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Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

A guerra fria esquenta

Guerra fria – Os EUA, o mais poderoso império da história, são como o deus asteca Tezcatlipoca, alimenta-se de vítimas humanas. Um dos principais motores de sua possante economia é a indústria bélica. É preciso que haja guerras para que Wall Street obtenha altos dividendos. Ao longo do século 20, o inimigo permanente era o comunismo. Combatê-lo justificava gastos bilionários, e até mesmo golpes de Estado na América Latina para implantar ditaduras sanguinárias. Derrubado o Muro de Berlim e desaparecida a União Soviética, a Casa Branca precisava ter novo alvo para evitar a ociosidade da máquina bélica. E não tardou em encontrá-lo: o terrorismo. Com a vantagem de não ser um inimigo geograficamente localizável nem a ser vencido, como em uma guerra entre países. É um inimigo a ser permanentemente combatido, o que assegura perenidade ao apetite insaciável de Tezcatlipoca. Na segunda semana de seu mandato, Trump declarou: “Estou assinando uma ação executiva para iniciar uma grande reconstrução dos serviços militares dos EUA”. Seu secretário de Defesa, James “Mad Dog” Mattis, disse ao Washigton Post ser preciso “examinar como realizar operações contra concorrentes próximos não identificados” . Óbvio, não se referia a OVNIs, e sim à Rússia e à China. Em 19 de janeiro de 2018 foi mais explícito: “Apesar de continuarmos a promover a campanha contra os terroristas, na qual estamos engajados hoje, a competição entre grandes potências, não o terrorismo, é agora o foco principal da segurança nacional dos EUA”. Segundo o Departamento de Defesa, em relatório de 2018, os EUA mantêm 625 bases militares oficiais em países estrangeiros. O pesquisador político David Vine revelou, em 2021, que, contabilizadas as bases clandestinas, haveria cerca de 750 bases militares estadunidenses. Rafael Correa, quando presidente do Equador, solicitou à Casa Branca permissão para abrir uma base militar equatoriana em Miami, caso os EUA quisessem continuar a manter a base aérea de Manta, na costa do Pacífico. Manta foi fechada. O orçamento militar dos EUA (2023) é de US$ 858 bilhões, 35% do total mundial. Qual o objetivo de tanto dinheiro jogado fora em um mundo que abriga 3 bilhões de pessoas na pobreza, das quais 821 milhões padecem fome crônica? Proteger o modelo made in USA de democracia, leia-se, a apropriação privada do capital. Segundo Chomsky, “sempre que houve conflito entre democracia e ordem, definida como proteção das elites na acumulação do capital, os EUA ficaram do lado desta” . Essa perversa ideologia deita raízes no século 19, quando James Madison, um dos “pais fundadores da nação”, declarou: “Nas democracias, os ricos devem ser poupados; não apenas sua propriedade não deve ser dividida, mas também suas rendas devem ser protegidas.” A defesa da propriedade privada (de uns poucos, evidentemente) e da acumulação privada do capital exige também proteção interna. Daí a principal arma ideológica do sistema: o medo! Medo do negro, medo do imigrante, medo dos que não são cristãos ou judeus, medo dos pobres. Hoje, o que a Casa Branca mais teme é que a China ultrapasse os EUA em inovação tecnológica e seja o polo hegemônico do planeta. Isso porque o gigante asiático tem dinheiro suficiente para investir em pesquisas, já que não mantém nenhuma base militar fora de suas fronteiras e gasta apenas US$ 230 bilhões no setor bélico. Por isso, o imperialismo provoca a China de todas as maneiras, visando a forçá-la a entrar na corrida armamentista, da qual a Rússia participa. Para os EUA, é desesperador perder a hegemonia mundial adquirida após a Segunda Grande Guerra. Hoje, no mundo multipolar, a China desponta como a mais forte economia do planeta. E o arsenal nuclear da Rússia supera o dos EUA. A Casa Branca se mostra indignada com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Alega que não houve consentimento da ONU. Haja cinismo! Os EUA invadiram a Rússia em 1918, sem sucesso. E, sem consentimento do Conselho de Segurança da ONU, invadiram Santo Domingo, em 1965; invadiram e bombardearam os territórios do Vietnã e do Camboja durante toda a década de 1960; invadiram o território da Somália em 1993 (300 mil mortos); do Afeganistão em 2001 (180 mil mortos); do Iraque em 2003 (300 mil mortos), da Líbia em 2011 (40 mil mortos); da Síria, em 2015 (600 mil mortos); e finalmente, do Iêmen, onde já morreram aproximadamente 240 mil pessoas (Fiori, 2023). Quem protesta pela ocupação usamericana de Porto Rico desde 1898, e de Guantánamo, em Cuba, desde 1903? E do bloqueio a Cuba, que dura mais de 60 anos? Será amarga, para a Casa Branca, a provável derrota da Ucrânia pela Rússia. Biden terá de engolir a seco, consciente de que isso afetará sua reeleição no próximo ano. Sabe que sua única reação “à altura” seria catastrófica para a humanidade: o confronto nuclear. Os países da União Europeia, monitorados pelos EUA via Otan, sabem também que a guerra da Rússia contra a Ucrânia é um atoleiro no qual se meteram. Só não sabem como sair dele. E o mais grave: todas as sanções impostas à Rússia em nada afetaram o país. Pelo contrário, o rublo se fortalece. E vários países europeus, a começar pela Alemanha, já estavam irritados com as explosões que, em setembro de 2022, destruíram os gasodutos Nord Stream 1 e 2 no Mar Báltico, que os abastecia de gás natural. Agora a irritação deu lugar à fúria: não foram os russos que interromperam o fornecimento; a responsável pelas sabotagens foi a CIA. Ora, aqui no Ocidente conhecemos a narrativa do caçador, não a da lebre. Nossa cabeça é feita por Hollywood e pelas fantasias de Walt Disney, que nos impingem a convicção de que, para a Casa Branca, a liberdade é mais que o nome de uma estátua na divisa entre Nova York e New Jersey. E multidões acreditam no discurso fake de Tio Sam. Até porque, neste lado ocidental do mundo, pouco sabemos da versão do lado oriental.

