Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

A invasão gringa

Há algum tempo em Sampa, línguas estrangeiras incorporam-se à paisagem urbana em locais nunca dantes navegados. Casal conversa com o filho em francês na padoca, atletas de final de semana ofegantes em alemão no Parque Villa-Lobos, espanhol versus portunhol na fila do cinema da Paulista e inglês sem sotaque perto do caixa da farmácia. Os gringos redescobrem o Brasil. Com a Europa de pires na mão e o nosso baixo desemprego, empresas brasileiras os contratam a preço de banana. E banana is our business. Os diplomas de MBA substituem os enferrujados bacamartes e IPADs e IPHONEs último tipo (comprados por menos) saltam aos olhos dos colonizados como os espelhinhos há mais de 500 anos. O brasileiro adora se inferiorizar e, para nós, tudo que é estrangeiro já começa com três corpos de vantagem. O mantra “vamos passar vergonha na Copa e nas Olimpíadas” ainda é repetido ad nauseam por muitos. Uma piada frequente, contada diurturnamente nos anos 80, dizia que um estrangeiro chega ao Brasil e discorre sobre as nossas maravilhas para Deus. A cada elogio, Deus responde afirmativamente com enfado. Cansado do deslumbre do gringo, Deus responde: “mas você vai ver o povinho que eu vou colocar lá”. A piada explicita o nosso complexo de vira-latas, como dizia Nelson Rodrigues: somos Narcisos às avessas. Temos o prazer mórbido de acabarmos com nossa autoestima por conta própria. Outro dia encontrei nova modalidade de autoimolação numa festa corporativa. Novo rico que migrou da classe A para AA (segundo nova pesquisa da Standard & Poor’s) relatava, crente que agradava aos convivas, como seu amigo italiano garantia que nenhuma cantina italiana de São Paulo presta. O índio AA concordou com o cara-pálida prontamente.

No bico do corvo (1)

Um Deus sensível. Manda repouso à dor que te devora. Destas saudades imortais. (poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe)   Estava com o pé na cova, quase fui pro saco, por um fio não fui dessa para melhor… Depois de um mês no hospital (15 dias de UTI), 4 cirurgias e 60 dias de convalescência, estou de volta. Além de me perguntarem se melhorei, amigos e parentes me questionaram duas coisas: se tive alguma iluminação metafísica ou contato com o além e se agora passei a valorizar mais as ‘pequenas coisas’ da vida. Começo pela segunda: me emocionei sim quando voltei a ver minha filha dormindo como a pureza de um anjinho, ao comer um pastel de feira, ao dar um mergulho no mar, ao sentir forças para o meu primeiro treino de corrida no Ibirapuera e outras ‘pequenas coisas’. Quando renasci, lembrei de como o mundo lá fora me chamava e eu tinha a cama como o meu terreno exclusivo, a minha minúscula cela monitorada por fios, eletrodos e monitores, sinto calafrios pela espinha ao recordar. A televisão a cabo com poucos canais, metade deles com pastores televisivos e suas picaretagens de costume, aumentava o meu desespero por não conseguir ler um livro. Nem em meus piores pesadelos, imaginei que não conseguiria praticar uma de minhas paixões mais comezinhas. Dentro do possível, mantive a calma. Recordo de forma nebulosa, vivia sob efeito de bombas da medicina moderna, do meu vizinho de UTI. Não queria comer, tomar água, nem dar um curto tour pelo cenário de filme trash de entubados e adormecidos da UTI mas cismou que queria fumar. Uma pequena comitiva de três enfermeiras formou-se para convencê-lo da impossibilidade de tragar sua nicotina. Ele cismou até onde suas forças permitiram. Vencido, dormiu. Vício maldito, que larguei após a internação, pelo menos, por enquanto.     Nada me acalmou tanto quanto a doce morfina, que diminuía as dores lancinantes que me faziam contorcer. Com um pequeno controle remoto na mão, dosava as quantidades de morfina quando sentia dor. Confesso que desobedeci as ordens médicas de não exagerar. Apertava o botão como um desesperado e paz, muita paz artificial! Rezei, rezei bastante. Pela via das poucas orações que sei, tive papos bem próximos com ELE. Não resolve mas alivia. E também já prepara o terreno como, se acontecesse o pior, aquecimento para o papo tête-à-tête. Rezei o Evangelho Segundo o Espiritismo com minha mulher, trecho da Bíblia com minha prima ao lado da cama (falei para ela que era cedo para a extrema-unção), orei a oração de São Francisco, esperei na UTI com paúra a visita de um espírito de luz (lembro de sua cara etérea em sulfite enviado por uma amiga), fiz promessa para Nossa Senhora (já cumpri) e desejei a paz que já experimentei após uma sessão de yoga. Rezaram por mim também. E muito. Agradeço a todos. Um dos médicos me disse que se tivesse a infecção que me pegou há 20 anos, já era. Três vivas! Estamos em 2013, em pleno século 21. Sinto não ter me despedido de alguns médicos e enfermeiros que me ajudaram. Foi o receio da lembrança por parte deles da falta de mais um exame… Nem a pau. Não tive medo da morte, só pensei que era injusto morrer aos 40 quando sempre quis chegar aos 80. Tenho muito o que fazer e viver. Faltou responder a uma das perguntas do primeiro parágrafo, se tive contato com o além, não tive nenhuma experiência extra-corpórea, epifania ou revelação. E nem pretendo ter tão cedo.

