Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

Estacionamentos – mais que um paradigma da mobilidade urbana

por Albenísio Fonseca Com as áreas para estacionamentos ocupando espaços valiosos das cidades, afetando de forma negativa o planejamento urbano, a crise da mobilidade vivida nas capitais brasileiras tem um dos mais dramáticos exemplos em Salvador. A questão torna visível, também, a desigualdade social em meio à disputa pela oferta de vagas, envolvendo a exploração do serviço pela iniciativa privada ou pela Municipalidade, nas zonas azuis, através de guardadores e lavadores de carros sindicalizados, e nos mais diversos locais da cidade por centenas (senão milhares) de “flanelinhas”. Os guardadores clandestinos têm assumido também a condição de manobristas, no afã de garantir a renda para a sobrevivência diária. O certo é que os estacionamentos deixaram de ser um requisito cômodo para se tornar mais um catalisador da problemática mobilidade urbana, no âmbito da civilização do automóvel, em um cenário que se repete na maioria das capitais e mesmo em cidades de médio porte: excesso de veículos nas ruas, congestionamentos, índices perigosos de poluição do ar e horas perdidas no transito atrás de uma vaga, mesmo frente à tendência de verticalização para esses equipamentos. A constatação, portanto, e os urbanistas não cansam de sinalizar, é que, como um paradoxo, “quanto mais estacionamentos se criam, mais se prioriza o uso do carro particular nas grandes cidades”, aliás, com grande parte de suas áreas já comprometidas ou projetadas para este uso e, ainda assim, a sofrer a carência de vagas. E mais, sob o agravante de que a capacidade de criar vagas não aumenta na mesma razão em que novos carros chegam às ruas. Do mesmo modo é visível o quanto os estacionamentos geram novos comportamentos nas cidades, na medida em que todos os que optam pelo carro como meio de transporte são, sob o custo do inevitável estresse, obrigados a pensar em locais para estacionar. Trata-se, em suma, de um amplo mercado a fascinar o poder público, empresários, donos de terrenos baldios, administradores de shopping centers e outros centros de compras, além dos “flanelinhas” e guardadores sindicalizados, a buscar uma vaga ao sol ou sob a chuva, nessa moderna forma de serviço a expandir-se como lucrativo comércio no universo da urbanidade motorizada. É um senso comum afirmar que “por não termos sistemas eficientes de transporte público, continuamos a usar o carro e então precisamos de estacionamentos”, o que é uma verdade a exigir maior qualidade no planejamento. Mas é correto também ter em conta o quanto não se pode mais planejar apenas sob a perspectiva do uso do carro. O planejamento urbano passou a requerer estratégias e ferramentas dentro de uma visão mais abrangente, que incluam os pedestres, os ciclistas e a integração com os diferentes modais de transporte, de modo que o espaço da cidade seja mais bem aproveitado. Estacionamentos, portanto, foram convertidos em paradigmas não apenas da mobilidade e densidade urbanas, mas do planejamento e da qualidade de vida nas cidades. Primeiros estacionamentos surgiram em 1920 Os primeiros estacionamentos surgiram nas décadas de 1920 e 1930, quando o número de motoristas começava a aumentar em escala global e os carros passaram a ocupar um tamanho precioso do espaço público – isto é, o espaço entre as casas e prédios, por onde as pessoas antes caminhavam e passavam o tempo livre. A imposição do carro no domínio público passou a atrapalhar a segurança e a vitalidade das cidades. Por isso, criaram-se legislações obrigando a criação de estacionamentos para todo tipo de empreendimento imobiliário e destino que se podia imaginar. Desde então, cada viagem começa e termina em algum estacionamento, seja no trabalho, na escola, hospital, estádios ou shopping center. O problema é que, em geral, todos que dirigem planejam seus deslocamentos pensando na necessidade de estacionar, de preferência próximos ao seu destino, intensificando o tráfego nesses locais na dispendiosa busca (haja combustível e paciência) por uma vaga. Mais recentemente, quando as cidades atingiram picos de motorização, as pessoas passaram a gastar grande parte do seu tempo e dinheiro atrás de vagas, aumentando os efeitos negativos do excesso de carros nas ruas, como congestionamentos e a poluição do ar. Os estacionamentos deixaram ser uma boa ideia para se tornarem em mais um desafio para a mobilidade urbana sustentável.