O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira

Jornalismo futuro – O jornalismo precisa escolher entre ser uma atividade sem fins lucrativos ou estar associado a uma prática comercial. É uma escolha nova diante de uma situação, também nova, vivida pela profissão desde o início da era digital. Trata-se de optar entre condicionar o exercício e a sustentabilidade financeira do jornalismo ao interesse social, ou manter a situação atual em que os objetivos econômicos e políticos dos donos de empresas jornalísticas determinam quais as notícias que serão publicadas e com que ênfase. Jornalismo “sem fins lucrativos” não é um jornalismo filantrópico e nem é um sinônimo de atividade voluntária não remunerada. É um termo usado para expressar a prioridade do social sobre o lucro resultante de comercialização da notícia, na hora de definir a agenda jornalística de um jornal, emissora de rádio ou telejornal. O jornalismo sem fins lucrativos depende de faturamento tanto quanto as empresas convencionais só que os lucros eventuais são distribuídos entre quem trabalhou e não apenas entre os acionistas. O surgimento desta modalidade de jornalismo está diretamente associado à revolução tecnológico/digital. Até agora, o exercício do jornalismo estava condicionado pelas circunstâncias econômicas que historicamente vincularam a produção de notícias à necessidade de investimentos financeiros. A herança analógica Como era inevitável, a exigência de lucratividade e as pressões pela sobrevivência num mercado altamente competitivo levaram os empreendedores a se apropriarem da mensagem social e transformadora do jornalismo para atrair leitores, ouvintes e telespectadores. Surgiu assim uma situação contraditória em que a prestação de serviços informativos à população acabou subordinada à prática comercial. A função social passou a ser condicionada pelo cotidiano da lucratividade empresarial. A associação entre jornalismo e negócios foi, portanto, a consequência de uma conjuntura tecnológico-financeira e de um contexto histórico definido. É inadequado fazer um julgamento moral, tipo bom ou mau, certo ou errado. Não se pode julgar o ecossistema informativo dos séculos XVIII e XIX com as ferramentas teóricas e práticas do século XXI, mas o jornalismo precisa perceber que a realidade mudou e muito. Ilustração Wikimedia / Creative Commons Com a chegada da era digital, a nova realidade acabou atingindo o principal alicerce do modelo de negócios que viabilizou a sobrevivência econômica do jornalismo durante quase dois séculos. As tecnologias digitais eliminaram a necessidade de investimentos significativos para a produção noticiosa em texto, áudio e vídeo. Com isto, foram criadas as condições tecnológicas e financeiras para a multiplicação de projetos jornalísticos de todos os tipos, para o surgimento das redes sociais e, principalmente, para a participação de pessoas comuns na produção colaborativa de notícias. A inovação tecnológica na área da informação e comunicação assumiu um ritmo frenético, criando angustiantes dilemas econômicos para a imprensa, principalmente depois que a publicidade migrou para a internet reduzindo em até 70% a receita da maioria absoluta das empresas jornalísticas. Mas a cultura profissional herdada do jornalismo da era pré-internet não se atualizou na mesma velocidade. A geração de profissionais com 40 anos de idade ou mais ainda convive com os hábitos e procedimentos determinados pela condição de assalariados em empresas que buscam a maximização de seus lucros. São valores, normas e rotinas entranhados profundamente no processo de produção de notícias, entrevistas e reportagens. Não é fácil e nem rápido mudar uma situação como esta. O desafio da sustentabilidade Entre todas as mudanças de valores, normas e rotinas já em curso, a mais complicada é a relativa à sustentabilidade financeira da atividade jornalística. A complexidade na abordagem desta questão resulta tanto da necessidade um novo modelo de negócios para a atividade profissional como, principalmente, da inevitável associação entre este novo modelo e a valorização da função social do jornalismo. Nas últimas décadas, surgiram várias propostas como jornalismo cidadão, jornalismo cívico, jornalismo comunitário e jornalismo social. Quase todas elas procuravam enfatizar a necessidade de a profissão reduzir sua dependência das práticas comerciais para conferir mais espaço às questões sociais na agenda da imprensa. Mas, no fundamental, estas alternativas buscavam corrigir a avassaladora predominância dos interesses corporativos e da luta pelo poder político na agenda da imprensa. Não se trata de uma alteração determinada apenas pela preocupação com questões éticas ou com o que chamamos de ‘politicamente correto’. A ênfase na função social do jornalismo tem razões estruturais determinadas pelo novo ecossistema informativo mundial. O jornalismo não pode depender mais da publicidade para sobreviver tanto financeiramente como na produção de notícias. A avalanche informativa inviabilizou o sistema vigente até agora. O jornalismo passou a depender, cada vez mais, do apoio direto do público através de diferentes modalidades de acesso pago às notícias. Isto cria a necessidade de uma reorientação na agenda informativa da imprensa para temas que envolvam a população. A agenda focada na política e nos negócios transformou o público em observador passivo dos acontecimentos, condição na qual as pessoas têm poucos estímulos para financiar o exercício do jornalismo, especialmente em momentos de crise econômica como o que estamos vivendo. As formas pelas quais o público financiará o jornalismo ainda são uma grande incógnita e um terreno que começa a ser explorado, especialmente no âmbito local e em experiências universitárias, nos Estados Unidos e Europa. Pelos resultados obtidos, já se sabe que não haverá um modelo único e que este será desenvolvido em conjunto entre as pessoas comuns e os profissionais do jornalismo, com o apoio de pesquisadores acadêmicos. Apesar das incertezas ainda existentes, já existe um quase consenso de que o futuro do jornalismo depende do seu engajamento social e que este, por sua vez, só poderá sobreviver e crescer se for sustentável financeiramente, através de sistemas onde a busca do lucro não seja a motivação principal dos empreendedores. Nota do autor O objetivo deste texto é alertar meus colegas de profissão para a necessidade do debate sobre a sustentabilidade financeira do jornalismo, seja ele exercido de forma autônoma ou em empresas. Há uma relação direta entre a produção de noticias e a base econômica que garante a sustentabilidade da profissão. Hoje temos várias opções, daí a urgência do debate. Publicado originalmente na página