O presente burocrático

Por motivos pessoais, ZonaCurva ficou em jejum por um tempo. Em época de presentes e Noéis, republicamos a crônica ‘O presente burocrático’ (publicada originalmente em 9 de dezembro de 2011). Em breve, muitas novidades por aqui, a todo vapor e avante. Aguardem! Papai Noel sentado no meio da Paulista, árvore gigante no Ibirapuera, o contagiante e irritante espírito natalino aportou em Sampa. Molharam o Gizmo. A lista de caixinhas multiplica-se como gremlins, do entregador de jornal, dos funcionários do prédio, do estacionamento, dos lixeiros, algumas de origem insólita. Distribuição de renda by Santa Claus. Todos ganham um por fora. Pelos quatro cantos, a pergunta que não quer calar: “se não der presente para fulano, vai ficar chato?”. Em ato de desespero, toma-se o rumo do shopping ou da FNAC com a indefectível lista de Natal. Pensamento no fulano, nenhuma idéia à cabeça. Poupe seu dinheiro com o presente burocrático, ofertado sem o menor sinal de vontade, por pura obrigação. A vítima do presente burocrático sempre percebe, chefes entediados ou tios famintos pelo tender não contam. Muitos felizardos agradecem animados em momento teatro mambembe o presente sem graça, soa mais falso que nota de três. Existe também o presente burocrático institucionalizado. O tal do amigo secreto da firrma. Para esse, sem escapatória. Presente demonstra afeto, teoria boa, difícil de aplicar. O presenteado sente quando o regalo foi dado por amigo ou familiar que realmente o conhece. Missão complicada de completar, mas, como diz mais uma propaganda natalina entre centenas na telinha, “é época de transformar seu desejo em realidade, compre…” Se você ganhou lenços Presidente ou meias Ace de sua avó, não se entristeça ao crer que ela não lhe tem afeto. Ela se preocupa que se uma ‘corrente de ar’ o pegar desprevenido e você se gripar, irá assoar o nariz direitinho e manterá os pés bem aquecidos. Para muitos, sentimentos como inadequação e rejeição afloram no chamado período de festas. Só em imaginar a ausência de presentes, calafrios percorrem suas espinhas. Se isso infelizmente acontecer, vai ver que o pessoal só está duro mesmo.