A nova escravidão

por Elaine Tavares Sempre que se fala em escravidão, vem à mente a cena do negro, acorrentado, vindo para a América nos navios negreiros do século 17 e 18. Naqueles dias, durante o processo de invasão e dominação dos territórios africanos e americanos, esse era o grande negócio. Usar as pessoas como mão de obra barata para a acumulação de riqueza. Portugal e Espanha desbravaram os novos espaços, destruíram as comunidades existentes e implantaram o saque. A Inglaterra dominou a rota e o mercado do tráfico. Tudo era uma grande operação comercial destinada a enriquecer uns poucos. Esse longo processo foi o responsável pela dizimação dos povos originários no chamado “novo mundo”, nossa Abya Yala , e pela desagregação comunitária nos espaços do continente africano. E foi essa movimentação de conquista de território e escravidão que deu força ao sistema capitalista. A tal da revolução industrial, tão decantada pelos ingleses, nunca teria existido se não fosse esse quadro de exploração, dor e miséria. Para que a Europa se fizesse rica, a América e a África tiveram de ser destruídas. Durante séculos se lutou contra a escravidão e precisou muito sangue para que essa prática fosse abolida. E, na verdade, quando o sistema escravista foi finalmente varrido das Américas, o motivo foi igualmente econômico. O escravo passou a ser um problema para o sistema capitalista que se consolidava. Os “donos” tinham muita despesa com os escravos e ainda precisavam cuidar de suas “propriedades”. Melhor mesmo é que as pessoas se virassem sozinhas. Foi aí que veio a “libertação”. Os escravos passaram a ser pessoas livres que, então, poderiam vender sua força de trabalho. Assim, os fazendeiros e empresários não precisariam mais ter qualquer despesa para sustentar a mão de obra. Cada um que se sustentasse a si mesmo. Foi perfeito. Assim, nasceram as fábricas e a vida urbana, com as levas de gente explorada formando vilas miseráveis próximas aos locais de trabalho. O tempo passou e a escravidão virou apenas tema de filme e romance, como se fosse uma mera lembrança do passado. Ledo engano. Nas entranhas do mundo, essa prática de vileza seguia sendo usada. Ainda assim, sempre foi combatida pelos movimentos de direitos humanos e não são poucos os episódios de “libertação” que são empreendidos em fazendas ou empresas. Mesmo nas metrópoles, como São Paulo, por exemplo, a cada tempo pipocam os casos de estrangeiros sendo mantidos como escravos em vários tipos de negócio. Usar as pessoas como coisas segue sendo uma prática muito comum.   A escravidão institucionalizada Mas, se esses casos, aparentemente isolados, são denunciados e vistos como um ataque aos direitos humanos, isso não significa que o sistema capitalista – que é um sistema de exploração humana – não tenha encontrado outras formas de escravizar e dominar. Na verdade, é como se a mesma história se repetisse ad infinitum. Se no passado, as grandes navegações, que exploraram novas terras, permitiram a invasão e o saque desses lugares. Hoje, as cruzadas antiterroristas cumprem o mesmo papel. Quem denuncia essa situação é o jornalista Antony Loewenstein, no livro “Capitalismo do desastre: uma radiografia da catástrofe”. Segundo ele, toda essa política de destruição dos países do Oriente Médio, iniciada na chamada “Primavera Árabe”, nada mais é do que o novo jeito de garantir escravos para a movimentação do sistema. Ele mostra que empresas multinacionais como a G4S, Serco e Halliburton, angariam elevados lucros com a calamidade em países como  Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Haiti e Nova Guiné. E qual é o negócio dessas empresas? Prisões privadas para refugiados de guerra. Numa entrevista à jornalista estadunidense Amy Goodman, Loewnstein contou como isso acontece. “Essas empresas montam enormes armazéns nas zonas de guerra, que servem como centros de detenção de refugiados e requerentes de asilo. Quando os holofotes se apagam, e as ONGS deixam de ajudar para passar à próxima catástrofe, essas empresas aparecem, com funcionários recebendo gordos salários para institucionalizar a escravidão. Chegam com a promessa de recuperar os países e o fazem com a indústria da escravidão”. Veja mais fotos do resgate de refugiados por navio da empresa BBC próximo ao Canal de Suez. Segundo o jornalista, armazenar refugiados está sendo um dos negócios mais lucrativos do século. Um exemplo dado por ele é o da empresa Transfield Services, que administra – com dinheiro do governo da Austrália – um centro de detenção na Papua Nova Guiné. Lá, perto de 90% dos presos são refugiados, que vivem em condições desumanas, mulheres são violadas e ninguém pode entrar para ver as condições dos prisioneiros.  Eles vivem em situação de escravidão e prestam serviços. Ou seja, seu trabalho vira lucro para a empresa, enquanto eles apenas sobrevivem, nas piores condições. Ele também observou esse mesmo sistema em prisões dentro dos Estados Unidos, como uma do estado de Geórgia, que é administrada pela empresa Corrections Corporation of America. O sistema é o mesmo. Centenas de presos – no geral negros e pobres – servindo como escravos. “E lá dentro é o inferno. Direitos Humanos não existem”. E, para a sociedade, esse sistema parece ser perfeito, pois uma boa parte apoia. Tanto que o atual candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, fala abertamente que é necessário que os EUA se livrem de 11 milhões de imigrantes em situação irregular. E aí, a indústria da prisão privada parece ser a solução perfeita. Conforme Anthony, empresas como a CCA e a GEO Group, que administram prisões privadas nos EUA e fora deles, tiveram lucros de mais de 40 milhões de dólares nos últimos anos. Para se ter uma ideia do volume do negócio, nos Estados Unidos, são detidos 34 mil refugiados a cada noite. Agora imaginem esses exércitos trabalhando e produzindo lucro, sem receber salário. É perfeito e legal! Agora, no mês de outubro, durante uma grande marcha contra a violência policial realizada na cidade de Nova Iorque, outro jornalista, Chris Hedges, que recentemente lançou um livro chamado “O império da ilusão: o fim da alfabetização e o triunfo do espetáculo”, também denunciou