Nós, jornalistas, temos uma dívida com Bruno e Dom

Bruno Pereira e Dom Phillips – O assassinato de Dom Phillips colocou o jornalismo brasileiro diante da obrigação profissional de continuar e aprofundar a investigação que o colaborador do jornal britânico The Guardian vinha fazendo sobre a ampliação do controle do crime organizado na Amazônia. A captura e punição dos criminosos é uma obrigação do estado brasileiro, mas o detalhamento do processo criminoso que motivou a execução de Dom e do indigenista brasileiro Bruno Pereira deveria ser uma missão assumida por todos aqueles profissionais que consideram o jornalismo uma função social insubstituível. O duplo assassinato no interior da floresta amazônica assinala um momento em que o exercício do jornalismo ultrapassa os limites de uma cobertura normal. Marca um contexto em que a investigação jornalística se torna indispensável à produção de informações capazes de habilitar a sociedade brasileira a reassumir o controle sobre a Amazônia, hoje parcialmente nas mãos do crime organizado. Dom e Bruno seguiam um filão informativo que os colocou em confronto direto com grupos do crime organizado na Amazônia. O recurso à execução sumária mostra que os dois estavam desencavando informações e nomes muito importantes, capazes de comprometer uma estrutura envolvendo narcotráfico, milícias, políticos e grupos empresariais. O trabalho dos dois precisa, portanto, ser continuado tanto como uma homenagem ao sacrifício e à memória de ambos, mas também, e principalmente, como uma demonstração de que o jornalismo está ciente das responsabilidades que a profissão tem no momento que a informação passou a ser a principal arma do cidadão comum na defesa do patrimônio coletivo. A identificação do processo criminoso responsável pelo assassinato de dezenas de ativistas ambientais, lideranças indígenas e agora também de um jornalista configura uma tarefa que não pode ser executada apenas por um profissional ou por um órgão de imprensa. Vai muito além porque precisa identificar toda a capilaridade da organização criminosa. Investigação jornalística colaborativa Por isto, o aprofundamento das investigações de Dom e Bruno, inevitavelmente, terá que ser um esforço coletivo, no estilo crowdsourcing (jargão inglês para investigação coletiva e colaborativa). Um esforço cuja amplitude cria a necessidade de iniciativas diversificadas de coleta e interpretação de dados que, obviamente, terão que ser coordenadas por uma instituição, como a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), dotada de prestígio e representatividade nacional suficientes para promover a colaboração entre profissionais de todo o país e até do exterior. É essencial conhecer o que Dom e Bruno já tinham recolhido em suas investigações e quais os próximos passos que pretendiam dar. Inevitavelmente, isto concentra as investigações iniciais na área geográfica em que o crime ocorreu. A partir daí surgirão os fios condutores de investigações em âmbito estadual, regional, nacional e até internacional. O governo e a polícia brasileira se preocuparão em esclarecer o assassinato do jornalista inglês e do indigenista brasileiro, mas não irão ao fundo do problema por questões administrativas e pelo medo de conotações político-eleitorais. Se depender das autoridades constituídas, o processo de instalação do crime organizado na Amazônia não será tocado, e é neste ponto que está o principal diferencial entre a ação jornalística e a atividade jurídico-policial. A milicianização da Amazônia é um verdadeiro câncer político que, se não for desvendado a curto prazo, vai provocar uma metástase nacional, já perceptível em partes isoladas do país, como no Rio de Janeiro. O jornalismo brasileiro pode transformar Dom Phillips e Bruno Pereira em ícones desta imensa tarefa que acaba de ser colocada diante da nossa profissão.   https://urutaurpg.com.br/siteluis/indigenista-exilado-conversa-ao-vivo-com-ricardo-rao/ Segue o massacre aos povos indígenas

O que é ser jornalista hoje?

A imagem clássica do jornalismo deixou de ser a do repórter com bloco de notas e caneta na mão. Ele não é mais o único que produz uma notícia. Há múltiplos atores agora. É o fotografo que documenta flashes de uma realidade. É o cinegrafista que registra uma cena. O programador que monta um infográfico animado. Quem cria um projeto de realidade virtual para tornar visível algo que o repórter não viu, o fotógrafo e o cinegrafista não conseguiram documentar, e finalmente o designer que vai arrumar tudo isto numa página web criando alternativas de visualização personalizadas. Não estamos mais diante de um único responsável pela produção de uma notícia, reportagem ou entrevista, mas de uma equipe de jornalistas especializados, o que altera consideravelmente o conjunto de rotinas, regras e valores no exercício da atividade. Mas o jornalismo ainda vive a cultura centralizadora do repórter ao qual são atribuídas as virtudes, responsabilidades e revezes da profissão. O repórter é, geralmente, quem sinaliza o que pode vir a ser um conteúdo de interesse e utilidade para o público, mas ele não determina mais como e quando este conteúdo será distribuído. O jornalismo da era digital é praticado hoje por grupos de pessoas, atores na linguagem acadêmica, o que implica pesquisar tanto cada um dos indivíduos da equipe como o seu conjunto, já que existem diferenças de comportamentos. O caráter coletivo da produção jornalística contemporânea faz com que os demais atores não possam mais ser considerados periféricos ou menos importantes na escala de valores da profissão.   Experiência x inovação O jornalismo é uma profissão onde os anos de experiência são considerados um valor importante na cultura profissional. Acontece que os profissionais mais respeitados por sua experiência têm uma forte herança analógica, logo tendem a colocar a centralidade do repórter como o fator determinante no que deve ou não ser levado em conta numa notícia ou reportagem. Nada contra a experiência, ainda mais porque eu sou um integrante desta geração de profissionais formados na era analógica. Mas a realidade mudou e hoje os critérios para indicar a noticiabilidade de um dado, fato ou evento não passam mais apenas pelo crivo do repórter. Não temos ainda uma narrativa jornalística multimídia. Quando os mais velhos querem saber o que está acontecendo, eles inevitavelmente acabam em alguma página de jornal, revista ou sites noticiosos como Huffington Post, Google News ou projetos como Meio e Poder360. É a herança analógica, onde a confiabilidade de uma notícia está fortemente vinculada ao seu formato textual. Já os mais jovens recorrem geralmente às redes sociais, onde a regra é a transmissão de informações no formato coloquial, onde os sons e gestos são parcialmente expressos em emoticons ou gifs animados. Enquanto os comportamentos, normas e valores herdados da era analógica impõem uma formatação rígida dos conteúdos estabelecida nos manuais de redação, a transmissão de informações via redes sociais é vulnerável a distorções, desinformação e fake news porque as pessoas estão mais preocupadas em se comunicar do que com o conteúdo. Há uma inversão total de valores, o jornalismo clássico se preocupa com o conteúdo e descuida da comunicação, enquanto as redes sociais fazem o inverso. O que se perde no meio deste paradoxo é o jornalismo. Daí a importância de rever o que definimos como jornalismo. Precisamos buscar um novo formato narrativo coerente com os novos formatos de comunicação criados pela internet.   A Teoria da Prática A constatação da mudança na concepção geral da atividade jornalística na era digital tem como corolário a necessidade de revisar as rotinas e normas vigentes para incorporar o conjunto de atores na escala de valores da atividade. Até agora o julgamento da noticiabilidade de um dado, fato ou evento era determinado por um conjunto de princípios pré-estabelecidos entre os quais predominavam a preocupação com o fortalecimento da democracia e a capacidade de gerar receitas financeiras através da ampliação de audiência. A nova realidade impõe uma mudança de foco sem, necessariamente, implicar o abandono dos princípios mencionados acima. Os pesquisadores do jornalismo mencionam com frequência cada vez maior a necessidade de aplicar a chamada Teoria da Prática na busca de novas referências teóricas e práticas para o jornalismo. A Teoria da Prática, na verdade um conjunto de teorias desenvolvidas por disciplinas como etnografia, sociologia, antropologia e ciências da cognição, entre outras, afirma que para estudar uma área inexplorada do conhecimento é necessário abordá-la sem ideias pré-estabelecidas e buscar no estudo da realidade os elementos para criar novas hipóteses de pesquisa. No caso do jornalismo, a pesquisadora finlandesa Laura Ahva afirma que quando um profissional se defronta com um dado, fato ou evento capaz de ser transformado em notícia, ele deve ser observado a partir de três elementos: que tipo de ação está envolvida no fato, dado ou evento; quais os fatores materiais e imateriais relacionados ao tema em questão; e finalmente, qual o discurso usado por quem está envolvido na descrição do problema. Todos os três elementos têm igual peso, estão interconectados e precisam ser definidos com o máximo de objetividade e fidelidade para que o resultado final forneça um reflexo, o mais realista possível, da questão observada. Hoje um repórter vai ao campo já com uma série de rotinas, normas e valores pré-estabelecidos que acabam distorcendo sua percepção da realidade, o que pode ser especialmente problemático em situações inéditas onde quase tudo é desconhecido, como por exemplo numa reportagem no interior da Amazônia. Quem estiver interessado em mais detalhes pode obtê-los em: Practice Theory for Journalism Studies, por Laura Ahva, Journalism Studies, 2016 Journalism as Practice, por Tamara Witschge e Frank Harbers, capitulo 6 do livro Handbooks of communication Science, 2018 Theorising Media as Practice, Nick Couldry, Social Semiotics Journal, 2004. (*) Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa https://urutaurpg.com.br/siteluis/a-grande-midia-ira-apoiar-bolsonaro-nas-eleicoes-de-2022/ O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-jornalismo-diante-de-um-divorcio-complicado/