Por mais Unos e Celtas na Poli

Toyota, Mercedes, Mitsubishi, Citroen. Um breve passeio pelo estacionamento da Escola Politécnica da USP nos faz sentir em uma concessionária multimarcas da avenida Cidade Jardim. Bom para esses estudantes com saldo bancário que os possibilita circular com carros de ponta, pior para nós que pagamos a conta de faculdades caras com nossos impostos para quem não precisa. Distorção antiga e revoltante do precário sistema educacional brasileiro. O novo projeto de lei aprovado pelo Congresso que reserva 50% das vagas nas faculdades federais para egressos das escolas públicas traz à baila novamente a discussão sobre cotas. A presidenta Dilma tem até quarta (dia 29 de agosto) para vetar ou aprovar o projeto. Os carrões da Poli continuarão por lá, o projeto não mexe nas regras de instituições estaduais como a USP. (nota de 19 de novembro/2013: Dilma aprovou a lei,leia) As discussões sobre cotas geram muita paixão e suscitam polêmicas sobre merecimento, trabalho duro e privilégios. Os estudantes das classes média-alta e alta que despenderam milhares de reais em mensalidades de bons colégios e estudaram muito não podem ser preteridos nas faculdades públicas devido às falhas do ensino público. Ao mesmo tempo, não é justo que o dedicado aluno de escola pública que ingressa na universidade pelo sistema de cotas seja visto como um despreparado com regalias. Alguns contrários às cotas chegam ao absurdo de afirmar que esse estudante pioraria o nível de excelência de algumas federais. Muito se diz que as cotas sofrem de miopia pois não enxergam a necessidade de mudanças no ensino público do país. Segundo esse raciocínio, com a melhora da educação gratuita, ricos e pobres estudariam lado a lado e os mais aptos entrariam nas melhores faculdades. Sabemos que estamos muito distantes desse cenário, por isso, a adoção no momento de criteriosas ações afirmativas, sociais e/ou raciais, pode viabilizar certa democratização no acesso às universidades. A luta pelo ensino público de qualidade e as cotas podem caminhar de mãos dadas. A esperança por melhores dias nas salas de aula pode vir de simples iniciativas como a fanpage Diário de Classe, criada por Isadora Faber, a estudante de apenas 13 anos narra os problemas que enfrenta em sua escola pública em Santa Catarina e já conta com cerca de 11 mil ‘curtidores’ (http://tinyurl.com/95ah35o). (nota de 19 de novembro:  a página conta com incríveis 628 mil fãs) Iniciativas como o ProUni e ENEM devem ser aprimoradas e podem ser usadas em conjunto com o sistema de cotas. A busca pelo fim das injustiças nos mecanismos de acesso e no funcionamento do ensino superior exige esforço de várias esferas de poder. Enquanto estudantes das classes menos privilegiadas enfrentam faculdades noturnas de baixa qualidade após o dia de trabalho, formados em cursos públicos de excelência como engenharia, economia, administração e outros vão trabalhar em bancos, consultorias privadas e multinacionais, somente alguns são absorvidos pelo  funcionalismo público. O dinheiro público banca a formação de mão-de-obra qualificada para a iniciativa privada, que raramente apoia a universidade com patrocínios e verbas. A universalização de um ensino superior humanista e de qualidade faz parte do anseio de uma sociedade mais igualitária e é uma das prerrogativas para o Brasil enfrentar os muitos desafios que o esperam no futuro.

Brasil só perdeu?

