Zona Curva

Ditadura nunca mais

Textos sobre fatos e pessoas que marcaram a resistência durante o período da ditadura civil-militar no Brasil

#Ditaduranuncamais

A democracia em risco

Democracia – Não nos iludamos de novo: nossa frágil democracia continua em risco. Recordo do governo João Goulart e suas propostas de reformas de base, ao início da década de 1960. As Ligas Camponeses levantavam os nordestinos. Os sindicatos defendiam com ardor os direitos adquiridos no período Vargas. A UNE era temida por seu poder de mobilização da juventude. Era óbvia a inquietação da elite brasileira. Passou a conspirar articulada no IBAD, no IPES e outras organizações, até eclodir nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Contudo, o Partido Comunista Brasileiro tranquilizava os que sentiam cheiro de quartelada – acreditava-se que Jango se apoiava num esquema militar nacionalista. E, no entanto, em março de 1964 veio o golpe militar. Jango foi derrubado, a Constituição, rasgada; as instituições democráticas, silenciadas; e Castelo Branco empossado sem que os golpistas disparassem um único tiro. Onde andavam “as massas” comprometidas com a defesa da democracia? Conheço bem o estamento militar. Sou de família castrense pelo lado paterno. Bisavô almirante, avô coronel, dois tios generais e pai juiz do tribunal militar (felizmente se aposentou à raiz do golpe). Essa gente vive em um mundo à parte. Sai de casa, mas não da caserna. Frequenta os mesmos clubes (militares), os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas. Muitos se julgam superiores aos civis, embora nada produzam. Têm por paradigma as Forças Armadas nos EUA e, por ideologia, um ferrenho anticomunismo. Por isso, não respeitam o limite da Constituição, que lhes atribui a responsabilidade de defender a pátria de inimigos externos. Preocupam-se mais com os “inimigos internos”, os comunistas. Embora a União Soviética tenha se desintegrado; o Muro de Berlim, desabado; a China, capitalizada; tudo que soa como pensamento crítico é suspeito de comunismo. Isso porque nas fileiras militares reina a mais despótica disciplina, não se admite senso crítico, e a autoridade encarna a verdade. O Brasil cometeu o erro de não apurar os crimes da ditadura militar e punir com rigor os culpados de torturas, sequestros, desaparecimentos, assassinatos e atentados terroristas, ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile. Assistam ao filme “Argentina,1985”, estrelado por Ricardo Darín e dirigido por Santiago Mitre. Ali está o que deveríamos ter feito. O resultado dessa grave omissão, carimbada de “anistia recíproca”, é essa impunidade e imunidade que desaguou no deletério governo Bolsonaro. Não concordo com a opinião de que só nos últimos anos a direita brasileira “saiu do armário”. Sem regredir ao período colonial, com mais de três séculos de escravatura e a dizimação de indígenas e da população paraguaia numa guerra injusta, há que recordar a ditadura de Vargas, o Estado Novo, o Integralismo, a TFP e o golpe de 1964. O altissonante silêncio dos militares perante os atos terroristas perpetrados por golpistas a 8 de janeiro deve nos fazer refletir. Cumplicidade não se consuma apenas pela ação; também por omissão. Mas não faltaram ações, como os acampamentos acobertados pelos comandos militares em torno dos quartéis e a atitude do coronel da guarda presidencial que abriu as portas do Planalto aos vândalos e ainda recriminou os policiais militares que pretendiam contê-los. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, reza o aforismo que escuto desde a infância. Nós, defensores da democracia, não podemos baixar a guarda. O bolsonarismo disseminou uma cultura necrófila inflada de ódio que não dará trégua à democracia e ao governo Lula. Nossa reação não deve ser responder com as mesmas moedas ou resguardar-nos no medo. Cabe-nos a tarefa de fortalecer a democracia, em especial os movimentos populares e sindicais, as pautas identitárias, a defesa da Constituição e das instituições, impedindo que as viúvas da ditadura tentem ressuscitá-la. O passado ainda não passou. A memória jamais haverá de sepultá-lo. Só quem pode fazê-lo é a Justiça. Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota Breve crítica da democracia louvada Sobre a democracia e o voto Não há meia democracia Frei Betto: “É uma ilusão e um engano achar que a ditadura foi melhor”

