Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

Lúcio, um cadeirante

Desliza por entre as corcovas da rua; desempregado, em desalento, fedendo muito e andrajoso: Lúcio, cuja única condição de quase toda vida é ser cadeirante. Não é possível lhe decifrar pelo rosto a idade, ele não possuí planos de saúde para o futuro próximo, nunca fez exercícios matinais, dietas ou hatha yoga para tornar saudável o corpo. Sem celular e sem relógio. Nunca pôde ter assinada a carteira de trabalho, inexistem em seu nome cartões de débito/crédito para fazer empréstimos ou comprar um liquidificador novinho, multiuso, em três vezes sem juros, nunca foi à praia nem colocou fones nos ouvidos para curtir um som. Não há empresa que o admita. Jamais será workaholic ou funcionário do mês. Não há casa própria e nem um carro seminovo em transpiradas prestações a sua espera, Lúcio já tem rodas, rodas assustadas e velhas, rodas que rilham em calçadas descuidadas. Pouco consome e, por isso, é um ser de cidadania capenga. Lúcio, um pária das vidas passadas e vindouras. Seus problemas renais & seus resquícios de derrame cerebral ou, talvez, paralisia infantil? progridem conforme avançam os nossos instantes, mas nada disso fará Lúcio constituir família, ter ofício remunerado ou pegar a cesta básica todo dia 28. Lúcio, quem o ampara, quem o ancora? Nunca nele haverá beleza que agrade ou dor que descontinue. Lúcio. Lúcio é crente? Sim, não, não sei, talvez, não sabemos. Será que nesses tempos ele já recebeu atenção dos médicos? Será que ele vai periodicamente aos consultórios da nossa cidade? Sei que ele nunca checa a caixa de e-mails, pois não envia e nem recebe e-mails. Ele nunca terá e-mails. Lúcio fede a mijo e bosta misturados a um ranço de leite azedo e indiferença social, disso até quem tem bom coração desgosta, enoja e lhe vira o rosto. Não carece sabermos se Lúcio acredita em partidos políticos, pois ele, assim como tantas outras gentes, vive à parte. Não vota, logo não existe. Não são relevantes para Lúcio os nossos manuais e cartilhas da-direita-contra-a-esquerda ou da-esquerda-contra-a-direita; talvez não cheguem aos ouvidos dele as notícias dos avanços nas pesquisas sobre células tronco; e a ele não afeta em nada a última encíclica papal que, das janelas arejadas do Vaticano, clama por paz lá no Oriente Médio. Lúcio não tem sequer esparadrapos e pomadas para os furúnculos que infestam suas pernas mortas. Arqueia, bambeia e quase-quase que cai na guia rebaixada. Lúcio de mãos indigentes e rosto talhado, cada ruga tem o dobro de sua velhice temporã. Vida, desleixos e tombos, já beijou o meio-fio três vezes na última semana, mas desconhece o que é receber afagos, um único afago que seja. Lúcio crente em deus em cada dez por cento de sua pequena aposentadoria de invalidez mirrada almeja no culto a cura, a unção, o milagre sempre adiado. Mas, em seu alheamento, quer na verdade que a morte se apresse, faça logo seu serviço e o presenteie com o fim. Lúcio compra remédios renais a cada mês sim e dois não: sua rotina está entre a farmácia da esquina, as panelas de macarrão com sardinha e bolachas secas para sobremesa (e é só, é só o que há, quando há, pra café, almoço e janta). Quando Lúcio fala, se há quem ouça, arrasta a língua e nos próprios lábios esbarra, não há quem bem o entenda ou bem o escute. Às vezes é possível decifrar algo como: “tenho fome”, “me ajuda!”, “preciso água” ou “compra remédio pra mim”. Lúcio cai. Não fosse a cadeira retorta e os remédios renais, não haveria quem não dissesse tratar-se apenas de mais um pinguço. Lúcio, debruçado num canto esquecido de tudo, fede muito e agora também sangra. Espantalho urbano aquém das esmolas que não salvam. No torpor do fim de tarde há quem olhe, há quem lamente, mas todos passam. Um catador de recicláveis, que vem vindo inspecionando lixo a lixo à caça de alumínio, diminui os passos, estaciona o carrinho cheio de papelão úmido e, então, vê, ajoelha e ajuda o Lúcio pinchado na sarjeta, adiante está a cadeira apartada. No quartinho alugado da pensão-cortiço há Lúcio de olhos marrons desbotados, baços. Quase não tem mais o patrimônio dos últimos dentes. Muitas vezes o abandona aquela típica fé, a fé dos empobrecidos que sempre esperam. Lúcio fez hemodiálise por seis anos, mas agora já não adianta mais. Ontem hoje amanhã sempre nunca olhamos pelas frestas da rotina. Por essas frestas se enxerga a ambulância do SAMU que vem vindo e estaciona em frente ao portão de ferro fosco. Entram, num cômodo três por dois, os socorristas treinados eles estão no local indicado pela denúncia anônima de abandono e averiguam se naquele quase-feto sobre a cama sem lençóis habita ainda algo da vida. Desse mesmo ontem hoje amanhã sempre nunca eu desvio meus olhares. Nunca ajudei Lúcio. Levanto-me, espaireço-me em mais um cigarro e sei que o mundo segue oprimido, independentemente do que diz esse meu péssimo texto. https://urutaurpg.com.br/siteluis/a-mulher-seta/