Entre o preparo de um misto quente e um cheese-burger, o chapeiro da padaria reclama ao balconista: “não quero mais ver mais essas Olimpíadas, Brasil só perde”. O balconista responde: “é verdade, e o Corinthians vai mal, hein, só empatou ontem com o Atlético de Goiás”. Não tem jeito, para brasileiro, papo sobre esporte sempre termina em futebol. Mesmo nas Olimpíadas. Cheguei  a ouvir a sugestão de um torcedor mais exaltado o cancelamento dos jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol nestas duas semanas para focarmos nossas atenções em Londres. Argumentos esdrúxulos como esse fazem um pouco de sentido ao perceber que, durante 3 anos, 11 meses e duas semanas, 80% do espaço da mídia esportiva brasileira é latifúndio (muitas vezes improdutivo) do futebol. A hegemonia do futebol encurrala os outros esportes. Brasileiro gosta de esporte mas gosta ainda mais de ganhar. E o futebol geralmente entrega o que promete. No início das Olimpíadas, os brasileiros até encheram-se de ufanismo e otimismo após o primeiro dia brilhante do país com três medalhas, uma de ouro, uma de prata e uma de bronze. Juntou-se a isso a naturalidade que Sarah Menezes encarou sua medalha de ouro, a judoca chegou a dizer que a luta decisiva foi fácil. Tudo não passou de um falso presságio de que a situação do esporte brasileiro finalmente tinha mudado. Faltam dois dias para o encerramento das Olimpíadas e os resultados mostram que há um longo e tortuoso caminho para o Brasil se tornar uma potência olímpica. Infelizmente, ainda não aproveitamos a diversidade de nosso povo miscigenado, que nos proporciona uma multiplicidade de biotipos para as mais variadas práticas esportivas. Na capital inglesa, tivemos boas surpresas, decepções, confirmações e micos. O top mico atende pelo nome de Fabiana Murer. Depois da confusão sobre o sumiço da vara em Pequim, Murer ‘refugou’ como cavalo xucro e simplesmente não pulou no salto decisivo. Culpou o vento. Com furacão ou tsunami, Murer tinha que pular. A estrela do salto com vara, a russa Yelena Isinbayeva, que também decepcionou com seu bronze, disse em entrevista que não entendeu a atitude da atleta brasileira. Segundo a russa, Murer enfrenta algum problema físico ou psicológico grave. Outro mico foi protagonizado por Diego Hypólito, demonstrando falta de controle emocional, fracassou feio na segunda Olimpíada seguida. Desta vez, teve uma queda patética, de lado. Outras decepções ficaram a cargo de César Cielo, derrotado na final dos 50m livre, amargou o bronze, e o do atletismo. Responsável por várias medalhas em outras edições olímpicas, desta vez, os brazucas só alcançaram duas finais (salto em distância masculino e 4×100 feminino) no Estádio Olímpico. Em recuperação de uma contusão, a medalhista de ouro em Pequim,  Maurren Maggi, não conseguiu ficar entre as 12 melhores no salto em distância. O vôlei, tanto de quadra como de praia, e o judô confirmaram o bom desempenho e mais uma vez trazem boa parte de nossas medalhas. Agora, o otimismo para melhores resultados em 2016 justifica-se por alguns ótimos resultados da nova geração de atletas, com destaque para as espetaculares medalhas dos irmãos Falcão e Adriana Araújo no boxe e de Arthur Zanetti nas argolas da ginástica olímpica. Festival de Desculpas e bolsa-atleta Durante as duas semanas de Olimpíadas, o Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), criado por Stanislaw Ponte Preta na década de 60, foi substituído por um Festival Avassalador de Desculpas. Deprimente. Se classificar para uma Olimpíada não é fácil, se o atleta está lá e esforçou-se em busca de seu melhor desempenho, não deve pedir desculpas a ninguém. Como as Olimpíadas concentram dezenas de corridas, jogos e lutas em poucos dias, as derrotas naturalmente são em maior número do que as vitórias, ainda mais para um país com pouca tradição na grande maioria dos esportes olímpicos como o Brasil. Com isso, pulularam na web textos oportunistas cheios de complexo de vira-lata (o mesmo se ouviu na cerimônia de abertura: “imagina no Rio, será um vexame”, o brasileiro é recordista em auto-depreciação). Muito se escreveu sobre o quixotismo dos atletas brasileiros e de que falta tudo e mais um pouco aos heroicos atletas do país. Auto-piedade não resolverá a situação. Com certeza, falta muito apoio e estrutura e qualquer atleta brasileiro que alcança índice e se classifica para as Olimpíadas dedicou sua vida ao esporte. Sem a prática massiva de esportes, seja nos clubes, parques, universidades, o Brasil nunca será forte nas Olimpíadas. Faltam também centros de excelência, locais onde os atletas isolem-se do mundo com um único objetivo: treinar. Há quatro anos dos Jogos Olímpicos do Rio, sem dúvida, a situação do atleta brasileiro melhorou. Falta muito, mas melhorou. Mais de 4 mil atletas recebem o bolsa-atleta, o que custará R$ 60 milhões de reais neste ano. Segundo o site da Caixa Econômica Federal, o bolsa-atleta é destinado aos atletas que não contam com patrocínio e varia entre R$ 370 e R$ 3100 por mês. Dilma Rousseff informou na abertura dos jogos de Londres que o governo investirá neste ano R$ 200 milhões na modernização de centros de treinamento e em tecnologia esportiva, com a finalidade de melhorar a formação e preparação de atletas. Dilma também destacou o investimento de R$ 1 bilhão na construção e cobertura de mais de 2.800 quadras esportivas em escolas públicas em todo o país. De acordo com Dilma, até 2014, serão seis mil quadras construídas e quatro mil cobertas. Se são só promessas, o tempo dirá, mas, infelizmente, já sabemos que parte dessa dinheirama ficará no bolso de meia dúzia de cartolas. Hoje é sexta e o Brasil já bateu pelo menos seu recorde de medalhas que era de Pequim, temos garantidas 16 medalhas. Ia me esquecendo, amanhã de manhã, tem final do futebol masculino em busca de sua inédita medalha de ouro. Mas futebol tem todo dia.