Ucrânia: o jornalismo precisa fazer uma autocrítica

Nós, jornalistas, precisamos fazer uma dolorosa autocrítica. Acabamos participantes da construção de uma narrativa sobre a guerra na Ucrânia que está nos levando a uma crise mundial, cujo desfecho é uma gigantesca incógnita, onde apenas uma coisa é certa: o número de perdedores poderá ser muitíssimo maior do que o de ganhadores. Como jornalistas, selecionamos, formatamos e publicamos dados, fatos e eventos sobre a guerra na Ucrânia que influenciaram decisivamente a formação de opiniões contrárias à Rússia em boa parte do planeta. É claro que não somos responsáveis pelo que dizem e fazem Biden, Putin, Zelensky, Xi Jiiping e líderes europeus. Mas somos nós que damos ou não destaque às ações destes protagonistas do conflito, e o que publicamos leva as pessoas a darem mais ou menos importância ao que entra na agenda da imprensa. O resultado disto é que nos tornamos protagonistas da construção de uma narrativa unilateral da crise ucraniana, ignorando o dogma profissional de ouvir os dois lados de forma igualitária, sem a devida contextualização dos fatos e muitas vezes sem até mesmo checar se estamos ou não sendo inocentes úteis numa guerra de fake news. A esmagadora maioria dos jornalistas, na maior parte do mundo, não deu a devida atenção aos precedentes históricos e ao que está por trás do atual xadrez bélico/diplomático. O russo Vladimir Putin não é nenhum modelo de líder democrático. Joe Biden preside um império em declínio obcecado pela perda iminente da hegemonia mundial para a China; e Zelensky, um comediante sem experiência política, acabou manobrado tanto pela extrema direita como pela Casa Branca. Poucos profissionais deram a devida importância ao fato do ucraniano Wolodymyr Zelensky ter sido eleito presidente em 2019, com 72% dos votos propondo um acordo de paz na região de Donbass (1) . Mas a esperança de paz durou pouco porque a extrema direita ucraniana ameaçou matar Zelensky e toda sua família caso Donbass, cuja população é majoritariamente descendente de russos, se tornasse autônoma dentro de um estado federativo. Zelensky cedeu à pressão da extrema direita, o que irritou Putin e deu a Biden o pretexto para usar a Ucrânia para meter a Rússia num atoleiro militar. A imprensa mundial, inclusive a brasileira, não deu a devida importância ao fato de Joe Biden já ter dedicado mais de 60 bilhões de dólares para apoio militar a Zelensky, justo num momento em que a inflação interna nos EUA bate recorde e a economia norte-americana dá sinais de enfraquecimento. A jogada de Biden é clara: penalizar o público doméstico, na aposta de que um eventual revés russo na Ucrânia contribua para reduzir o ímpeto econômico chinês, este sim o grande alvo da Casa Branca. Só que o extremista Donald Trump já está faturando eleitoralmente o descontentamento da classe média norte-americana. O G-7 (as sete nações mais ricas do mundo) anunciou esta semana um empréstimo de 31 bilhões de dólares (30 bilhões de euros) para a reconstrução da Ucrânia e mais 520 milhões de dólares em armas e equipamento militar. Os governos membros da OTAN estão gastando fortunas para alimentar uma guerra, ignorando o fato de que ela agrava uma crise econômica iniciada antes de pandemia da Covid 19. É um absurdo financiar um conflito sabendo que a reconstrução da Ucrânia vai custar ainda mais caro do que a guerra. O mundo poderia evitar o caos econômico e a destruição da Ucrânia se os países da OTAN tivessem feito uma conta básica de custo-benefício da guerra. Bastaria Zelensky renunciar ao ingresso na Aliança Militar do Ocidente, controlar a extrema direita interna, e respeitar o acordo de Minsk (2014) que deu autonomia parcial à região de Donbass. Putin perderia o pretexto para a invasão, seis milhões de ucranianos não precisariam emigrar e a economia mundial teria um ambiente um pouco mais tranquilo para enfrentar a recessão causada pela Covid 19. Nada disto que mostrei acima é inédito pois já foi dito por muitos comentaristas políticos internacionais e acadêmicos. Só que a maioria da imprensa continua presa a uma narrativa do bem contra o mal, do humanitário Biden e do valoroso Zelensky contra o diabólico Putin e o sinistro Xi Jiping. Ignoramos a complexidade dos fatos e processos, para nos refugiarmos no simplismo que nos livra da necessidade de ter que pensar e contrariar estratégias de informação desenvolvidas tanto em Washington, como em Kiev e Moscou. Não há inocentes nesta guerra, mas a imprensa, contrariando seus dogmas, já consagrou um bandido e um mocinho. Todas estas afirmações estão baseadas em fatos e depoimentos que não reproduzo aqui porque acabaria escrevendo um livro. Mas valem o início de um debate. O propósito deste texto é chamar a atenção para a falta de um equilíbrio informativo na cobertura da guerra na Ucrânia. Não se trata apenas de ser ou parecer isento, mas de ter consciência de que as pessoas precisam saber que o desenrolar dos acontecimentos desde o mês de abril sinalizam um agravamento do conflito que nos coloca na faixa de risco para um confronto nuclear. Nossa sobrevivência depende de um fluxo diversificado e transparente de informações sobre o que está acontecendo de fato na Ucrânia. (1) Donbass é uma região da Ucrânia situada na fronteira com a Rússia onde estão as cidades de Luhansk e Donetsk. 5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia A paz é possível? ONU joga para a plateia

Quem não paga imposto no Brasil?