A resistência de Gal Costa à ditadura civil-militar

Faleceu na manhã de 9 de novembro (quarta), a cantora Gal Costa aos 77 anos Nascida na Bahia, Gal Costa foi sinônimo de resistência durante a ditadura brasileira. Muito ativa nos movimentos contra o governo da época, ela lutou contra a censura e por pautas sociais como a defesa dos direitos LGBT. Após o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, coube à cantora manter acesa a chama da contracultura no cenário musical brasileiro. Pouco tempo após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em dezembro de 68, Gil foi preso junto com Caetano. Liberados na quarta-feira de cinzas de 1969, os dois partiram em julho para o exílio em Londres. Em outubro de 1971, aos 26 anos, Gal estreava o show “Gal a Todo Vapor”, conhecido também como “Gal Fa-Tal”, no Teatro Tereza Rachel no Rio, que se tornou um tapa na cara da caretice dos generais no poder. Mais de 600 pessoas iam todos os dias assistir suas apresentações, divididas em dois atos, em um palco avermelhado, onde lia-se “FA–TAL” (palavra que nomeou o disco do show) no fundo, e “VIOLETO no chão, palavras retiradas de poema de Waly Salomão, diretor do espetáculo. No primeiro ato, ela se apresentava com o violão em tom solitário, já no segundo, Gal surgia eufórica com sua banda. Em 1972, Gal a todo vapor foi apresentado em outras capitais pelo Brasil, como São Paulo, Salvador e Recife. … Enquanto nas ruas, os brasileiros viviam uma brutal repressão política, no show de Gal, o público crítico à situação do país encontrou a oportunidade de desbundar e respirar a liberdade da revolução tropicalista em um Brasil sufocado pela censura. Após o show na capital pernambucana, Jomard Muniz de Britto publicou uma crítica poética, em setembro daquele ano, sobre o papel político da artista, no Jornal do Commercio:  “Quem não viu a pérola negra de Gal?”  “Não tenham medo de ouvir um grito (há muito tempo preso na garganta…), grito primal, grito liberado nestas águas de setembro que agora derramarei. Pela necessária impureza do terror lírico. Amor/terror.  (…) Numa só noite, em menos de duas horas, Gal reviveu sete vezes sete seu itinerário como cantora mais que cantora. Como intérprete, como gracinha, como pessoa que não se assusta consigo própria. Como alguém que vem assumindo uma posição dentro da existência e da criação cultural brasileira.  (…) Gal devorou sua plateia, que nem ao menos desconfiava que estava sendo comida, num dos maiores banquetes da música viva popular livre brasileira”. Dez dias após a volta do exílio em 1972, em seu primeiro show, Caetano fez um aceno à imagem de Gal: um batom vermelho, cabelos ondulados repartidos ao meio e um colete justo. “Um retrato vivo de Gal, pensado como uma homenagem a ela ter encarnado os tropicalistas expatriados durante aqueles anos”, comentou o cantor, em 2011. Em 1976, a artista realizou o show Doces Bárbaros, com Caetano, Gil e Maria Bethânia, pelo Brasil. Tamanho foi o sucesso que virou disco e documentário. Em sua longa carreira, Gal incorporou em sua essência tropicalista performances mais refinadas e abraçou outros ritmos brasileiros.  O longa “Meu nome é Gal”, protagonizado por Sophie Charlotte, tem lançamento previsto para 2023. A cinebiografia segue Gal desde sua ida da Bahia para o Rio de Janeiro e, em seguida, São Paulo, entre o fim dos anos 60 e início da década de 70. Gal nos deixa um legado de canções marcantes. Confira seus maiores sucessos:   Meu nome é Gal   Divino Maravilhoso   Vapor Barato   Vaca Profana   Brasil (canção de Cazuza regravada pela cantora) https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-carnaval-da-tropicalia/ Julinho da Adelaide driblou a censura nos anos 70

“Em busca de Anselmo” e a gravidez de Soledad Barrett

Carlos Alberto Jr. consegue realizar um episódio tão bem realizado com olhos artísticos sobre a infâmia, que o episódio se destaca como um filme autônomo Agora está disponível na HBO Max a série “Em busca de Anselmo” em sua totalidade de cinco episódios. Nela, a face do cabo Anselmo como assassino pago pela ditadura brasileira é provada com imagens, palavras e documentos. Pela primeira vez, um trabalho de investigação cinematográfica e reportagem se faz sem cair no jogo ardiloso do bandido Anselmo, que sempre enganou jornalistas ao ser entrevistado. A série dirigida pelo documentarista Carlos Alberto Jr. é digna de ser conhecida por todos e todas como uma história da ditadura brasileira em imagens. E para o retrato do cabo Anselmo é inescapável a ligação com a sua companheira, a brava Soledad Barrett, que ele entregou para a morte na ditadura. Tive a honra de escrever o livro pioneiro sobre esse crime na minha novela “Soledad no Recife”, e depois, de modo mais amplo, no meu romance “A mais longa duração da juventude”, onde ela e Anselmo aparecem como pessoas com seus nomes reais, ao lado de outros como Jarbas Marques, um dos modelos de personagem para o livro. Jarbas foi um dos 6 mortos na Chacina da Granja São Bento. Na série, no quarto e quinto episódios, vemos as imagens raras do depoimento da advogada Mércia Albuquerque, imagens jamais vistas pelo grande público, no seu depoimento/denúncia na Secretaria da Justiça de Pernambuco. No quarto episódio, ao revê-la em seu papel de mulher corajosa, eu me levantei do sofá e gritei, porque era irreprimível: “Linda!!!”. Mas a sua beleza não vinha da estética do rosto. Vinha do seu heroico ato que a elevou para sempre nos corações de todos. Porque existe uma beleza que não é física, é uma qualidade moral, assim como vemos as soldadas do Exército Vermelho, assim como vemos aquele soldado maravilhoso que põe a bandeira comunista no alto do prédio nazista ao fim da guerra. Assim como é belo Cervantes, desdentado e maneta, ao construir o maior romance de todos os séculos. Linda, falei ali e repito aqui: Mércia era mais que linda, porque seus gestos e ações eram belos. Nesse último episódio de “Em busca de Anselmo”, o cineasta Carlos Alberto Jr. consegue realizar um episódio tão bem realizado com olhos artísticos sobre a infâmia, que o episódio se destaca como um filme autônomo. Nele, desde o começo desse quinto de denúncia, ficamos em choque diante de um Anselmo à vontade em um sítio, tranquilo, feliz, vaidoso como um bom filho da pura, da pura canalhice. O assassino se exibe como um bondoso homem, daquele tipo de cidadão de bem. Poderia ser dito da cena: matou a bravura de patriotas e foi ao paraíso. Mais adiante, colado a seu depoimento de voz serena, vemos ex-policiais, no enterro de Fleury, contando que Anselmo, de fato, dava cursos a eles, treinava-os, que Anselmo era um sábio da pedagogia da ditadura. Corta para o depoimento e a infâmia continua: agora, Anselmo conta que deu palestras para oficiais fascistas no Chile, como profissional, que foi bem pago! E completa com ar de galhofa: eu bem que queria mais um dinheirinho desses. Para concluir sobre as suas mentiras contra a esquerda e por seu trabalho de infiltração e entrega de militantes: “eu fiz um bom trabalho”. Como quem fala: eu fui perfeito. Mas há um outro momento no episódio que devo destacar. É quando Ñasaindy, a filha única de Soledad Barrett, é entrevistada na altura do ano de 2017. Ao responder a uma pergunta sobre a gravidez de Soledad, que Jorge Barrett (seu tio) nega, ela deixou em aberto. Ela não põe em dúvida a existência do depoimento da advogada Mércia Albuquerque. Ñasaindu até discorda de Jorge, irmão de Soledad, sem mencioná-lo, ao dizer que nem sempre o corpo da mulher grávida se modifica a ponto de outras pessoas perceberem no início. E Soledad poderia não ter contado da gravidez para Jorge. Mas a esta altura, a gravidez de Soledad Barrett não pode mais ser posta em dúvida, porque recupero inquestionáveis depoimentos a seguir. Leiam-se as palavras de Genivalda Silva, viúva de José Manoel, um dos executados pela delação do Cabo Anselmo na matança da Granja São Bento. Na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, ela declarou: “Poucos meses antes de matarem José Manoel. Então Soledad estava grávida e Anselmo me perguntou se eu conhecia alguém pra fazer um aborto em Soledad. Isso eu digo a vocês de coração, não estou mentindo nem levantando falso testemunho ao Anselmo. E eu falei pra ele: ‘Anselmo’, que eu nem sabia que ela era a esposa dele, eu disse ‘olhe, jamais, se eu soubesse te indicaria alguém pra fazer um aborto por que só quem tem que tirar a vida de um ser humano é Jesus, e mais ninguém. Por isso eu não lhe ensino’. E ele saiu com José Manoel, com o meu marido, com Zezinho, e a Soledad ficou dois dias comigo na minha casa. Mas ela era assim, uma pessoa muito calma, falava uma linguagem que eu não entendia quase nada, até que eu gostei da maneira dela, mas ela era assim no canto dela. Eu preparava o almoço, ela comia, eu preparava a janta, ela comia, mas era uma pessoa assim que não abria a boca pra mim pra comentar nada. Só foi uma coisa que eu perguntei pra ela assim: Você quer perder realmente seu filho? Ela balançou a cabeça, disse ‘não’, e as lágrimas desceram’ ”. Na mesma direção que confirma a gravidez de Soledad Barrett, o militante pernambucano, de nome Karl Marx, falou estas palavras na Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara: “Sempre que a gente estava conversando com o marido, o pseudomarido, pseudocompanheiro, que era o Daniel, sempre que ele estava conversando com a gente, ela estava com minha mãe e com minha cunhada lá na cozinha. E minha cunhada soube que ela estava grávida… Aí foi quando

Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota

  Colaborou Isabela Gama O CONVERSA AO VIVO ZONACURVA recebeu no último dia 5 de maio o escritor e jornalista Urariano Mota, colaborador há mais de 7 anos do ZonaCurva, e autor, entre outros, do livro “Soledad no Recife”, que conta a trajetória da paraguaia Soledad Barrett, militante nos anos da ditadura militar brasileira.  A conversa contou com a participação do editor Zonacurva Fernando do Valle e tratou, em boa parte do tempo, sobre a tragédia política, econômica e social que a ditadura militar representou para os destinos do país e sua relação com o momento político atual. Urariano relembrou os anos de chumbo, época em que fazia parte da resistência ao governo militar. O escritor relatou os crimes de Cabo Anselmo, agente infiltrado do governo no grupo de resistência Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Anselmo condenou à morte seis opositores à ditadura, incluindo sua companheira Soledad Barrett Viedma, grávida de quatro meses, quando decidiu entregá-los a Sérgio Fleury, conhecido torturador da ditadura, em 1973.  Urariano é autor de diversos textos sobre a luta contra a ditadura militar aqui no ZonaCurva.  Segundo ele, Anselmo sempre mentia sobre os fatos nas entrevistas que deu após a ditadura, e, na sua visão, o agente nunca tinha sido devidamente entrevistado corretamente, visto que os jornalistas dos veículos que conversavam com o cabo não se preparavam adequadamente para entrevista e eram enredados por suas mentiras. Porém, na opinião do escritor, a nova série da HBO+ Em busca de Anselmo traz uma nova perspectiva, onde se questiona a narrativa construída por Anselmo há décadas, trazendo mais veracidade, e contando corretamente as histórias da época. O processo de escrita de seu livro “Soledad no Recife” também foi explicitado por Urariano, que comentou sobre a importância de ser verdadeiro com os seus leitores, e com a história de seus personagens.  Em seu livro, a história de Soledad é narrada em primeira pessoa, e Urariano confessou sua paixão platônica pela militante, visto que o escritor e Soledad não chegaram a se conhecer. Urariano considera a lei de anistia uma insânia ao perdoar torturados e torturadores. “Perdoar pessoas como Fleury e Ustra é equiparar seus crimes com os atos de resistência e luta pela liberdade dos militantes da época”, declarou. História na veia com professor Vitor Soares Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo” Cabo Anselmo no seu obituário

Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo”

Quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor Para escrever este artigo, assisti hoje à série “Em busca de Anselmo”. No momento, só podem ser vistos na HBO Max os dois primeiros episódios, em um conjunto de cinco, um por semana. Portanto, o que escrevo agora tem um caráter de provisório. Ressalto de imediato que o documentarista Carlos Alberto Jr. é um cineasta. Isso não é assim tão óbvio. Quero dizer: as tomadas que ele faz, os lugares para onde leva Anselmo, as cenas que filma, são de um homem de cinema. No começo do primeiro episódio, quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor. Magistral. Carlos Alberto é um jornalista (editor do podcast Roteirices) que fez o seu dever de casa, estudou, pesquisou, o que o jornalismo não havia feito até hoje com o Cabo Anselmo. São exemplos disso o livro terrível de mentiroso “Eu, Cabo Anselmo”, de Percival de Souza e todas anteriores entrevistas. Mas para a víbora que Carlos Alberto viu e entrevistou, para a serpente documentada cabem, ainda assim, restrições ao método do cineasta: se os entrevistadores antes de Carlos Alberto Jr. pecavam por desconhecimento do grande mentiroso do agente da repressão, em Carlos Alberto, houve o que eu chamaria de excessivo respeito às mentiras do entrevistado. Quero dizer: Carlos Alberto não o interrompe, salvo raras vezes, pois deixa a mentira andar. Ainda que o documentarista contraponha às falas de Anselmo depoimentos que o desmentem em um corte com outros entrevistados, Carlos Alberto não o interrompe de viva voz, o que seria muito interessante para a mostra viva, na própria fala, das contradições de Anselmo. Isso é claro quando Anselmo visita a sede do antigo Deops em São Paulo, hoje Memorial da Resistência. Ali, num infeliz acaso para o traidor, ele passa diante de uma parede onde se expõem fotos dos 6 assassinados na Granja de São Bento em Pernambuco. Ali, diante de dois planos, com imagens da imprensa que publicava o que a repressão mandava, como aqui. E a reconstituição da história em outro plano, que narra a prisão de Soledad e Pauline numa butique no Recife, o criminoso fala: – Eu não sei qual das duas versões é a verdadeira. E o frio traidor não é cortado, no ato. Depois, num podcast, Carlos Alberto declarou que não era possível inquirir Anselmo o tempo todo, desmentindo-o. Mas que, no final da série, o traidor será levado contra a parede. Aguardemos então, que poderá vir um desmonte do bandido à altura da abertura do primeiro episódio. Anselmo era cínico e ator. Ator como uma difamação da arte. Os modos com que por 2 vezes se levanta de uma cama, com fingimentos e fazer pela primeira vez, são reveladores. Cenas repetidas. Nota-se que a memória dele é ótima, quando fala sobre o que não é sua atividade criminosa. As memórias da capela, da casa da sua adolescência, são reveladoras da sua agilidade mental. Mas o que não se perguntou, por exemplo: por que não atiraram em Anselmo quando ele foi preso em 1964, e estava com uma pistola apontada para a porta (segundo palavras dele). Como ele fugiu da prisão de modo tão fácil? Ele chega a falar que os carcereiros arranjaram prostitutas para ele! Lembro que no programa Roda Viva, Cabo Anselmo esteve muito à vontade ali porque os entrevistadores não pesquisaram a história dos seus crimes, e se fizeram esse indispensável dever, não quiseram levá-lo às cordas, para confrontar as suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife. O momento mais acintoso foi quando ele se referiu à sua mulher, Soledad Barrett, e dela retirou a gravidez, para se isentar de um hediondo crime, que cai como um acréscimo à traição de entregá-la para a morte. Transcrevo: “Cabo Anselmo – A Soledad usava DIU, desde que fez um aborto aqui em São Paulo, antes da ida para o Recife. Entrevistador – O senhor contesta a gravidez da Soledad? Cabo Anselmo – Como? Entrevistador – O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica … Cabo Anselmo – Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim. Entrevistador – Então o feto encontrado lá não era dela? Cabo Anselmo – Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico.” Então voltemos ao documentário. Nele, assistimos ao depoimento do bravo Marx, um pernambucano verdadeiro e sincero. No geral, os documentaristas raro exibem todas as palavras de um entrevistado. Montam e cortam. Assim deve ter sido também com Marx sobre a gravidez de Soledad que ele viu. O que ficou de fora? Aqui eu o recupero fora das imagens do documentário: Na noite em que acabamos de ver uma comovente recriação de Soledad Barrett no teatro Hermilo Borba Filho, quando a atriz Hilda Torres entrou em transe da personagem Soledad levada à cena, transe naquele sentido dos aparelhos, dos médiuns em terreiros, depois da mágica hora em que Soledad ressurgiu, depois disso no café, no pátio do teatro Hermilo, eis que a filha única de Soledad, a sempre menina e jovem Ñasaindy, se aproximou e abraçou o ex-preso político Karl Marx. Naquele instante em que eu conversava com Marx, Ñasaindy veio e lhe deu um súbito abraço. Então Marx parou e com os olhos rasos lhe falou, com a voz embargada: – Parece que estou abraçando a sua mãe. Ela era assim. Se fosse um poema, talvez a frase acima encerrasse um verso. Mas esta é uma narração e o narrador não recebe a misericórdia de ser humano em uma linha apenas. Quero dizer, primeiro do que tudo. Quarenta e dois anos