Raduan abandona os 3 mil leitores

Depois de publicar dois livros (“Lavoura Arcaica” e “Um Copo de Cólera”) na segunda metade dos anos 70, com direito a prêmio Jabuti e boas críticas, o escritor Raduan Nassar abandonou o palco e a seleta plateia de três mil leitores e foi cuidar de uma fazenda de 640 hectares na pequena Buri, 250 quilômetros ao sul de São Paulo. A plateia de três milhares é como se refere o também escritor Marçal Aquino ao público que compra os livros de escritores brazucas. Em bela reportagem da revista Piauí deste mês, a história do ‘ex-escritor’ e fazendeiro de 76 anos é contada pelo jornalista Rafael Cariello sem a sua participação, arredio às entrevistas como seus colegas de ofício Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. A matéria conta como Raduan enfurnou-se no campo há cerca de 30 anos sem mais escrever (ele lançou em 1997 uma coletânea de contos, “Menina a caminho”, com textos escritos nos anos 60 e um conto esparso). Raduan ainda doou a fazenda de sua propriedade para a Universidade Federal de São Carlos, vendeu uma parte dela a preços subsidiados aos agricultores locais e presenteou lotes a funcionários e ex-funcionários da fazenda. O isolamento e desprendimento de Raduan surpreende ainda mais no momento em que muitos escritores assumem sua persona pública e cada vez mais ocupam espaço na aldeia midiática. A positiva proliferação de eventos, feiras e oficinas literárias têm transformado alguns escribas em oráculos e produtores de aforismos e frases de efeito. O isolamento da escrita agora é quebrado com uma atitude de ‘colocar a cara para bater’, com o escritor fazendo bico como palestrante, ator ou showman. Como existe demanda de parte do público por charme intelectual fast food,  já não me espantaria de ver escritores ‘de literatura’ em sessões de treinamento corporativo. Sugestões não faltam: Kafka praticando coaching para funcionários públicos, Rubem Fonseca oferece dicas para a Polícia Federal ou Bukowski como consultor na indústria de bebidas. O escritor norte-americano de origem russa, Gary Shteyngart, presente na última edição da Flip, ironiza os vídeos de divulgação literária com a participação de amigos e de seus alunos de oficina de escrita criativa (veja em http://tinyurl.com/cqsqz9a) no lançamento de seu último livro. Segundo ele, muitas pessoas pararam de ler livros, mas todo mundo gosta de ver pequenos vídeos no YouTube. “Percebi que, se quisesse vender algum livro, tinha que fazer isso”. Como a dedicação exclusiva à literatura raramente sustenta alguém no Brasil, o escritor sempre se viu obrigado a batalhar o pão de cada dia em outras searas. As mais comuns são o magistério, o jornalismo e a publicidade. No texto Bloqueios e desbloqueios (http://tinyurl.com/88maz4r), o escritor Michel Laub investiga essa relação. “Um publicitário acostumado a agradar e/ou mentir para vender um produto ou comportamento só poderá ser bom escritor se entender que literatura é o contrário disso. É o velho paradoxo: a ficção mente para dizer a verdade, enquanto o jornalismo, por exemplo, muitas vezes diz uma suposta verdade para no fundo mentir”. Em entrevista à Folha de São Paulo do dia 19 de julho, o escritor português Lobo Antunes, ao ser questionado se o fato de ter sido médico influenciou sua literatura, respondeu: “se tivesse sido engenheiro ou outra coisa teria sido igual”. Retirar do escritor a aura mistificadora do ser ilhado e atormentado em busca da inspiração redentora aproxima-o do público. A literatura sobrevive e sobreviverá sempre. E a boa literatura se eterniza. Claro que a falta de leitores preocupa e as centenas de lançamentos desorienta o leitor comum mas os blogs, a facilidade de publicar e a proliferação de aspirantes a escritor indicam um futuro promissor.