Li esse pequeno texto no perfil do jornalista Gustavo Gindre: “os quatro irmãos Salles são os principais acionistas do Itaú (cujo lucro líquido em 2021 foi de R$ 26,9 bilhões) e da CBMM (maior mineradora de nióbio do mundo). Calcula-se por alto que juntos eles possuam quase R$ 60 bilhões em patrimônio. Pois bem, quanto esses quatro senhores pagam de imposto de renda sobre os dividendos que recebem do Itaú e da CBMM? A resposta é zero. No Brasil, dividendos são isentos de imposto de renda. Além do Brasil, apenas Estônia, Letônia e Cingapura adotam a mesma política”. Fiquei a matutar. Como isso pode ser possível, se os trabalhadores tem o imposto descontado na folha de pagamento sobre seu salário, que, em tese, nem deveria ser considerado renda, já que ele serve única e exclusivamente para manter minimamente vivo o trabalhador. Mas, ainda assim, de acordo com o art. 43, do Código Tributário Nacional, renda seria tanto o produto do capital como do trabalho ou da combinação de ambos. Então, se a renda é também o produto do capital, por que as empresas não pagam imposto sobre os dividendos que distribuem a partir do lucro? Conforme o advogado e doutor em Direito Tributário, Marcos Palmeira, essas vantagens para os empresários foram aprofundadas desde 1995, quando no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a lei 9.249 que tirou a tributação das empresas sobre os dividendos distribuídos. “Essa lei permaneceu incólume, nunca foi discutida, e segue sem alteração. É incrível porque isso é insustentável até mesmo para o sistema capitalista. É um mecanismo que configura uma exceção nos sistemas internacionais”. Reforço aqui: esse tipo de isenção só existe no Brasil, na Estônia, Letônia e em Cingapura. Ainda, conforme Palmeira, havia, na época da discussão da lei, a tese de que se fosse taxado o lucro haveria uma dupla tributação, porque além de a empresa ter que pagar sobre o lucro, o sócio que recebesse os dividendos também teria de prestar contas ao imposto de renda do valor que recebesse. Mas, a verdade é que, ao fim, nem a empresa nem o que recebe acabam tributados. “E esse é um mecanismo poderosíssimo de acumulação de capital”. O argumento para a aprovação da lei foi o mesmo de sempre: há que dar vantagens ao empresariado para que ele possa investir na geração de empregos. E assim, além de liberar os patrões da tributação sobre os lucros, a mesma lei ainda concedeu outras vantagens como a redução da alíquota do imposto de pessoa jurídica, de 25% para 15%, redução da alíquota da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido das empresas em geral de 10% para 8%, a das instituições financeiras (bancos) reduziu de 23% para 18%, e a redução de 25% para 15% do imposto sobre as remessas ao exterior, entre outras benesses. Vejam que são reduções muito generosas. Ou seja, é sempre muito mais tranquilo ser patrão do que ser empregado já que o último não tem escapatória. O imposto é deduzido direto da fonte. Apenas os que ganham até 1.903,98 estão isentos do pagamento. Os demais pagam e existem apenas quatro possibilidades de alíquotas: descontam 7,5% os que ganham de 1.903,99 até 2.826,65, descontam 15% os que ganham de 2.826,66 até 3.751,05, descontam 22,5% dos que ganham de 3.751,06 até 4.664,68 e descontam 27% os que ganham a partir de 4.664,69. Observem que as vantagens para os empresários são enormes, enquanto os trabalhadores estão submetidos a tributações muito severas em salários que sequer conseguem suprir as necessidades básicas. “Está claro que inexiste qualquer sintoma de efetiva progressividade”, aponta Palmeira. Esse é um tema que não encontra espaço no debate público. Não se vê a mídia discutindo, nem os partidos políticos, nem os movimentos sociais. Mesmo nas campanhas eleitorais o assunto não é abordado. E deveria. Dentro do atual sistema, a solução para esse caso aberrante – no qual um empresário que tem um lucro de 26 bilhões não paga nada ao IR enquanto um trabalhador que ganha quatro mil reais tem de desembolsar 27% do salário para o imposto – seria mudar a legislação e é extraordinário saber que desde 1995 nenhuma proposta para taxar os lucros tenha sido discutida e aprovada. “É claro que uma legislação assim não vai agradar nem aos da Faria Lima, nem aos grandes capitais, mas ela é urgente e necessária”, diz Palmeira. Ele aponta que o número de contribuintes que tem esse caráter, aparecendo como sócios de empresas e recebedores de dividendos, está aumentando muito no Brasil e essa gente não paga Imposto de Renda, ou paga muito pouco. Um tema como esse tem de estar na plataforma dos candidatos à eleição presidencial. Mesmo dentro do capitalismo, como já afirmou Palmeira, a questão da tributação no Brasil é insustentável. Ricos pagam menos impostos Aumentam os casos de furtos famélicos no Brasil Desigualdade social: Ricos ganham 36 vezes mais que os pobres no Brasil, segundo IBGE