A luta contra a PEC 215

por Elaine Tavares – no IELA No sistema capitalista de produção a humanidade só tem sentido se estiver a serviço das coisas. Da mesma forma, os trabalhadores em geral só são considerados como produtores de coisas que, por sua vez, farão a riqueza daqueles que são os donos dos meios de produção. A vida da pessoa que produz coisas para os donos das empresas ou das terras não tem a menor significação. Ela só vale enquanto estiver em condições de produzir e gerar lucro. Se não estiver girando essa roda, a pessoa em si não importa. Essa é uma verdade inquestionável dentro do sistema capitalista. E é por isso que pessoas como os índios, por exemplo, não tem a menor importância para quem defende esse sistema. Para essas pessoas o índio é um inútil, não produz coisas, não garante lucro, logo, é passível de ser exterminado. Essa foi a síntese da argumentação dos deputados que compõem a comissão especial da PEC 215 e que são favoráveis à mudança da Constituição. A PEC, se aprovada, permitirá que todas as decisões envolvendo demarcação de terras – no presente, no futuro e no passado – sejam tomadas, e revistas, pelos deputados. Ora, a maioria dos parlamentares na Câmara de Deputados defende os interesses dos empresários e fazendeiros. Nesse sentido, é mais do que óbvia a decisão que será tomada. Se não houver uma força gigantesca por parte da sociedade – e não apenas dos índios – a PEC fatalmente passará. O que está em questão é a posse da terra. E a terra, para os que defendem o sistema capitalista, é considerada um equivalente do capital. Ela está aí para gerar lucro, não para ser ocupada por índios que não produzem. Importante diferenciar produção de produção capitalista. A terra, para os indígenas, está colocada numa totalidade que envolve a maneira de viver. Ela é espaço de moradia, de comunhão, de produção de alimentos, de coleta de alimentos, é espaço do sagrado, morada dos deuses. A terra não existe para gerar lucros. Ela existe para ser espaço de vida. O que se planta na terra é para usufruto das famílias, tem reprodução compartilhada. Já para a produção capitalista a terra é um bem que se compra e vende. Ela tem um valor intrínseco como coisa produtora de lucro, seja para exploração mineral, para produção de monocultura de exportação ou apenas para ficar descansando, engordando o valor para futuras vendas. Não há qualquer relação com a terra, a não ser a de coisa que pode gerar lucro em alguma medida. Por isso os deputados querem fazer passar a PEC 215. Com essa mudança na Constituição, eles poderão – representando os interesses dos latifundiários – reverter demarcações já feitas e impedir que novas demarcações sejam efetuadas, expulsando os indígenas de seus territórios históricos ou não permitindo que eles se mantenham nas terras originárias. Para esses senhores e senhoras que representam os poderosos, no Brasil não existem mais índios, eles são “índios genéricos”, como disse um representante de Santa Catarina, Valdir Colatto (PMDB). E o que significa essa expressão? O que seria um “índio genérico”? Alguém que não é mais índio, ou alguém que só aparenta ser? Para o deputado, índio genérico seria aquele que fica usando celular e o verdadeiro é o que está escondido na mata. Ou seja: para ele, bem como para seus parceiros, qualquer um desses “índios” é um problema. Tanto o que está na mata, atrapalhando o progresso, como o que usa celular, porque está se apropriando de um equipamento de “branco” para fazer a luta. Alguém poderia dizer que Colatto é um ignorante. Mas, ele não é. Na verdade ele está trabalhando muito bem no campo do simbólico, levando a sociedade a crer que se um índio usa roupas, não faz sons guturais e ainda usa celular, só pode não ser um índio.  E se não é um índio, então suas reivindicações não devem ser levadas em conta. Pura lógica. No final, o que importa mesmo é semear a dúvida, que, depois, será divulgada à exaustão pelos meios de comunicação de massa. E o homem comum, sentado diante da TV acusará o índio e defenderá a ideia de que os deputados, gente de bem, é que estão certos. O fim de tudo isso é um só: desqualificar o índio para apoderar-se de suas terras. O projeto capitalista não tem espaço para o índio. Como já foi dito, ele não produz coisas. Não gera lucro. Mas, como eles existem então a única saída é exterminá-los. Por isso que os conflitos envolvendo a luta pela terra e os indígenas estão cada vez mais frequentes, envolvendo até forças de repressão nacionais, como se viu essa semana no Mato Grosso do Sul. Todos os instrumentos do estado são colocados à disposição dos que se dizem “proprietários” das terras para despejo dos indígenas que se arvoram a reivindicar um espaço que é seu. O estado existe para defender os interesses dos empresários e fazendeiros. O legislativo está tomado por aqueles que defendem os mesmos interesses. Os meios de comunicação estão a serviço dos mesmos empresários e fazendeiros. Tudo está articulado. Não é sem razão que o senso comum vai assumindo  a ideia de que os índios (os verdadeiros) são preguiçosos e os “genéricos” são falsos. Por isso as pessoas “de bem” conseguem assistir na televisão o massacre de crianças, jovens e velhos nas estradas, nos acampamentos, nas aldeias, como uma coisa natural. “É preciso limpar o Brasil da escória”, dizem os ricos, e os empobrecidos que deveriam cerrar fileiras de solidariedade, assentem, sem perceber que a escória mesmo é outra. Hoje segue o debate na comissão especial da PEC 215 e pela conformação da mesma é bem provável que seja aprovada. A maioria parlamentar é conservadora e defensora dos interesses da minoria que domina os meios de produção no país. Não há dúvidas quanto ao resultado. E, indo para discussão e votação no plenário também é certo de que passe. A correlação de forças na casa