Entrevista exclusiva com Bóson de Higgs

Em rápido intervalo de sua corrida diária no LHC, na fronteira da Suíça com França, o Bóson de Higgs, a partícula mais revolucionária do Universo, concedeu ao ZonaCurva uma curta entrevista exclusiva. Recluso há bilhões de anos, a partícula nos contou sobre seu breve contato com Deus, a vida boêmia e de seu filme preferido, Blade Runner. Confira! Zonacurva – Como o senhor prefere ser chamado, Bóson de Higgs ou partícula de Deus? – Esse Higgs é ególatra como todo cientista, tinha vários com ele quando me descobriram e eu fiquei com seu nome, não aceito isso. Talvez ele ganhe o Nobel por minha causa, já está com 83 anos e me descobrir não é para qualquer um, sem falsa modéstia, Higgs pode levar um milhão de euros, trabalhou muito, ele merece. Me chame de Bóson X. Partícula de Deus é mais ridículo ainda, há alguns bilhões de anos eu O conheci, circulava pelo vazio sempre preocupado com um projeto novo, um tal de Universo, foi um papo rápido e profundo. Zonacurva – Profundo como? – ELE é enigmático. Naquela época, eu frequentava com outros bósons um bar com uns prótons meio revolucionários que falavam de um boato que ia rolar um tal de Big Bang, ficávamos papeando até altas horas sobre a existência ou não de buracos negros, viagens intergalácticas, antimatéria, essas coisas, era uma época muito louca, de novas descobertas. Um dia ELE apareceu por lá e falou para mim e alguns colegas bósons se queríamos participar de seu projeto e explicou o nosso trabalho: imersos na lama cósmica, doaríamos massa para todos. ELE falou sobre a importância do serviço já que deveríamos fornecer a massa proporcional ao que cada um aguentaria carregar por bilhões de anos. Lembro DELE ter dito que escolheu a lama porque é nela em que todos realmente encontram sentido para sua existência, algo assim, não lembro direito, eu estava meio alto, ah!, ELE disse também que do barro ia fazer vocês. Zonacurva – Vocês quem? – Os humanos! Vocês agora inventaram de que soluciono o Modelo Padrão, nunca fui muito de me adaptar, muito menos em Modelo Padrão de cientistas que passam a maior parte de suas vidas dentro de laboratórios e sabem pouco sobre os mistérios reais e infindáveis do Universo. Como o androide de Blade Runner, adoro esse filme, vi coisas que vocês, humanos, nem imaginam. Não é agora que me encaixarei nesses modelinhos científicos. Aliás, essa teoria não dá conta nem de 5% do que rola por aí. Tem muita água para passar embaixo dessa ponte. Fiquei muito orgulhoso de vocês me classificarem como uma partícula importante, realmente organizo quase cem tipos de partículas. Não quero parecer arrogante, falam que sou assim devido ao complexo de inferioridade por causa do meu tamanho, maldade! Zonacurva – Por que você só resolveu aparecer agora, depois de tanto tempo? – Os da nossa espécie nunca gostamos muito de aparecer, preferimos o anonimato. Gastaram 10 bilhões de dólares para acelerar o caos e eu e outros amigos ficamos viciados nessa geringonça. As colisões por aqui são um barato. Zonacurva – Nós, humanos, temos muita curiosidade sobre o início de tudo, existiu o Big Bang? Você surgiu do nada? – Cara, vocês perdem muito fosfato com isso, como vocês gostam de escrever no twitter, essa sim uma invenção bacana, #ficadica, tinha um bóson que sabia sobre a origem de tudo, faz tempo que não o vejo, desculpe, tenho que ir, vai rolar umas colisões iradas daqui a pouco, nos falamos.