Etarismo ou o drama de ser velho no capitalismo

Idosos no Brasil – Tenho observado muita gente falando nas redes sociais sobre o lance da velhice e sobre o direito de se parecer velho. Li textos e vi vídeos de mulheres discutindo a beleza de envelhecer e de seguir o rumo da vida, libertas de tintas e estereótipos estéticos. Embutido nesse discurso, claro, a crítica de um mundo no qual o velho é totalmente esquecido e dispensado de atuar como sujeito criador. Ao velho, dizem, é relegado o papel passivo de aposentar e abrir espaço para os jovens. E, diante disso, faz-se essa defesa do direito de envelhecer com dignidade, aceitando o processo. Quero me permitir um pitaco. Já faz sete anos que cuido do meu pai, que é velho e tem a doença de Alzheimer. Posso afirmar sem medo de errar que ser velho é foda. E ser um velho doente, mais foda ainda. Já ser velho, doente e empobrecido, aí é o inferno de Dante. Então, creio que há que se ter muito cuidado com esse elogio da velhice desvinculado da condição de classe. Ficar velho é condição natural da vida. Mas, a condição de classe da pessoa determina situações muito diferentes. Tiro isso por conta da experiência com o pai. Faço parte de grupos de familiares que têm Alzheimer e observo o drama das famílias de trabalhadores empobrecidos para dar um mínimo de qualidade de vida para seus velhos doentes. É uma batalha inglória tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado. As famílias hoje são pequenas e não há gente suficiente para cuidar, já que o cuidado é de 24h. Daí é comum recorrer a remédios que dopam ou asilos. Isso não é falta de amor. É falta de condição. Hoje ficamos mais velhos que há décadas passadas. E com tanto de vida pela frente sentimos necessidade de ser criador, seguir contribuindo com a sociedade. Mas, nos pedem que saiamos, para dar lugar aos jovens. E, apesar de todo esse discurso sobre a “terceira-idade”, “melhor idade” e o escambau, o velho é jogado para o esquecimento. Se ele não se mantiver ligado nas redes sociais, fazendo dancinhas ou qualquer outro espetáculo, está fora, esquecido. Não importa se foi alguém que fez coisas importantes, na vida, no trabalho, na cultura da sua comunidade. Se ele saiu, pronto. Esquecido. Outro dia me surpreendi vendo um ator famoso, lindo e jovem, ser escalado para fazer um velho num filme. E todos os atores velhos que estão aí esperando um papel? Não importa. Estão velhos. Não dá mais. Então, caracteriza um novo para ficar velho. E se o ator velho, que já foi grande, faz um papel pequeno ou bobo num filme, lá vêm críticas… Não há paz para o velho. O velho que vá pra casa descansar. Bueno, há velhos que conseguiram juntar grana e podem curtir a aposentadoria, viajando, fazendo coisas legais. Mas a maioria dos velhos – que são da classe trabalhadora – não consegue juntar dinheiro para viagens ou curtição. As aposentadorias minguadas servem para comprar remédios que vão tratar doenças adquiridas nessa vida de sacrifício. O capital lhes tira tudo, a vida produtiva e depois a alegria da aposentadoria. Essa é a realidade. Assim as coisas são. Então, por isso que ao falar sobre a velhice a gente tem de pensar sobre o modo de vida que produz essa sociedade egoísta, produtivista, capitalista. O velho, nesse mundo, está fadado ao sofrimento. Porque ele já não produz mais para o capital, porque ele não é útil para mais ninguém, porque ele vira um incômodo. Não é de espantar então atitudes como a do nosso querido Flávio Migliaccio, ou Walmor Chagas, ou agora o lindo Alan Delon. O velho, doente e incapacitado, se vê e é visto como um estorvo. Se é rico ainda consegue decidir sobre sua vida/morte, se é pobre não tem chance alguma. Nem nesse momento. Nem nessa hora noa. Ainda há muita estrada para andar nesse tema da velhice. Mas se a gente não pensar primeiro sobre a necessidade urgente de se ter uma sociedade capaz de lidar com o velho, sem comiseração, mas com respeito a tudo que ele foi, continuará sendo um fardo pesado envelhecer. E quando digo envelhecer não tem nada a ver com a gente não pintar mais os cabelos, mas enfrentar toda a decrepitude que a idade traz, inclusive a intelectual, e o abandono que lhe segue. Saber que teremos cuidado quando essa hora chegar pode mudar muito nossa relação com a velhice. Mas, hoje, como o mundo é, é impossível ter alguma esperança. Só mesmo a angústia de saber que chegará a hora em que nos deixarão no meio do caminho, abandonados e sós. Com o meu pai, venho mudando minhas práticas e aprendendo muito sobre esse processo. Mas, cuidar de um velho não pode significar a morte do jovem. Há que existir espaço para os dois. Espaços de vida, de alegria e de fruição. E, no capitalismo, “my friend”,  isso não vai acontecer. Notas sobre a velhice

As guerras do Império Russo em expansão: Tolstói e seu livro autobiográfico

A Rússia sempre guerreou para expandir seu império. Em meados do século XIX, a Rússia guerreou contra as tribos muçulmanas da Tchetchênia e do Afeganistão. O escritor genial, Lev Tolstói, tomou os últimos vinte anos de sua vida para escrever o romance Khaddji-Murát, baseado em memórias de sua juventude como oficial do exército czarista. Quando, aos 82 anos, ele abandonou de vez a casa familiar em Polyana, carregava consigo mais de duas mil páginas, e dentre elas o original de sua colossal novela ainda inconclusa. Enquanto a inspiração advinha de memórias, seus propósitos eram descortinar na alma humana tudo o que ela tem de digno e de covarde, de honrado e de abjeto. Tudo aquilo que se descortina, se expande numa guerra! Nesse sentido, Khaddji-Murát talvez seja´, ao alvorecer do século XX, o mais claro berro de horror contra o despotismo e a guerra posto na literatura! A personagem Maria Dmitrievna, esposa de um major russo, assim se expressa a respeito dos bravos oficiais czaristas: “Vocês são assassinos, não os suporto, uns verdadeiros assassinos. Não me venham dizer que os massacres sejam coisas da guerra, vocês são assassinos e é tudo”. Existem diferenças significativas entre o fanatismo religioso, sectário, tribal, que propaga violência, vinganças, intolerância e o ateísmo real, travestido de religiosidade oficial, que incendeia aldeias, mata população civil, regurgitando o bafo das vodcas ingeridas? A resposta para Tolstói é sim e não, ou seja, a responsabilidade maior pelas desumanidades da guerra é do invasor, daquele que queria impor o poder despótico do czar. Os tribais reagem e aglutinam a violência sectária, inclusive contra seu próprio povo. Também eles se desumanizam na guerra. Todos se desumanizam! Khadii-Murát existiu como personalidade histórica. Foi um guerrilheiro separatista bem-sucedido e famoso, que abandonou a luta e mudou-se para o lado dos invasores russos na esperança de salvar sua família, que fora sequestrada pelo líder tchetcheno rival. Além de salvar sua família, Murát queria também vingar as mortes dos membros de sua tribo leais a ele, assassinatos perpetrados por Shamil, o comandante dos guerrilheiros muçulmanos do Cáucaso. Ao juntar-se aos russos no desespero pessoal, ele trai seu povo, que, por sua vez, já o traíra também. Mas, ao final, buscará sua libertação e será assassinado pelo exército russo. Sobre o herói de seu livro escreve Tolstói: “Khaddji-Murát defende a vida até o fim; sozinho no meio de um vasto campo, mas mesmo assim ele a defendeu.” Surpreendemo-nos durante toda a leitura com o preciosismo narrativo. Comentando a última obra de Tolstói, disse Máximo Gorki: “Como o velho escreveu bem! ” A princípio, o narrador encontra dois pés de bardanas (espécie de planta medicinal). O primeiro é vermelho, colorido e muito espinhoso, então ele o evita. O segundo, ele o deseja desesperadamente, mas tentando arrancá-lo, o destrói. O mesmo se passará com o herói e o anti-herói muçulmano, “com que tenacidade ele se defendeu e como vendeu caro a vida”. A narrativa nos conduz ao respeito pelos regionalismos, assim como pelas idiossincrasias de cada povo. Como Tolstói dizia: “para cantar num tom que seja internacional, cante primeiro naquele de sua aldeia”. Os países caucasianos e afegãos tinham uma cultura totalmente diferente e quase paradigmática em relação a dos russos, exceto na própria violência que ambas engendram. “Para cada povo são bons os seus próprios costumes”. Não existe exagero em considerar que o personagem Khaddji-Murát se associa aos dons proféticos do Profeta Jeremias, de Michelangelo, que baixa a cabeça e se remói em tormentos ao prever o que o destino reserva à humanidade, a sua humanidade, a sua gente dominada pelos imperialistas russos. de um lado. e. pelo tribalismo impiedoso. de outro . O asceticismo quase monástico de Khadii-Murát contrasta com a devassidão da vida dos soldados russos na sua banalidade e na falta de sentido. Ele tenta separar-se de todos os lados em luta, de suas torpezas e tibiezas, símbolos do desprezo do homem pelo seu semelhante. Ele sabe que a coragem somente é verdadeira quando não é fruto do álcool ou da soberba, quando exercida por alguém que, de certa forma, situa-se acima do bem e do mal. A rendição de Khaddji-Murát ao príncipe russo e general Vorontzov é um ato de peça teatral, em que os papéis dissimulam a realidade: “Os olhos daqueles dois homens se encontraram e disseram um ao outro muita coisa inexprimível por palavras e algo bem diferente do que dizia o intérprete. Diretamente, sem palavras, exprimiam mutuamente toda a verdade: os olhos de Vorontzov diziam que ele não acreditava em uma só palavra do que dizia Khaddji-Murát e que sabia ser esse homem um inimigo de tudo o que era russo, que assim permaneceria, e que se submetia agora era por ter sido obrigado a tal passo. Khaddji-Murát compreendia isto e, apesar de tudo, reafirmava a sua fidelidade.” Com relação ao invasor russo, Tolstói centra-se não somente na brutalidade dos soldados e seus oficiais, mas trata de decompor o papel de quem comanda uma sociedade perversa, o czar: “Por mais habituado que estivesse Nicolau (I) com o terror que despertava nas pessoas, este lhe era sempre agradável, e ele gostava, às vezes, de deixar espantado o súdito a quem infundira tal sentimento, dirigindo-lhe, por contraste, palavras afáveis”. O czar acreditava que, se por um lado, roubar era inerente aos funcionários públicos, por outro, a obrigação dele era castigá-los. A lisonja permanente, asquerosa e sem rebuços, dos que o cercavam, reduzira-o a tal estado em que não via suas contradições. “Mesmo quando condenava alguém a mil bastonadas, sendo que com menos de quinhentas quaisquer morreria, agradava-lhe ser inexoravelmente cruel e, ao mesmo tempo, saber que, entre nós, não existia a pena de morte”. No outro lado, quando após num avanço de tropas russas uma vila inteira era destruída, os velhos muçulmanos se reuniram. Ninguém falava sequer em ódio ao invasor. O sentimento que experimentavam todos os tchetchenos era mais forte que o ódio. “Não odiavam, mas não reconheciam como gente aqueles cães russos”. “Era uma sensação de asco e