O idiota não tem dúvidas

por Fernando do Valle O idiota quer matar bandido, petista, imigrante, índio, “tudo aquilo que não presta”, como disse um deputado gaúcho, idiota de alta patente. O idiota acredita no patrão, no apresentador celerado da televisão e até no patinho da FIESP. O idiota acredita que “todo político rouba”, outro dia estacionou na vaga de idoso no banco, “era rapidinho”. O idiota não lê porque tá cansado do serviço. O idiota acha que esse negócio de escrever é “coisa de vagabundo, de quem não tem o que fazer”. O idiota nunca questiona a imprensa e o funcionamento do mercado, afinal de contas, ele é um cidadão de bem “cansado de pagar tantos impostos”. O idiota paga pau pros Estados Unidos, repete que “lá as coisas funcionam”. Adora se entupir de pipoca e refrigerante no shopping assistindo ao último sucesso de Hollywood, depois, ainda com fome, vai pra praça de alimentação, onde comenta: “que filme bem feito, cheio de efeitos especiais, por isso que gastam tantos milhões de dólares”. Perto do quilo onde almoça todo dia, o idiota viu uma morena de minissaia e comentou com o colega: “gostosa, né, essa mulherada de hoje anda tudo fácil”. O colega da firma não respondeu. O idiota teve a certeza de que o amigo era gay. Duas vezes por semana, no mínimo, solta na conversa no elevador, no clube ou na casa de amigos: “não sei onde esse país vai parar”. Antes o idiota tinha vergonha, agora tem orgulho. Como eu também sou idiota (só às vezes, ok), tenho uma certeza: o número de idiotas cresce e isso uma hora vai dar merda.

A dolorosa resistência dos Guarani Kaiowá

por Elaine Tavares Outro dia vi o vídeo no qual uma fazendeira do Mato Grosso do Sul dizia que eles eram os donos daquelas terras porque foram os “desbravadores”. Estranhei o depoimento, pois, ali, naquela fala, ela mesma afirmava que seus antepassados foram os que conquistaram a área para que, naqueles longínquos dias, pudessem levantar suas casas e iniciar suas lavouras. O que, então, significa isso? Se eles desbravaram significa que limparam a passagem, tornaram mansos, civilizaram. É o que diz o dicionário. Se assim é, só tornamos mansos ou civilizamos alguém. E quem era esse alguém? Os índios. Esse é resumo da ópera bufa dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul. Logo, ela mesma confirma que o território hoje ocupado por seus familiares e por ela mesma era originalmente dos Guarani. A fala da fazendeira é bastante esclarecedora da situação que vivem os Guarani Kaiowá naquela região. Para ela e para seus amigos, os indígenas nada mais são do que um atrapalho, uma incomodação, uma desordem no mapa tão bem construído por eles. Se um dia a gente branca invadiu as terras e limpou a área dos índios, agora eles que não venham reivindicar posse de nada. Foram destruídos, que sumam dali. Essa é a verdade dos fazendeiros. Eles se dão ao direito de pensar que a matança dos índios do passado foi uma coisa boa, um passo no avanço do progresso. Mas, a senhora do vídeo se esquece que quando seus antepassados “desbravaram” aquela região, muitos dos povos que ali viviam não morreram. Eles fugiram, empurrados pela violência e pela ponta dos mosquetes. Só que para os indígenas a terra não é um pedaço de chão que se pode comprar ou desbravar. É parte viva da cultura. Assim, mesmo tendo fugido ou se escondido, os indígenas ficaram por ali e, com o passar do tempo, foram voltando, exigindo o direito de viver naquele território que ocupavam originalmente.Essa é a verdade dos indígenas. Eles insistem em ver garantido o seu direito de estar nas suas terras. Querem uma pequena parcela, nem exigem o espaço todo. Só um espaço digno para vivenciar sua cultura. Mas, a história dos homens é a história da luta de classe, já disse alguém um dia. E nesse combate, a classe dominante é a que tem as armas e o estado. Os oprimidos só têm os seus corpos e a vontade de viver na justiça. Então, aparentemente, não há saídas. Já dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein: “o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes”. Como então fazer com que esses mundos dialoguem? Tivéssemos um Estado ancorado na justiça, seria ele o responsável por garantir que essas duas verdades pudessem ser debatidas na serenidade. Mas não. No caso dos conflitos no Mato Grosso do Sul, o estado ainda aporta as armas e a proteção ao campo dos “felizes”, os fazendeiros. Na madrugada dessa sexta-feira a gente da tekoá Pyelito Kue/Mbarakay, que fica no município de Iguatemi (MS), sofreu mais uma violência, das inumeráveis violências que vem sofrendo desde que os indígenas decidiram reivindicar sua morada. Jagunços armados desfilaram pelo acampamento onde estão instalados os Guarani e Kaiowá dizendo que todos seriam mortos. Segundo relato do Conselho Indigenista Missionário, houve um ataque e dez indígenas ficaram feridos, incluindo uma gestante e um rezador. Foram usadas balas de borracha, que são de uso restrito das forças policiais, e armas de fogo. Desde alguns dias, dizem as lideranças, que o Departamento de Operações de Fronteira (DOF) vinha fazendo ‘visitas’ ostensivas aos indígenas, inclusive levando embora suas coisas. Também denunciaram que os capangas dos fazendeiros bateram em uma mulher há alguns dias, agressão que foi confirmada pela Funai. O clima é de perplexidade na tekoá Pyelito Kue. Já vai longe o processo de sistemática agressão a essa gente que, inclusive, em 2012 chegou a lançar um pungente documento ao mundo, dizendo que estavam todos dispostos a morrer na defesa do direito de permanecer na terra que lhes é de direito. Por conta da mobilização causada por esse clamor os Guarani Kaiowá retomaram a Fazenda Cambará, na qual ocupavam 100 hectares. A fazenda inteira é um latifúndio de 2.000 hectares. Desde a retomada, o processo de acosso e violência contra os indígenas não para. Jagunços rondam fazendo ameaças, pessoas são atingidas por arma de fogo, agressões são praticadas, sem que o estado brasileiro tome qualquer providência. A área reivindicada pelos indígenas já foi indicada pela Funai como tradicional e mesmo assim o estado não toma uma atitude concreta de demarcação das terras, sendo, portanto, conivente com todo o massacre vivido pelas gentes Guarani Kaiowá. Prefere mantê-los nas beiras de estradas, em situação de miséria e abandono. Assim, a única saída que encontram é retomar os lugares que historicamente sempre foram seus, enfrentando aí a fúria e as armas dos fazendeiros. O Mato Grosso do Sul é uma terra na qual a lei estoura do cano das armas. E quem tem as armas não são os índios. A dolorosa resistência do povo Guarani Kaiowá muito pouco espaço ocupa nos jornais ou na TV. Não interessa ao sistema de interesses que rege o país alfabetizar as gentes na verdade histórica. Como poderiam explicar o fato de que os fazendeiros podem matar e manter milícias privadas à margem da lei? Como explicar que para os poderosos a lei não vale? Melhor seguir malhando o velho discurso de que os índios atrapalham o progresso, que deviam se integrar à cultura branca, que deviam parar de encher o saco de quem quer produzir. Criar estereótipos e preconceitos mantendo a imagem de selvagens ou de preguiçosos. Assim, quando um deles cair morto, não causará comoção. Mas, no fundão desse Brasil, que é fruto do sangue indígena, as gentes seguem resistindo. No Mato Grosso do Sul os Guarani Kaiowá mantêm a promessa feita em 2012: lutarão até o último homem e a última mulher. A questão que temos de colocar é: E nós, permitiremos o massacre? Desde os nossos lugares teremos de usar nossos