Não há meia democracia

Na democracia, assim como na gravidez feminina, não há meio termo. Não há meia democracia. É ou não é. Assume-se ou rejeita-se. Mas a imprensa parece ignorar esse fato e tenta conviver com um governo que adota princípios que negam na prática o compromisso democrático. A indefinição é o grande dilema da mídia brasileira às vésperas de um pleito que vai definir o futuro do país pelos próximos anos. Desde 2018, estamos assistindo à ruptura do consenso democrático surgido após o fim da ditadura militar e assumido pelo establishment político/empresarial, incluindo a grande imprensa brasileira. Foram justamente os jornais e a TV os primeiros a sentirem na carne os efeitos da ascensão do populismo autocrático. O governo Bolsonaro mostrou, desde o seu início, um olímpico menosprezo pelos princípios básicos da democracia, como a transparência pública, o respeito às decisões de justiça, a opção preferencial pela solução pacífica e negociada de conflitos, a recusa da tortura, censura e violência física. A imprensa não percebeu, ou não quis perceber, que o debate público migrou para outro espaço político a partir de 2016, quando da derrubada do governo Dilma Rousseff. Até então, a luta política acontecia dentro do campo democrático, mas a partir da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, ela passou a ser entre quem segue os princípios da democracia e os adeptos do autoritarismo populista de viés fascista (1). O descuido da imprensa O professor Eugênio Bucci definiu com perfeição o dilema atual da imprensa brasileira na sua intervenção na live dos 20 anos de fundação do PROJOR ( Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo) ao afirmar que “houve um descuido da maioria das redações em identificar a natureza da candidatura que acabou vitoriosa em 2018…era uma candidatura antidemocrática porque havia elogios a torturadores, uma certa idolatria do golpe de 1964, …. e um discurso machista, misógino e racista”. Bucci acrescenta ainda: “… se houvesse (hoje) na Alemanha uma candidatura nazista… ela seria denunciada (legalmente) porque o culto do nazismo é incompatível com a ordem democrática alemã, assim como o culto da ditadura, da tortura, da censura à imprensa é incompatível com o pacto nacional que gerou a democracia na qual tentamos sobreviver aqui” (2). A relativa impunidade do viés fascista assumido pelo governo Bolsonaro se alimenta de vários fatores entre os quais destacam-se a erosão interna do pacto democrático provocada pelo exercício do autoritarismo e a falta de um compromisso mais claro e contundente da imprensa com a defesa da democracia em todas as plataformas de comunicação social que estão sob seu controle. Não é um compromisso fácil porque a imprensa vive também uma crise no seu modelo de negócios, nas suas estratégias editoriais e no relacionamento com o público. Mas isto não anula o fato de que ela precisa estruturalmente da democracia para cumprir com sua responsabilidade na curadoria dos fluxos noticiosos que permitem às pessoas formar opiniões e tomar atitudes. Uma democracia tipo “meia boca” tem como corolário uma circulação também “meia boca” de notícias e informações, o que favorece a proliferação das ideias e iniciativas de viés fascista. As evidências são nítidas, mas boa parte da população brasileira ainda não se deu conta de que nas eleições de outubro próximo, a escolha será entre democracia e não democracia. Não é só entre dois candidatos, como se eles fizessem parte de um mesmo compromisso institucional, porque um deles se situa dentro do marco democrático e o outro incorpora um viés fascista que nega a democracia. O sistema político vigente no país tem os recursos constitucionais para enquadrar as tendências não democráticas, mas a falta de uma clareza sobre o antagonismo visceral entre democracia e não democracia leva muitos parlamentares, magistrados e jornalistas a não perceberem a natureza da escolha a ser feita nas urnas. Ilegalismos autoritários A erosão interna no pacto democrático nacional é uma das consequências da incapacidade da imprensa de mostrar aos seus leitores, ouvintes, telespectadores e usuários da internet a inexistência de meio termo quando se trata de exercício da democracia. Estamos hoje diante do que o professor Conrado Hubner Mendes chamou de “ilegalismo autoritário” (3), ou seja, o avanço gradual do desmanche das normas legais que garantiam a democracia brasileira através da Constituição de 1988. As indecisões da imprensa permitem que as tendências políticas de viés fascista encontrem espaço na opinião pública para promover uma “castração” da democracia brasileira. Este texto foge ao padrão adotado até agora na imprensa. Não é mais possível ser um mero observador do que acontece no país quando o sistema político que garante o exercício da nossa profissão pode sucumbir ante a ameaça do autoritarismo. (1) Preferimos usar a expressão viés fascista porque o fascismo clássico está associado a uma conjuntura italiana nos anos 30 e 40. O projeto bolsonarista mantém várias semelhanças com o modelo político do ditador italiano Benito Mussolini, como o autoritarismo, a militarização, o machismo e as motociatas, mas não é a mesma coisa. (2) Trechos da fala de Eugênio Bucci (ver íntegra em https://fb.watch/cqB-AgLFXe/) foram abreviados e levemente editados em favor da clareza e concisão. (3) Ver artigo “Ilegalismo autoritário é obra de juristas”. A democracia em risco Breve crítica da democracia louvada Sobre a democracia e o voto A terceira etapa do nazi-fascismo no Brasil não poderá ser derrotada somente nas urnas

Cabo Anselmo no seu obituário

Na morte do Cabo Anselmo, enfim, Soledad Barrett foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes dele   Faleceu o Cabo Anselmo. Pelo telefone, o escritor e jornalista André Cintra me comunicou a notícia há 5 minutos. Eu estava fazendo a sesta, mas dei um salto da cama. E estou até agora sem saber por onde começo o obituário de José Anselmo dos Santos. As notícias, com a sua natural objetividade, que nesse caso querem dizer, com todo natural desconhecimento da história, falam que José Anselmo dos Santos morreu na noite de 15 de março aos 80 anos em Jundiaí (SP). E que ele foi “agente duplo durante o regime militar”. Viram? Chamam de “regime militar” a ditadura e o terror de Estado no Brasil. Mas vamos ver se Deus nos ajuda a tentar alguma justiça para esse criminoso. Se retirarmos a infâmia da sua pele, tarefa difícil ou impossível, a primeira característica do Cabo Anselmo é que era um bom mentiroso. Primeiro, mentia sobre o seu nome: ele era Daniel, como se apresentava no Recife, ou Jadiel ou Jônata? Isso era o mínimo. Onde ele se excedia com artes de representação não só em palavras, era na frieza e cinismo com que se referia a seu maior crime: a entrega da companheira grávida, Soledad Barrett, à repressão. Em mais de uma entrevista, diante de repórteres comprometidos com a direita ou pela ignorância histórica, ele se referia à grande guerreira  com a finura de uma serpente. Na sua entrevista à Band, anotei que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo respondeu, com as duas mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que ameaçou ser rompido: “Opa!”. E Mitre, de volta: “Depois o senhor fala sobre ela”. E ele, “ah, claro”. E o que se viu depois foi  nada, ou quase nada. No Roda Viva, em um dos momentos de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barrett. Falou o entrevistador: ” O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica …?” Cabo Anselmo: ” Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim”. E o entrevistador levantou a bola para Anselmo : “Então o feto encontrado lá não era dela?” Cabo Anselmo respondeu: “Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico”. Infâmia fria sem contestação. Mas conheçam a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife, junto a Soledad. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento: “A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado”. E definitivas são as palavras na denúncia da advogada Mércia Albuquerque: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”. Na morte do Cabo Anselmo, enfim, Soledad Barrett foi e continua a ser o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes dele. Ela aponta para José Anselmo dos Santos e lhe sentencia, aonde ele for: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha”. Que o inferno lhe seja pesado, enfim. Por toda a eternidade. Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo” A morte de Vladimir Herzog e o Brasil que não queremos Canto de liberdade para José Amaro Correia A ditadura brasileira e os dois demônios