Piruetas à la Disney, batatas superfaturadas e Huck no planalto

A contagem era regressiva e a pergunta de minha filha diária: “pai, quantos dias faltam para o Disney on Ice?” Finalmente, chega o dia. Família e quatro crianças rumam ao ginásio do Ibirapuera para assistir pela segunda vez Mickey e sua turma sobre lâminas no gelo. Os 30 reais do estacionamento foram só o começo. Saquinho de batata-frita, R$ 12, churro frio, R$ 6, saco de pipoca (grande e com máscara chinfrim), R$ 24, Minnie de uns 20 centímetros de altura, R$100. Tio Patinhas sorri feliz em sua caixa-forte. Ginásio com metade da capacidade ocupada, apagam-se as luzes e a criançada (pais e mães também) grita de alegria. Esqueço dos preços insanos ao admirar a pequena de boca aberta e olhos arregalados. O show resume-se a um medley de  trechos curtos das histórias que minha filha sabe de cor e salteado (Nemo, Toy Story, princesas, Pinóquio, Os Incríveis e outras), tudo bem coreografado e embalado por alguns efeitos especiais. O mérito de mister Walt Disney, sem dúvida, reside na sua eterna capacidade de estimular o sonho e a fantasia no imaginário infantil, nisso, ele era craque. O que incomoda é a sensação permanente de que para agradar ao maior número possível de crianças, é imprescindível que o espetáculo seja insípido e plastificado. Para mim, o ponto alto do show foram dois curtos bate-papos que ouvi do respeitável público no Ibira. Cena 1: bate-papo entre mãe loira e mãe morena: -Luciano Huck dublou o herói dos Enrolados (versão Disney para Rapunzel), diz a loira. – É, né, ele tá no meu face – responde orgulhosa a morena – um dia, ele será presidente do Brasil . – Ele e Angélica são o casal top do Brasil – arremata a loira com seriedade. Cena 2: segundo bate-papo entre mãe e filha (em meio ao tumulto do consumo de bugigangas depois das piruetas de Mickey e sua trupe). – Mãe, me compra isso? (era um produto qualquer pelos olhos da cara com a chancela Walt Disney). – Ai, filha – o olhar arrogante e a voz elevada quase num grito para que todos ouçam – deixa para comprar lá na Disney, nós vamos semana que vem. Impagável. Classe média roots. O descolado de plantão com ojeriza às ideias médias da classe média (digamos que aí me incluo) pode dizer que tem peças culturais para infantes no SESC ou nos teatros da Bela Vista e Brigadeiro. Por lá, a vibe é a mesma. A diferença básica: falta infra e tem pipoca barata. Assisti Saltimbancos uma vez e o ator vestido de cachorro suava feito um condenado, deve ter se desidratado. Prometo para minha filha que, no ano que vem (será o terceiro ano seguido),  voltaremos, sua empolgação é contagiante. Me conformo, na próxima, só não posso esquecer de levar a pipoca, o suco e o Ruffles de casa.

O fato não existe

Em A Chinesa (1967), filme engajado de Godard, a aluna pergunta ao professor em fictícia universidade revolucionária: “o que é um fato exatamente?”, o mestre responde que “fatos são coisas que existem objetivamente e a verdade é o laço que une tudo”. Matuto e matuto mais um pouco sobre a relação da frase com a mídia e percebo que esse tal laço redentor não existe e nunca existirá. Podemos nos perder em elucubrações filosóficas e morais e chegaremos ao consenso de que a verdade sempre será parcial. Deixemos as verdades peremptórias para a religião e a ciência. No jornalismo, a discussão sobre verdades e mentiras ferve quando a mídia mostra suas vísceras e relações umbilicais com o poder/grana em praça pública como temos presenciado. O ditado mais lugar-comum nunca foi tão providencial: “duvide de tudo o que você lê”, cara-pálida. Qualquer acontecimento, evento ou diálogo será interpretado por testemunhas,  editores, fontes e outros. Pior, o jornalista, além de interpretá-los conforme seu julgamento pessoal ainda deve (ou, pelo menos, tenta)  seguir caminhos ideológicos, interesses e manuais do veículo de comunicação em que trabalha. Na faculdade, aprendi que basta ouvirmos os dois lados de qualquer história para ela se tornar imparcial e “factual”, pura balela, funciona se o jornalista fosse robô que deixa seus gostos, preferências e ideologias em casa ao adentrar qualquer redação. Jean-Luc Godard, o pierrô? O jornalista norte-americano H. L. Mencken, apesar de ter escrito algumas bobagens preconceituosas no início do século passado, fez um diagnóstico certeiro e infelizmente atual das redações: “o máximo que uma faculdade de jornalismo pode conseguir – mesmo supondo que ela injete em seus alunos um civilizado código de ética – é gerar jovens repórteres que fugirão do jornalismo tapando o nariz, assim que se familiarizarem com o que se passa dentre de um típica redação de jornal. Aqueles que perseverarem na profissão devem ser uns rapazes estúpidos que não notam o mau cheiro ou sujeitos sem espinha que se habituaram a respirá-lo, e alguns bem ordinários, que gostam do fedor”. O jornalista ao escolher uma palavra em detrimento de outra, o editor de imagem ao cortar tal imagem, torna tudo subjetivo.  Para uns, Gilmar Mentes, ops!, fala a verdade, para outros, não passa de um mitômano. Se você acreditar nos editoriais semanais de Mino Carta, sua verdade é diametralmente oposta à verdade (suspeito que isso não exista, talvez no hospício) de um Reinaldo Azevedo. A tábua de salvação reside no fato, ops! de novo, de que devemos lutar pelas nossas opiniões e princípios sem torná-los a volúvel afirmação do próprio ego. Se você acredita em determinada verdade, é louvável que grite e esperneie por ela. Somente desse sentimento pujante que nascem belos textos e matérias e, ainda mais longe, poéticas revoluções.