Um mundo opaco e um grito de dor

por Elaine Tavares De fato, por aqui, pelo menos por agora, não vivemos uma guerra de verdade, com bombas explodindo casas e gente matando gente sem qualquer razão plausível.  Mas, é certo que nesse nosso mundo estranho, das grandes cidades, temos muitos espaços em que a violência institucional é pão comido, realidade cotidiana, tão cruel quanto a realidade de uma guerra. As balas estouram nas casas e as pessoas morrem como moscas. E, a dita sociedade, de modo geral, vai se acostumando a essas cenas, como se elas se naturalizassem. Assim, de repente, uma chacina num bairro qualquer da grande São Paulo passa a ser só uma notícia na TV. Negros e pobres, “potencialmente marginais”, nada de mais. Então alguém mata um leão e o mundo se comove. Porque, afinal, parece tão selvagem que exista quem cace bichos só por prazer. Aí se produzem campanhas e vertem-se lágrimas. Mas, em alguns dias, tudo passa e já uma outra sensação assoma no mundo do espetáculo.  A vida e sua capacidade de rearticulação. Na África, fanáticos sequestram meninas e as convertem em escravas sexuais. Na Turquia, estupram e torturam mulheres para que elas aprendam a não se insurgir contra o terror. Na Palestina, soldados armados sequestram e machucam crianças. E tudo vai passando na tela, como um filme B, incompreensível e avassalador. É como se fosse calejando a dor e ela já não mais doesse. Nos países cobiçados pelos Estados Unidos, guerras vão sendo semeadas, grupos de fanáticos são incentivados e armados. E eles decepam cabeças, afogam pessoas, queimam-nas vivas, usam todos os requintes de crueldade para matar. Mas, tudo bem, são apenas os “loucos” dos árabes. Até que um europeu ou um americano morre e então, venha nova comoção mundial, que também passa em alguns dias. Agora, a TV nos empurra goela abaixo as dolorosas cenas das famílias em fuga, querendo entrar na Europa, escapando do terror do oriente. Milhares morrendo afogados, sem que ninguém os queira ajudar. Milhares buscando uma chance de manter vivos os filhos, sendo empurrados de volta para a morte. Não pode entrar. Erguem-se muros e cercas. A Europa branquinha não quer confusão. Pode causar confusão, mas não a quer nos seus quintais. E então aquela cena, vista até a exaustão, de um menininho morto, na beira do mar, perdido para sempre da chance de seguir em frente. Um a mais, dos tantos milhares que vão ficando pelo caminho na fuga desnorteada. Ah, que mundo opaco, sem maravilhas… Não, não dá para dormir. Não dá para seguir como se nada fosse. Somos responsáveis também, de alguma forma.  E o que fazer? Como proteger os meninos das favelas brasileiras, as mulheres da Nigéria, as curdas, os haitianos, os sírios, as afegãs, iraquianas, os indígenas brasileiros e equatorianos? Como parar o terror? Como impedir que mais meninos cheguem mortos à praia? Não sei! Seguimos por aí, travando a luta por um mundo justo, de riquezas repartidas, mas parece tão pouco, e, às vezes, tão inútil. E fica essa dor profunda, martelando, esse medo infinito de ver a humanidade perdida de si mesma. Quantos muros ainda ergueremos? Quando aprenderemos a amar, de verdade, sem medidas? Quando entenderemos que a vida é um presente e todos têm o direito de desfrutar do jardim? Quando destruiremos esse sistema perverso no qual para que um viva outro tenha de morrer? Quando quebraremos as correntes e viveremos em paz? Não há respostas e essa é uma crônica louca, um grito de dor. Porque não dá para ser diferente! Não tem pé, não tem cabeça, só tem coração. Publicado originalmente no blog Palavras Insurgentes.