Marighella, imortal no Tempo, nas vozes de Whitman, Maiakovski, Neruda, Shakespeare e Nietzsche

Marighella – Algum predador poderia tê-lo visto desembarcar ou farejado seu corpo que se esgueirava pelo caminho que conduzia ao Tempo naquela noite escura, do dia quatro de novembro de 1969. O homem atacado, desconfiado, alerta, caminhava com esforço. Vinha do sul e também do norte, do oeste e também do leste, de todas as direções de sua Pátria que fora desde sempre toda a Terra. Quando se deteve frente a mim percebi que, a cada passo dado, as feridas das balas recebidas cicatrizavam; as unhas se recompunham. A respiração ofegante, sossegava. Os lábios, então, se abriam para mim num sorrir franco. Agora ele todo, Carlos irradiava felicidade, aquela que tem um náufrago ao chegar num porto seguro. Olhou-me e descortinei olhos duros da decisão e ternos no mirar, que naquele momento não expressavam medo ou amargura, tristeza ou dor. Um olhar onde a pureza e a transparência se abrigavam, num arder que não havia visto outro igual. Intuí que, finalmente, no Tempo onde aportara, era lhe concedido o direito ao repouso, a salvo dos predadores tão universais. Predadores que inúmeras vezes o atacaram, com ferocidade inaudita. No Tempo, estes haviam perdido a batalha. Marighella era aquele que escolhera ter na vida a obrigação exclusiva de sonhar e lutar para tornar suas utopias realidades e para que outros homens compartissem do mesmo sonho. Homens que, dos próprios devaneios, retiravam o alimento único para a alma combalida e a conduziam a tremendos embates. Sentei-me a seu lado. O que se passaria por trás dos olhos dos quais eu não conseguia despregar os meus? Num instante, naquele olhar, descortinei uma fileira de outros seres, homens e mulheres livres de todas as amarras, caminhando de mãos entrelaçadas pela senda sem fim da vida, entregues à aventura do existir, do compartir, desfrutando de uma experiência coletiva, de um gozar, de um amar que é o viver, o sofrer e o morrer. Agora para ele, o recém-chegado, a corrida e o labor haviam terminado, mas não o projeto mágico ao qual se dedicara desde todo o sempre. Projeto de um espírito que desesperadamente busca por iguais em todo o universo, seres libertos para compartirem, juntos, sonhos imortalizados. E a cada sonho, ele e seus companheiros de viagem combateram forças muito superiores que os destruíam, que os matavam, esquartejavam, mas que jamais os impediam de tornar a reviver, de se multiplicarem em outros corpos, prendas únicas de um sonhar coletivo. E então, de forma lenta e cuidadosa, fui caminhando para dentro daquele universo, até sentir-me incluído em seu sonhar. Percebi que ele também me penetrava, e ambos nos descortinávamos no mais íntimo de nossa intimidade. E nesse instante vi em seu olhar emergir a luz tão resplandecente da aurora: compreendera que não sonhava mais só, não havia nenhum segredo a nos separar, num ápice do seguir irmanado. Expressei-lhe meu desejo de que me desse um nome pelo qual pudesse chamá-lo. Ele que já tivera diversos, os próprios e os emprestados. Possuo tantos nomes, mas se sentir que isto lhe é importante chame-me Carlos, Marighella, Ramón, Menezes, o que importa? Dei-me conta que o leve acinzentado de sua pele desaparecia, transformando-se em branco, depois na cor mulata de Carlos, numa tez que adquiria todos os matizes que o são da humanidade. Ele agigantara-se ao estender-me a mão, que apertei nas minhas. Seu porte avolumado levou-me a percebê-lo numa dimensão superior a todos os seres que eu jamais conhecera e conhecerei. Vamos, meu amigo, precisamos seguir, disse-me baixinho. Mas não faça ruídos, não tropece, permaneça bem junto a mim, pois nos sonhos como na vida muitos são os caminhos e os descaminhos, os vãos e desvios pelos quais podemos deixar escapar nossa alma. E, então, tal qual Dante, segui o meu Virgílio atentamente, em silêncio. Percorremos um longo corredor onde tudo era escuro, ausência, caminho repleto de portas fechadas onde poucas se abriam ao nosso passar. Ao final de um tempo sem tempo, aquilo que parecia ser uma senda infinita abriu-se como que por um passe de mágica numa clareira luminosa e o ar puro trouxe-nos o perfume de todas as flores e o som da água cristalina a correr num rio, o da Memória. Não foram necessárias palavras, eu sabia que chegáramos ao lugar que ele desejara desde o princípio encontrar. Pressentidas presenças, não estávamos mais sós. Espectros, sombras foram adquirindo formas e aproximavam-se. Carlos colocou uma mão em meu ombro, amparando-me sem o que talvez eu tivesse me dissolvido. Meus encontros com Marighella De uma Sombra ouvi em forma de poema, “Nossos atos são os nossos anjos bons e maus a andarem ao nosso lado”. E, antes de afastar-se, dissolvendo-se no éter, a sombra ainda sussurrou: “Nós somos essa matéria de que se fabricam os sonhos, e nossas vidas efêmeras têm por acabamento o sono”. Carlos, então, parando disse-me: “Não existem no mundo dos poetas nem relatos e nem poemas imparciais, porque cada qual vê o mundo de seu próprio modo. Eu sou parte desta sombra, como de todas as que lutaram o bom combate do conhecer a si mesmo, do deslumbrar os limites de cada individualidade, tornando o homem livre das correntes que o escravizam às tradições, aos preconceitos e aos outros homens. Creia-me, sempre a humanidade necessitou e necessitará de uma luz, de um sinal que a conduza no sentido inverso da animalidade, pois ‘se as estrelas se acendem é porque alguém precisa delas, é porque, em verdade, é indispensável que sobre todos os tetos, cada noite, uma única estrela, pelo menos, se alumie’”. Pressenti nova Sombra a aproximar-se e um suave e agreste perfume de gerânios a acompanhava. Num instante a senti amável, doce, e se fosse permitido a um espectro sorrir e abraçar sei que ele o faria com certeza: “Aqui temos só a sombra e a morte, mas lá longe, do outro lado da montanha, o sol ainda irá se levantar sobre um mundo novo! Lá, além da planície, sempre o solo estremecerá sob os passos inumeráveis de homens impávidos

