um produtor de misérias. A sua produção de mercadorias implica no seu contrário, ou seja, a destruição. Assim, se queremos falar da raiz oculta das relações de produção capitalista, temos que necessariamente falar em relações de destruição, como bem aponta o teórico Ludovico Silva no seu livro “A mais-valia ideológica”. Não é sem razão que os chamados eco-chatos – ou ambientalistas, ou gente que tem consciência da realidade, ou seja lá como os chamem – sempre denunciaram os riscos da mineração. No Brasil, a extração do ouro teve seu primeiro ciclo em 1690, justamente em Minas, na região de Tiradentes. Depois, em 1700 foi a vez dos diamantes, na mesma região e no final do século já metade do ouro circulando no mundo vinha dali. Nos 1800, milhares de colonos portugueses ocuparam o sudeste e boa parte do território foi sendo ocupado tendo como meta a extração de algum tipo de minério. Hoje, a indústria extrativista explora aproximadamente 72 minerais, sendo 23 tipos de metais e 45 não metálicos, além de mais quatro tipos de combustíveis. A mineração responde por 5% do PIB nacional – com 33.354 minas – e oferece produtos que são amplamente utilizados nas indústrias metalúrgicas, de fertilizantes, siderúrgicas e, principalmente, nas petroquímicas.  O país se destaca na produção de amianto, bauxita, cobre, cromo, estanho, ferro, grafita, manganês, níquel, ouro, potássio, rocha fosfática e zinco. O ferro tem sido o metal de maior importância, com sete grandes empresas na área: Cia. Vale do Rio Doce; Minerações Brasileiras Reunidas S.A.; Mineração da Trindade; Ferteco Mineração S.A.; Samarco Mineração S.A.; Cia Siderúrgica Nacional; e Itaminas Comércio de Minérios S.A. Toda essa produção movimenta mais de  50,5 bilhões por ano e conforme estudos do Departamento Nacional de Produção Mineral o Brasil é um dos países com maior potencial mineral do mundo, juntamente com Federação Russa, Estados Unidos, Canadá, China e Austrália, o que torna seu território bastante cobiçado, visto que as reservas são grandes e podem gerar lucros por muito tempo ainda. Nesse sentido, não é sem razão a investida dos representantes do latifúndio no Congresso Nacional para rever as demarcações de terras indígenas. Esses grandes territórios já demarcados contêm reservas estratégicas de minério e os que usam a terra como mercadoria querem colocar suas garras afiadas sobre essa riqueza. Passando para o legislativo nacional a decisão sobre demarcação e dando a eles poder sobre a revisão de antigas demarcações, o que se pode acontecer é a retirada dos territórios já garantidos aos indígenas, quilombolas e povos tradicionais. Tudo em nome do lucro, seja para a monocultura de exportação ou para a mineração. E aqui voltamos aos eco-chatos. Não é de hoje que os ambientalistas verdadeiramente preocupados com o equilíbrio entre o homem e a natureza denunciam os dramas da mineração. O tamanho do impacto ambiental que essa atividade causa é imensurável. Com as escavações em larga escala são promovidas dramáticas alterações na paisagem, bem como a contaminação incessante das águas por conta do uso de metais pesados, como o mercúrio, por exemplo. A mineração ainda pode afetar a qualidade do ar e do solo, destruir espécies animais e vegetais e causar poluição sonora, isso sem contar nos danos à saúde humana. Logo, o controle sobre esse tipo de trabalho por parte dos órgãos ambientais precisa ser muito bem feito. Mas, o que se vê é a velha política das vistas grossas a toda e qualquer denúncia que seja feita, tanto por parte dos ambientalistas, quanto por estudiosos da questão. Para aqueles que são contra a possibilidade das forças econômicas seguirem lucrando, a mídia comercial forma um consenso sobre o tema de tal maneira que aparecem como vilões os que fazem as denúncias: os eco-chatos, os que atrapalham o progresso, os que vivem a chamar desgraça. O crime ambiental que aconteceu agora em Minas Gerais, em grandes proporções, com o rompimento da barragem de lama tóxica, que estava sob denúncias, deu visibilidade a esse drama que é cotidiano em várias regiões do Brasil. A lama tóxica, o mercúrio, a poluição por outros metais e venenos, tudo isso está – nesse exato momento – escorrendo para dentro de algum manancial. Em pequenas proporções, quase invisível, mas que vai cobrar seu preço mais na frente. E diante dessa tragédia sistemática como age a fábrica do consenso? Esconde os fatos, joga foco sobre o que chama de “tragédia de Minas”, como se aquilo fosse um caso isolado, um acidente, um acaso do destino e não a ação deliberada e irresponsável de empresas que estão pouco se lixando para a vida que rodeia seus empreendimentos. Uma única barragem como essa da Samarco está causando um rastro de destruição que se espalha não só pelo estado de Minas, mas vai caminhando pelas veias abertas dos rios e riachos, até chegar ao mar, onde também provocará forte desequilíbrio. Conforme informações do biólogo André Ruschi, diretor da escola Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi, em Aracruz (ES), só esse desastre compromete e impacta a vida marinha por mais de 100 anos. Ele não hesita em dizer que a irresponsabilidade da Samarco assassinou a quinta maior bacia hidrográfica do Brasil. “A natureza se regenera” dizem alguns, fazendo pouco caso dos efeitos do crime. Sim, é fato, ela se regenera. O que não se regenera é a vida perdida por conta desse tipo de exploração da riqueza. Mas, afinal, quem se importa com o destino daqueles que são apenas mão-de-obra barata para o giro da roda do capital? Assim como nas guerras “limpas”, nas quais ninguém vê os corpos dilacerados, esse crime ambiental também tem seus corpos escondidos. A

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