Comunicado urgente à classe média: não há vagas na FIESP

por Fernando do Valle FIESP -Quando adolescente nos anos 80, era tomado por indignação com a paisagem cotidiana nos finais de tarde das avenidas da Zona Sul de São Paulo em que trabalhadores voltavam à periferia no final da tarde pendurados na porta ou na parte externa dos ônibus. Várias vezes, abordei o assunto em ambientes de classe média, a maioria não se importava, achava que o problema não era deles. Os ônibus continuam cheios e os vagões do metrô abarrotados, mas é inegável que a tolerância com situações degradantes como aquelas diminuiu entre a população pobre. O que infelizmente não muda é a ilusão de certa classe média de que por um descuido dos quatrocentões da Fiesp irá ocupar uma vaguinha na próxima reunião da alta roda no prédio da Paulista. Em vez da solidariedade aos de baixo, comportam-se como garçons convictos de que foram convidados para a festa VIP. O pânico surge do medo de ser confundido com a classe C no momento em que engole o hambúrguer fast food no shopping com ar-condicionado, com direito à comédia Globo Filmes. Se agradar ao CEO, talvez um jantar no Outback. Essa miopia sempre tornou tranquilo o sono de certos banqueiros e empresários, ou melhor, donatários hereditários, que espoliam nosso país há muito tempo. Forjada no preconceito e na exclusão, a ideologia predominante entre a classe média rechaça a participação política, despreza o Estado, inclusive como ente regulador, e abraça sem ponderação a ideologia do mercado. Não há espaço para a solidariedade e o pensamento próprio, mais fácil terceirizar os neurônios para mantras absorvidos na grande mídia, e repetidos no elevador. Raramente avançam além de seu papel de consumidor e poucos atuam na esfera pública como agente de transformação social ou política. A quantidade de votos do anódino Celso Russomano na última eleição é um sintoma. Para seus eleitores, cidadania e direitos humanos não têm utilidade, nos resta a “cidadania do consumo”: ai se me engambelarem no momento sagrado da compra, me revolto e exijo direitos. Fora isso, salve-se quem puder. O comportamento bovino é guiado pela propaganda e também por um jornalismo que não colabora na reflexão e na defesa do interesse público, apenas domestica o ser humano, como afirma o jornalista espanhol Ignacio Ramonet. Defender os interesses do 1% que controla o dinheiro não credencia ninguém dos 99% a ser aceito no clube dos bilionários. Parece surreal, mas muitos parecem não se dar conta disso. E o grande capital está cada vez mais concentrado, em 2016, a grana que estará nas mãos de 1% ultrapassará o montante dos 99% da população mundial, segundo estudo da organização não-governamental britânica Oxfam. Mais um motivo para exigir mais justiça e menos privilégios. Essa justiça só será alcançada com mais inclusão, educação, cultura e através da luta contra a concentração da renda nas mãos de poucos. Já passou da hora da classe média se libertar de sua identidade de grupo ‘quentinha’ embasada no discurso excludente e classista. Caso isso não ocorra, o caminho para mudanças efetivas será mais árduo. A classe mérdea

Rápidas impressões sobre Cuba

por Cid Benjamin Como alguns sabem, visitei Cuba durante uma semana, com mais nove amigos: Milton Temer, Alfredinho do Bip-Bip, Paulo Passarinho e seu filho Pedro, Mário de Oliveira, Vitor Iório, João Pimental (o Janjão), Zé Paulo e Carlinhos Siuffo (o Baiano). Ouvimos muita música, tomamos mojito, provamos a boa cerveja local, discutimos bastante política, aprendemos em conversa com os cubanos e apreciamos aquele belo país. Agora, a pedido de alguns amigos, faço aqui um rápido relato sobre o que vi na viagem. À guisa de introdução, lembro algumas coisas, antes de entrar nos problemas por que passa a sociedade cubana. Mesmo com a crise internacional, que tem servido de justificativa para a recessão brasileira, Cuba cresceu 4% no ano passado. A previsão para este ano é que o patamar se mantenha. Mesmo com o fim do bloco socialista, que afetou muito o país, Cuba ainda tem os melhores indicadores sobre mortalidade infantil e mortes por parto das Américas. Seus números são melhores inclusive do que os dos Estados Unidos. Isso é fruto da atenção especial à infância e às mulheres grávidas. Cuba tem a maior expectativa de vida das Américas, superior mesmo à dos Estados Unidos, o que chega a surpreender. Cuba tem os melhores sistemas de saúde e educação das Américas, o que é reconhecido por organismos internacionais. Algo que salta aos olhos de quem chega a Cuba é o fato de o nível médio de informação e cultura dos cubanos ser muito maior do que os brasileiros. Aqui, é raro uma pessoa humilde conseguir articular de forma coerente seu pensamento em frases concatenadas. Basta ver a maioria das entrevistas dos jogadores de futebol. Lá, qualquer um tem uma facilidade de expressão e um conjunto de informações que salta aos olhos. Por fim, é justo lembrar que, ao se comparar a vida em Cuba hoje com a de outros países, é preciso que essa comparação seja feita com países similares a ela na época da revolução, como República Dominicana, Guatemala, Honduras etc. Não com países europeus, que já tinham um patamar superior de desenvolvimento. E, comparada com as populações de países que estavam em seu patamar de desenvolvimento, é inegável que a população de Cuba vive muito melhor do que elas. Bom, isso posto, vamos aos principais problemas da sociedade cubana hoje. O problema maior continua a ser, e será ainda por algum tempo, a questão das duas moedas – o peso cubano, com o qual são remunerados aqueles que trabalham para o Estado, e o CUC, a moeda criada pelo Estado cubano, conversível para euro ou dólar em lojas estatais. O governo continua garantindo produtos básicos na libreta, mas em quantidades insuficientes para o que uma família consome ao longo do mês. E com pesos cubanos é pouco ou quase nada o que se consegue comprar “por la libre”. Consegue comprar o excedente quem dispõe de CUCs. Por isso, quase todo mundo se vira, de uma forma ou de outra, para conseguir moedas fortes, a serem convertidas em CUCs. É comum, e tolerado, embora seja ilegal, que alguém que tenha um carro o use informalmente como táxi (lá não há taxímetros, as corridas são combinadas antes com o passageiro e pagas em CUCs). Muita gente deixa o país ou fica em Cuba trabalhando fora de sua qualificação, em geral em algo vinculado ao turismo, mas não só a ele, para receber em CUCs. Uma amiga cubana, engenheira, fluente em inglês e francês, largou o emprego na sua profissão para trabalhar como funcionária administrativa de um consulado. Agora, tem uma oferta de emprego no Canadá para trabalhar na sua especialização, o que a deixa dividida, pois não gostaria de deixar Cuba. Um cubano historiador, com quem conversei, ganha em pesos o equivalente a 40 CUCs – o mesmo valor que um grupo de quatro de nós pagou a um taxista para nos levar a uma praia fora de Havana e ficar conosco uma tarde inteira, esperando para nos trazer de volta. O historiador com quem conversei complementa seu orçamento porque às vezes dá palestras fora de Cuba e tem livros publicados no exterior. Outra amiga, que participou da guerrilha e teve alto cargo na administração, hoje está aposentada e complementa os vencimentos alugando quartos em seu apartamento para pessoas recomendadas que vão a Cuba como turistas. Seu apartamento tem três quartos, é bem mobiliado e com vista para o mar. Muitas famílias recebem ajuda de parentes que vivem no exterior. E não é uma emigração política, mas econômica. Essa emigração já não é mais mal vista, como nos primeiros tempos da revolução, quando quem saía era considerado quase contrarrevolucionário e desertor. Além desse dinheiro enviado informalmente por pessoas da família ou amigas, há os contratos que o governo cubano com outros países faz para a exportação de cérebros. Aliás, hoje é esta, e não o turismo, a maior fonte de receita para Cuba. Para que se tenha uma ideia, o país tinha seis mil médicos quando da revolução. Três mil foram embora nos primeiros anos. Hoje tem 11 mil só no Brasil. Leia outro relato sobre Cuba, “De tanto me mandarem pra Cuba, eu fui”, aqui também no Zonacurva.   Abrir-se para o turismo e, consequentemente, para o sistema de duas moedas foi inevitável depois do fim da URSS e do bloco socialista, por mais que traga problemas. Não fazer isso seria não se sustentar ou caminhar para algo parecido à Coréia do Norte – o que, além de indesejável, no caso cubano seria impossível, até pela localização geográfica do país. Mas como sair dessa situação das duas moedas? A aposta é no fim do bloqueio. Hoje Cuba não tem crédito em bancos internacionais, sendo obrigada a pagar à vista tudo o que compra no exterior; qualquer navio que atraque na ilha não pode ir aos Estados Unidos durante seis meses; e as empresas que fazem negócios com Cuba não podem fazer negócios com os EUA. A normalização das relações permitirá não só um incremento do turismo, mas