A ditadura brasileira e os dois demônios

Aqui, continuamos com os dois demônios no discurso da direita: “Se houve assassinatos, houve assassinatos dos dois lados”. Pior, temos continuado sob o demônio do terror de Estado, pois volta o negacionismo da ditadura Leio na SWI swissinfo.ch: “Buenos Aires, 8 dic (EFE).- El presidente argentino, Alberto Fernández, homenajeó este miércoles a las doce personas secuestradas entre el 8 y el 10 de diciembre de 1977 en la Iglesia de la Santa Cruz, uno de los episodios más recordados de la última dictadura cívico-militar argentina (1976-1983). Entre los desaparecidos se encuentran tres referentes de Madres de Plaza de Mayo (Azucena Villaflor de Vicenti -fundadora de la agrupación-, María Ponce de Bianco y Esther Ballestrino de Careaga), así como dos monjas francesas (Léonie Duquet y Alice Domon). “Acá no hubo dos demonios. Hubo un terrorismo de Estado que se llevó la vida de miles y miles de argentinos y argentinas. Este es un homenaje que la Argentina le debe a cada víctima del terrorismo de Estado”, aseguró Fernández en declaraciones recogidas por Presidencia” (1) E mais leio, em notícia da Casa Rosada: “El presidente Alberto Fernández señaló esta noche que ‘hoy lo central es la memoria, lo central es mantener en pie la exigencia de la búsqueda de la verdad y la justicia’, al participar del homenaje a las 12 personas secuestradas entre el 8 y 10 de diciembre de 1977 por la dictadura cívico militar”. (2) Que diferença para o Brasil! Aqui, continuamos com os dois demônios no discurso da direita: “Se houve assassinatos, houve assassinatos dos dois lados”, falam, enquanto omitem os prisioneiros torturados e mortos de um só lado. Pior, temos continuado sob o demônio do terror de Estado, pois volta o negacionismo da ditadura. O governo fascista chama de heróis autores de crimes contra a humanidade. Sobre nós, como um Pentecostes do terror, desce uma nova língua que zomba da civilização. Então sou obrigado a voltar à memória do que a extrema direita do Brasil quer esconder. Isto é, vou a uma página do meu romance “A mais longa duração da juventude” em um trecho que narra o ano de 1973: “Nas pessoas que vi não houve mártires. Nelas jamais existiu a dor, a morte como um estágio para a vida futura, deles próprios, indivíduos, nunca. O futuro era para todos, seria para a humanidade. É difícil, um satanás me sopra, ter mudança apoiada em ideias gerais. Espanto essa dispersão do satanás. Tenho a visão de que os militantes massacrados foram heroicos, mas o heroísmo não estava nos seus planos. Ainda que proclamassem, em panfletos e discussões acaloradas, que a repressão não passaria, que eles, os guerreiros, iriam até as últimas na defesa das suas convicções, ainda assim, uma coisa é o que se fala, outra é o momento mesmo da definição real. E para essa última realidade nunca estamos preparados. Age-se ou morre-se. Pior, agimos e morremos. Vargas estava apavorado. ‘Pavor, pavor, os olhos de Vargas eram só pavor’, registrava a advogada Gardênia no diário. E por ela, por sua palavra de verdade, registro nunca desmentido das páginas do seu diário, bem podemos vê-lo. Quando Vargas subiu no elevador daquele edifício Ouro, ele era um homem apenas desesperado. Sem a certeza dos passos que daria a partir de então. Para ele havia ficado claro que Daniel, o simpático, prestativo e corajoso Daniel, não passava de um agente infiltrado. A informação lhe fora confirmada por pessoa de confiança, o primo Marcinho. E a sua pista e confirmação era a de que o ‘bravo’ Daniel usava o carro de um coronel do Exército, militar anticomunista. Então Vargas soube que seria o próximo a cair. Mas não sabia para onde, nem a extensão precisa da altura do precipício de onde seria empurrado. Ele era o ‘terrorista’ a ser preso a seguir. ‘Preso’, era a sua esperança frágil e incerta. Ele se via no elevador como uma chama de vela soprada por vento numa noite escura. A sua vida era uma chama que se curvava, diminuía, e ele com as mãos procurava proteger. Na verdade, nem tanto a ele próprio, porque já se via mesmo jogado na bagaceira como um resto de cana moída, mas a chama que não queria apagar era a da sua companheira, a terna e indefesa Nelinha, a pequena e única Nelinha. Que os malditos, os fascistas chegassem até ele, isso era previsível. ‘Eu sou um homem’, ele se diz no íntimo, mais como um desejo do que como uma certeza. ‘Se não sou um homem, eu o serei’, ele se diz depois, antes de apertar a campa do apartamento da advogada Gardênia. Mas como as coisas, mesmo ali, possuem um acento irônico. ‘Campa’, ele aperta com as mãos trêmulas, que pode dar na outra campa, do cemitério. O que se passa com um homem quando caminha para a sua morte? Entrou no prédio quase de um salto, como quem entra no consulado em área livre da guerra civil. Subiu no elevador como as pessoas sem saída vão, e agora aperta a campa da advogada com a sua chama trêmula. Vida açoitada pelo vento em suas mãos. ‘Eu sou um homem’, e de tanto ódio pela tremedeira incontrolável, fecha os punhos, trinca a boca, pressiona os maxilares. ‘Eu sou um homem, porra. Eu não traio. Eu não trairei o que eu sou. Porra!’. E a porta se abre. À sua frente surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem, e nem