Relógio do Apocalipse indica risco nuclear recorde

Relógio do apocalipse – Os ponteiros do simbólico relógio, criado há 75 anos (1947) para medir o perigo de uma guerra nuclear global, mostram que estamos a meros 100 segundos entre o lançamento da primeira bomba atômica e o início de uma retaliação que pode levar à destruição de boa parte do planeta Terra. É apenas a segunda vez na história do relógio que ele aponta para um tempo tão curto para a chegada da fatídica ‘’meia noite” da insanidade atômica. A primeira vez foi em 1953, um período de enorme tensão entre Estados Unidos e a então União Soviética, e que descambou anos mais tarde na fracassada tentativa norte-americana de invasão da Baia dos Porcos, em Cuba, em 1961, agravada um ano depois pela decisão soviética de instalar bases de mísseis atômicos em território cubano. O apocalipse nuclear foi evitado por um acordo entre Washington e Moscou. A mais recente atualização do Relógio do Apocalipse foi feita em janeiro deste ano quando os integrantes do grupo de 28 cientistas , entre eles nove prêmios Nobel, se reuniram para avaliar os riscos de um conflito nuclear no planeta. A crise da Ucrânia ainda não tinha começado, mas o clima de tensão já havia contaminado os meios acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos. As atualizações demoram algum tempo para acontecer por conta da diversidade e distribuição geográfica dos participantes. De janeiro até agora, a situação piorou muito em termos da tensão entre os países ocidentais liderados pelos Estados Unidos e a Rússia, com seu arsenal nuclear de seis mil ogivas, 500 a mais do que o dos Estados Unidos. Segundo a jornalista norte-americana Caitlin Johnstone, estamos revivendo os riscos da crise dos mísseis, há 60 anos, mas com duas agravantes.   Fatores agravantes Enquanto nos anos 50 e 60 do século passado, a tensão nuclear contaminou boa parte da população mundial, hoje o medo de uma hecatombe atômica está restrito às pessoas com mais de 50 anos, porque a maioria dos mais jovens não passou pela traumática experiência de esperar o pior sem poder fazer nada. A opinião pública mundial está muito menos consciente dos riscos de um apocalipse planetário depois do fim da Guerra Fria entre o capitalismo e o comunismo. O segundo fator agravante é o risco de decisões erradas por causa das mudanças tecnológicas nos processos de gerenciamento do disparo de armas nucleares. A automação digital dos sistemas de tomada de decisão e acionamento dos mísseis encurtou dramaticamente o tempo entre um ato e o outro. Na crise dos mísseis, todo o processo era basicamente humano, enquanto agora os algoritmos desempenham a maior parte das tarefas que antecedem o início de um apocalipse. O cientista nuclear norte-americano Ray McGovern, autor de um artigo sombriamente intitulado “Will Humans Be the Next ‘Freedom Fries’? (1), afirma que o maior risco está nos sistemas de identificação de disparos de mísseis com ogivas atômicas. McGovern, um ex-analista de assuntos nucleares da CIA (Agência Central de Inteligência), afirma que embora os russos tenham mais e melhores armas nucleares do que os norte-americanos, o sistema deles de alerta de um ataque com mísseis é pouco confiável e desatualizado.   A terceirização do apocalipse “Os russos sabem disto desde 1995 quando tardaram vários minutos para identificar como inofensivo um míssil militar disparado da Noruega para pesquisa atmosférica. Se o foguete tivesse uma carga nuclear, a demora na identificação seria fatal”, diz McGovern. Hoje, pesquisadores americanos acreditam que o sistema russo de detecção ainda é muito menos sofisticado do que o norte-americano, o que pode levar Putin a reagir por impulso diante da menor suspeita de ataque. Outro elemento que tira o sono da equipe de pesquisadores do Relógio do Apocalipse é o fato de que muitos procedimentos prévios ao disparo de um míssil nuclear foram terceirizados nos Estados Unidos para empresas particulares. O elevadíssimo grau de especialização tecnológica incorporado ao sistema de deflagração de um ataque nuclear faz com que várias etapas do processo fiquem fora do controle direto das autoridades civis e militares responsáveis pelo comando das operações. Um erro ou descuido nestas condições dificilmente poderá ser corrigido a tempo. Estes fatores estão presentes também no uso das chamadas armas nucleares táticas, artefatos de menor poder explosivo para destruição de objetivos militares específicos, como um aeroporto ou quartel. O problema é que estas bombas, depois de usadas, geram também radiação atômica de longa duração que contamina pessoas e prédios. Convivemos com arsenais nucleares por mais de 60 anos. Já tivemos períodos de relativa tranquilidade, como o de 1991/1995 quando o Relógio do Apocalipse indicava que a humanidade tinha pouco menos de três horas para evitar uma guerra atômica. Era tempo suficiente para frear impulsos e corrigir erros. Hoje, o que deve nos assustar é a possibilidade de que o minuto e 40 segundos que nos restam sejam insuficientes para uma brevissima reflexão e abortar um processo civil/militar parcialmente automatizado. (1) Freedom Fries é uma expressão pejorativa criada em 2003 por políticos norte-americanos para mostrar irritação contra o governo francês, quando este se opôs à invasão do Iraque. French Fries é batata frita em inglês. Ao adaptar para Freedom Fries a intenção era acusar o governo francês de tolerar uma fritura da liberdade ao rejeitar uma ação militar contra Saddam Hussein, considerado um ditador pelos Estados Unidos. 5 perguntas sobre o conflito Rússia x Ucrânia A guerra e o Brasil As guerras do Império Russo em expansão: Tolstói e seu livro autobiográfico  