Os povos “chicos”

Sim, eu tive a sorte de nascer na fronteira. Argentina e Uruguai, também mátrias. Desde bebezinho ouvindo a língua espanhola e as histórias da gente da Banda Oriental. Não podia ser outra coisa pra uma mulher nascida nas terras brasileiras, mas eivada de latinidade. E foi por essa minha especificidade regional que conheci, muito cedo, a poesia de Hamlet Lima Quintana, um argentino fabuloso que fez parte do chamado movimento Nuevo Cancionero, vigoroso criadouro de poesia no campo da música. Dentro do meu coração eu tenho a mais absoluta certeza de que foi uma de suas canções que me empurrou para ser quem eu sou. Era uma dessas cálidas noites da fronteira, numa primavera fugaz. Lá estava eu, sozinha, de olhos grudados na LT 85, Canal 12, Posadas, uma emissora argentina cujo sinal pegava muito bem em São Borja, quando escutei, na voz da sempre emocionante Mercedes Sosa, uma das mais incríveis canções de Lima Quintana: Los pueblos de gesto antiguo. Lembro como se fora hoje o impacto daquela canção sobre mim. Naqueles dias já tinha um especial fascínio pelos povos antigos dessa estonteante América do Sul, germinado pelas leituras que eu vorazmente fazia nos livros comprados, aos borbotões, por meu pai. Então, aquela poesia ofereceu o caminho: “allá me voy a vivir”… Já não poderia haver dúvidas. Quintana foi um desses poetas que buscou fazer música militante, capaz de ser entendida pelas gentes na sua mais intensa profundidade. Mercedes deu vida a muitas delas. Essa, particularmente, fala dos povoados pequenos onde as pessoas ainda são capazes de gestos poéticos de profunda ternura, gente que se dá as mãos para vencer as dificuldades e as batalhas cotidianas. Essa coisa típica dos “pueblos chicos”, onde todos se conhecem e buscam a mesma direção. Hoje, vivendo no Campeche, sei o que é isso. E caminhando por essa Abya Ayala (América Latina), essa terra feita de esplendor, sinto que pude realizar o que, naqueles dias, era um sonho: “Me iré por aquel camino que lleva al pueblo, que crece entre la ternura que da el maíz. Me iré con la lucha a cuestas y el alma abierta, allá me voy a vivir. Con toda la fuerza antigua de mi raíz”. Não foi sem razão que andei por aí, buscando as histórias velhas, dos povos antigos, dos nosso esquecidos heróis e heroínas do cotidiano, esses que verdadeiramente fazem a história. Tupac Katari, Bartolina Sisa, Zumbi, Dandara, Micaela, Juana Azurduy, Manoelita Saenz, Tupac Amaru, Gauicaipuru, Vaimaca, Sepé, tantos outros, tantas outras. E hoje, quando escuto aquela voz potente de La Negra, ainda transbordo de pura emoção. Porque um dia encontrei essa poesia no caminho e fiz dela a razão de viver. https://www.youtube.com/watch?v=5Pdzy4bqGgI “Me gustan los pueblos chicos de gesto antiguo Son gente que da la mano y saluda al sol Que sabe ganar la vida y ganar la muerte Allá me voy a vivir Con gente que planta un árbol y enciende amor.   Me iré por aquel camino que lleva al pueblo Que crece entre la ternura que da el maíz Me iré con la lucha a cuestas y el alma abierta Allá me voy a vivir Con toda la fuerza antigua de mi raíz.   La gente estará cantando la vida nueva Que esta creciendo en los pueblos chicos Los pueblos de gesto antiguo Con gente que da la mano.   Me voy a cantar con ellos hasta que el alba Rocié el campo de aroma puro. Sencillo como la lluvia Profundo como la paz.   Los pueblos de gesto antiguo se dan la mano Los pueblos se dan la mano para vencer Los pueblos que van creciendo como los vientos Allá me voy a vivir   En ese pueblo tan chico que va a nacer”.