Fantasmas à solta

            Sempre passo por um Uno cinza estacionado próximo à minha casa. No banco traseiro, folhetos com fotos de paradas militares, jornalecos com frases nacionalistas e bandeiras do Brasil. Outro dia, me assustei com um livro no banco traseiro, na capa, uma foto tosca do ex-presidente Geisel e o título: “A verdade sobre Ernesto Geisel”.              Fui comprar pão e defronte à casa, um senhor de uns 70 e alguns anos com esguicho na mão placidamente a molhar suas plantinhas. Blasfemei em pensamento: “torturador, milico desgraçado, deve ter aprontado todas durante a ditadura e agora aí como se nada tivesse acontecido”.             Pensei em denunciá-lo ao Levante Popular da Juventude para que recebesse o devido esculacho, mas odeio injustiças. E se ele for apenas um senhorzinho nacionalista em busca de uma ocupação na aposentadoria.             O Levante encontra a morada de agentes do regime militar e grita aos quatro ventos que naquele endereço habita um criminoso. Foi isso que o Levante fez com o coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi reconhecido pela presidenta Dilma Rousseff como torturador da Operação Bandeirante, no município do Guarujá, litoral de São Paulo. (saiba mais)             O reacionário de plantão pode me acusar de revanchista. Mas não acho certo um torturador comprar morangos de Atibaia na feira aos domingos numa buena. Cuidado, aquele seu vizinho inofensivo de quarta idade pode ser um sádico torturador. Se for, devia puxar, no mínimo, uns meses em cana comendo rango azedo.               O argumento de que os dois lados cometeram crimes e que os movimentos que lutaram contra o regime assaltaram bancos e infringiram a lei mostra apenas uma parcela da verdade. Centenas de”guerrilheiros” passaram o diabo nos porões da ditadura, isso não é pagar?              Se foi uma guerra, para dizer o mínimo, foi desigual. O poder do Estado e seu organizado sistema de repressão contra uma parte da população que revoltou-se contra a censura e a opressão com baixo preparo militar, com exceções.  (Leia texto “Esquerda já foi julgada e condenada, diz jurista” no blog do jornalista Roldão Arruda em http://tinyurl.com/cpylns8).             O recente lançamento do livro “Memórias de uma Guerra Suja”, em que o ex-agente da repressão, Cláudio Guerra, mostra como o regime militar não tinha limites. O ex-delegado, agora evangélico, afirma que uma usina de cana de açúcar, em Campos, no Rio de Janeiro, foi usada para incinerar 11 ex-prisioneiros políticos. (Leia mais sobre o livro em matéria “Auschwitz da ditadura” da revista Istoé em http://tinyurl.com/d48basc).             Mano Brown e seu Racionais Mc’s que acabaram de gravar cilpe de sua música Marighella (ouça em: http://tinyurl.com/7ds8f2d) nos faz relembrar de frase do guerrilheiro mulato: “o homem deve ser livre… O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo, e pode mesmo existir até quando não se é livre. E no entanto ele é em si mesmo a expressão mais elevada do que houver de mais livre em todas as gamas do sentimento humano. É preciso não ter medo” (Carlos Marighella).             Que a instalação da comentada Comissão da Verdade pelo governo nos faça um povo mais em paz com seu passado de terror e morte. Oxalá!