A inevitável escalada da guerra nas fronteiras russas

por André Márcio Neves Soares […] A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda […] Mia Couto, “O Último voo do Flamingo”. Nos últimos dias, estamos vendo uma guerra que, mesmo ainda localizada, deve mudar os rumos do cenário geopolítico nos próximos anos, quiçá décadas. De fato, a “guerra de demarcação” das novas fronteiras russas contra a Ucrânia extrapola e muito a concretude do horror das imagens. Ela também é simbólica, no sentido de passar uma mensagem ao mundo ocidental sobre seus limites e desejos. Não porque o ditador russo Vladimir Putin queira voltar ao tempo passado da antiga União Soviética (URSS). Ele sabe, mais do que ninguém, que não será possível se reconectar ao outrora paradigma do sistema estatal de governança centralizadora que a Rússia impôs aos seus países satélites na denominada “cortina de ferro”. A própria China, hoje a maior potência econômica do planeta e postulante a maior potência mundial em um futuro próximo, não demanda esse feito. Pelo menos por ora. Então, qual é a real intenção de Putin? É difícil afirmar com certeza, mas podemos ter algumas pistas a partir dos ensinamentos de alguns teóricos. O primeiro deles é Robert Kurz (1943–2012). Esse pensador alemão, crítico ferrenho da modernização capitalista e de seu sistema fetichista de produção de mercadorias, sofreu duras críticas dos seus pares ao apontar o esgotamento do que chamou de “socialismo de caserna”, no que se transformou o modelo estatal soviético (1). Kurz disse: “Nunca houve tanto fim. Com o colapso do socialismo real, toda uma época desaparece e vira história. A constelação familiar da sociedade mundial da época pós-guerra desfaz-se diante de nossos olhos com uma velocidade assustadora” (ob. cit., pág. 13) Assim, para Kurz, a desintegração da União Soviética se deu muito menos porque o ocidente teria vencido a batalha do seu sistema como um todo – político, econômico e social -, mas por conta das contradições internas geradas por uma pretensa “ditadura do proletariado”, que passou a difundir as ideias da propriedade individual e da economia de mercado baseado na concorrência. É por isso mesmo que ele se pergunta, profético, se o ocidente teria tido realmente consciência e autoconsciência do que  fez, depois que se proclamou vencedor do conflito entre os dois sistemas ideológicos vigentes no mundo do pós-guerras. Nesse sentido, para Kurz, o próprio ocidente se surpreendeu com a implosão tão rápida do complexo sistema socialista real, justamente por não terem sido as ações políticas ocidentais concretas que conduziram a esse declínio, mas sim “a falha dramática de seus mecanismos de funcionamento internos” (ob. cit., pág. 15). Para ele, o que aconteceu foi uma espécie de colapso histórico, onde duas das forças mais poderosas da sociedade humana, a saber, o Estado e o Mercado (a outra é, sem sombra de dúvida, a Religião), não podem servir de base ontológica primeva da humanidade. Portanto, é a crise da sociedade do trabalho, à qual não nos ateremos nesse artigo, que está por trás da sua metacrítica à derrocada dos países socialistas. Ora, se Kurz entende que a categoria trabalho não é nada supra-histórico, este nada mais é do que a exploração do homem pelo homem, ou melhor, a exploração econômica da força de trabalho humana e da natureza por alguns poucos proprietários dos meios de produção, com motivação única de gerar lucros incessantes. É justamente nessa interseção do lucro, da mais-valia ou do mais-valor, como queiram chamar, que se resume o dilema entre os dois sistemas hegemônicos da era moderna/contemporânea. Em outras palavras, se no sistema capitalista (neo)liberal, o lucro é retido por poucos afortunados, com o Estado servindo de capataz para as elites, no “socialismo de caserna” é o Estado que se apropria desse mais-valor, com as empresas estatais sendo dominadas por um grupo partidário único que planeja o mercado, de acordo com os interesses dos membros mais proeminentes desse partido, os oligarcas. Nesse ponto, é possível destacar que Putin é o membro mais importante e imponente que apareceu na Rússia, depois da deblace do bloco soviético. Não à toa ele está desde 1999 no poder. Ele é o representante máximo da oligarquia partidária que sobreviveu à queda do muro de Berlim e à perda da grande maioria dos países que gravitavam em torno do modelo estatal capitalista do chamado “socialismo real”. Putin sabe que a falha fundamental desse modelo foi, justamente, não conseguir se contrapor à sociedade capitalista da contemporaneidade (pós-modernidade, para alguns). Como diz KURZ: “Desde o princípio, o socialismo real não podia suprimir a sociedade capitalista da modernidade; ele próprio é parte do sistema produtor burguês de mercadorias e não substitui essa forma histórica por outra, mas sim representa somente outra fase de desenvolvimento dentro da mesma formação de época. A promessa de um sociedade pós-burguesa vindoura e desmascarada como um regime pré-burguês e estagnado de transição para a modernidade, como um fóssil de um dinossauro pertencente ao heroico passado do capital” (ob. cit., pág. 25) Por conseguinte, Putin não quer acabar com o ocidente, muito menos com o capitalismo. Pelo contrário, o que podemos apreender até o momento do seu já longo “reinado”, é que ele planeja mesmo se equiparar ao modelo capitalista da China, ou seja, ele projeta uma Rússia novamente forte o bastante para exercer, isso sim, influência crescente nos países ao seu entorno, sem, contudo, absorvê-los. É provável que ele assuma as rédeas do comando da Ucrânia nos próximos dias, mas não para dirigi-lo pessoalmente, e sim através de algum presidente fantoche como o ditador da Bielorússia Aleksandr Lukashenko. Todavia, para tal desidério, ele não pode permitir que os Estados Unidos, através da OTAN, cheguem a sua porta: no caso, a Ucrânia. Destarte, Putin ataca! Ataca não para evitar o neoliberalismo – ele próprio já declarou que não quer a Rússia fora do sistema de compensação global chamado “swift” -, mas para mantê-lo nas suas fronteiras, de acordo com os seus interesses e de seus amigos, ou comparsas,

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