Cuba, liberdade de imprensa e a fome

Após mais de meio século sob bloqueio econômico que lhe cerceia o desenvolvimento, Cuba é uma ilha cercada por pressões políticas, econômicas e midiáticas por todos os lados. No momento em que presenciamos o restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos, principal inimigo até então, e o regime cubano, vale entender o quanto é fundamental conhecer um objeto, um país, mesmo um projeto ou período histórico, para nos qualificarmos a discorrer sobre eles e por maior que seja a presunção generalista. Ainda não conheço Cuba, mas sim a trajetória do regime revolucionário de linha marxista-leninista implantado desde 1959, a partir da luta iniciada em Sierra Maestra e que libertou os cubanos do governo ditatorial do sargento Fulgêncio Batista, subordinado aos interesses das oligarquias internacionais e dos investidores estrangeiros, entre 1933 e aquele ano. Por mais que tenha posição contrária, é facilmente constatável ao longo da história o quanto em tempos de guerra, estado de sítio ou de extrema necessidade, tem sido facultado aos governos estabelecer limites às liberdades individuais, incluindo a de imprensa – como aconteceu nos Estados Unidos durante a guerra do Vietnã, ou no Brasil sob regime militar, entre 1964 e 1985, por exemplo.  Leia o texto “De tanto me mandarem para Cuba, eu fui” publicado aqui no Zonacurva. Resta claro, portanto, que em situações extremas a liberdade de imprensa é tolhida em prol do bem comum e, mesmo sem a existência dessa condição, a ação contrária à ordem estabelecida, ou de apoio ou auxílio a países inimigos, é comumente punida, mesmo no até recentemente principal inimigo de Cuba. Se diante de tais situações, a suspensão de liberdades é admitida nos mais diversos países, por que não deveria sê-lo no caso cubano? Afinal, o bloqueio econômico, estendido por Washington a nações que mantivessem negociações com Havana, impunha a condição de um estado de sítio permanente, como se diria de uma guerra não declarada contra o povo cubano. Como exigir, nesse sentido, que Cuba trate aqueles que dão apoio e auxiliam ao inimigo que está à sua porta, através de escritos ou outras ações, garantindo-lhes a liberdade de fazê-lo, quando nenhum outro Estado o faria, na mesma situação? A defesa da suspensão da restrição à liberdade de expressão em Cuba, sob esse ângulo, não é difícil concluir, nada mais é do que fazer o jogo do inimigo, no caso, a maior potência econômica e militar do planeta. Ao omitir o contexto no qual a referida restrição está inserida, tende-se a criar um mito sobre o qual a imprensa, supostamente livre, deixa de cumprir sua obrigação. Sim, o que sabe o povo brasileiro sobre a realidade cubana? Quem foi informado pela imprensa de que há quase 50 anos Cuba já extinguiu o analfabetismo?  Quais reportagens da “mídia livre” enfatizaram o fato de que a Escola Latinoamericana de Medicina, em Cuba, já formou, gratuitamente, mais de cinco gerações de médicos de todos os países da América Latina, inclusive do Brasil e dos EUA, com a melhor medicina social do mundo e em caráter solidário? A resposta do jornalista e escritor cubano Leonardo Padura à repórter da revista Veja, Nathalia Watkins, sobre a realidade de “miséria” em Cuba, no programa Roda Viva, da TV Cultura, foi a de que uma das coisas que ele tenta evitar sempre, quando lhe perguntam sobre as realidades de um país que visita, é dar sua opinião. “Porque uma realidade só pode ser conhecida por quem participa dela, vive nela. Em Cuba, é certo que há pobreza, não posso negar. Mas ninguém morre de fome em Cuba. De uma forma ou de outra, as pessoas comem e têm um teto. Há mais gente [com fome] na rua em um quarteirão aqui de São Paulo do que em toda Cuba”, reagiu. Assista ao trecho da entrevista do escritor Leonardo Padura no programa Roda Viva: A imprensa criou o mito de sua liberdade, mas até que ponto ela deixa de atender aos seus próprios interesses e agenda política? A experiência mostra que uma imprensa verdadeiramente livre jamais existirá de forma estável: sempre irá se degenerar e retornar ao servilismo. E sempre se corromperá, pois o poder corrompe e o poder da imprensa, convenhamos, é quase absoluto. Relatório da FENAJ alerta para as ameaças á liberdade de imprensa no Brasil 10 frases de Che Guevara

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