Brasil: segue o “bonde” da destruição

7 de setembro – O presidente do país segue governando na lógica do factoide, imitando seu ídolo Donald Trump. Parece não ter se dado conta do que aconteceu lá na matriz que tanto ama. A tática do factoide não deu certo. Trump foi derrotado fragorosamente. Por aqui, os marqueteiros do presidente continuam incentivando a mesma toada que, ao que parece, só serve mesmo para animar a sua plateia cativa. Foi o que se viu. As chamadas “lideranças” dos atos que visavam invadir o STF e cortar a cabeça do ministro Alexandre Moraes foram presas, responderão na justiça, e provavelmente serão abandonadas para que se virem como possam. Milhares foram para Brasília armados da esperança de que os comunistas finalmente seriam eliminados – física e politicamente. Eram de impressionar os áudios e vídeos, que circulavam pela rede bolsonarista, sobre estocar comida, remédio, água e trancar as janelas porque a coisa seria estrondosa. Não foi. O que se viu foi um discurso pífio, tentando reanimar a claque para outro “amanhã”. O golpe seria adiado e fora só um susto no ministro, o qual não será mais obedecido “sob hipótese alguma”. Os seguidores mais renitentes voltaram para casa ainda sob o efeito da catarse, prontos para a nova investida que virá quando o presidente chamar. Outros voltaram desiludidos. Esperavam o apocalipse, ainda que no momento em que a polícia atuou, muito gentilmente, aliás, queriam que gravassem vídeos desesperados em meio à correria, gritando que era um absurdo a polícia tentar impedi-los de chegar ao STF. Estranha gente que pede ditadura e sequer entende o que isso possa significar. O Brasil esperou o desenrolar dos fatos. Uns com medo, outros comendo pipoca em frente à televisão e uma grande parte em luta, nos atos de protesto contra a carestia da vida e a falta de um governo para enfrentar os grandes dramas nacionais como a fome e as crises hídrica e energética. As redes de televisão deram visibilidade para as manifestações dos dois lados e foi possível avaliar com bastante informação as duas frentes de batalha. Os atos pró-governo foram grandes em São Paulo e Brasília, mas também deixaram claro sobre quem são esses aliados, na sua maioria uma classe média alta que sequer consegue enxergar os efeitos desse governo sobre si mesma. Por outro lado, nas colunas dos protestos estavam os trabalhadores organizados, a juventude, os estudantes, os sem-terra, os sem-teto, enfim, os que sempre estiveram na luta. A luta de classes bem demarcada nas ruas. O chefe de governo, que tem mais de 100 pedidos de impedimento no Congresso, fez o que sabe fazer. Esticou a corda mais um pouco. Até agora tem nadado de braçada, sem que nada ou ninguém o obstaculize. As chamadas instituições democráticas fazem ouvidos moucos aos seus ataques à Constituição e permitem que a roda da economia siga girando em favor da classe dominante. Os trabalhadores vão sendo acossados, as privatizações seguem, o agro comanda e tudo parece bem. O judiciário fisga peixinhos enquanto o líder do cardume segue tranquilo. Nada lhe toca. A fascistização do governo é pop nas altas rodas. O sete de setembro foi uma patacoada. Mostrou que o governo perdeu apoio e apenas mantém seu reduto inicial formado por ultraconservadores e reacionários de carteirinha, bem como outros que ingenuamente acreditam nas mentiras disseminadas à exaustão sobre o comunismo e blá, blá, blá. Mas, ainda assim, é uma parcela barulhenta e em sistemático estado de agitação. As forças de esquerda, as institucionalizadas, agiram com timidez. Como sempre, são os trabalhadores os que se movem para além dos líderes. Esses sabem que muito pouco têm a perder indo para a luta nas ruas. E, por isso, vão. A aprovação do presidente despenca. Mas ele tem cartas na manga, não nos enganemos. Enquanto a burguesia nacional não se descolar dele, ele seguirá esticando a corda para garantir mais um mandato. A turma do andar de cima ainda está ganhando muita grana e vê passar no Congresso Nacional muitas de suas pautas que vão contra trabalhadores. Para eles tá suave. A batalha real será mesmo nas ruas. E os trabalhadores organizados devem dar o tom. Adeus 2021, sem saudade https://urutaurpg.com.br/siteluis/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/

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