Réquiem para Diego

Ontem foi um dia que chorei um bocado. Cada vez que entrava na internet e via algum escrito sobre Diego Maradona, era uma sensação de perda profunda e dolorida. O Maradona era um cara especial. Um tipo que ficou famoso e poderia ter simplesmente vivido sua fama, sua grana, tornando-se um babaca como tantos que conhecemos. Não é fácil sair da pobreza, conquistar o mundo e não se perder. Diego perdeu-se em muitas coisas. Álcool, drogas, mulheres. Sabe-se lá que dores o atormentavam. Sabe-se lá se foi apenas deslumbramento. O pequenino de Lanús aproveitou a vida à larga. Teve seus ataques, mostrou sua sombra, expôs os demônios. E ele poderia ter ficado nisso. Mas, não. Diego decidiu caminhar pelas estradas conflagradas. De repente, lá estava ele com Fidel, o demônio comunista. Declarava seu amor à Cuba e tatuava-se com a cara do Che, seu irmão geográfico. E amou Chávez, e amou o bolivarianismo, e se misturou com as gentes sofridas desse imenso continente. Diego latino-americano, Diego cubano, venezuelano. E ficou feliz com Mujica, com Lula, com os Kirchner, com Evo. Maradona caminhava pelas nossas estradas, sonhava os sonhos da gente, de uma Pátria Grande, de uma Abya Yala soberana. Diego era parça. Diego Maradona já era um saco de pancadas pela forma como vivia. Não precisava achar mais motivos para ser demonizado. Mas não se achicou (apequenou). Mostrou-se na sua inteireza, como um sujeito político, como um homem engajado, e levantou as bandeiras que acreditava serem necessárias para as gentes latino-americanas. Diego foi pura paixão. Pelo futebol, pela Argentina, por Nuestra América. Por isso essa tristeza. Encantou um irmão. Cheio de defeitos, de ambiguidades e contradições, mas absolutamente certo acerca do que deveria amar. Não é sem razão que hoje choram os amantes do futebol, os argentinos, os cubanos, venezuelanos, bolivianos, uruguaios, equatorianos, colombianos, paraguaios, peruanos, brasileiros, salvadorenhos, guatemaltecos, nicaraguenses, enfim, todos os que aprenderam a amá-lo, em campo e fora dele. Diego foi um deus do futebol, e poderia ter ficado ali, naquele pedestal inútil de conversinha mole. Mas não, ele desceu, fez-se irmão, parceiro, amigo. Fumava charuto cubano, usava boné com estrela, sapateava na cara dos que apenas o queriam como um macaquinho amestrado. Diego viveu. Atormentado, sofrido, mas também alegre, pleno, cheio de amor por esse mundo ainda não-visto, ainda não-constituído, mas que caminha em cada um de nós que coloca seu tijolinho na luta pelo mundo novo. esse meio-dia que virá. Que as nossas lágrimas lavem todas as suas trapalhadas e que ele possa entrar no céu dos bons, abençoado pela Compadecida de Suassuna. E que lá de cima, com seus parceiros de vida que também já encantaram, sopre segredos para que possamos enfrentar melhor a caminhada. Gracias, gordo, gracias… por ter escolhido nossa gente em vez de ficar na indiferença. https://urutaurpg.com.br/siteluis/zico-foi-excluido-da-selecao-pela-ditadura/

E depois da pandemia?

Como será o “dia seguinte” dessa pandemia? O que mudará em nossos países e em nossas vidas? Ainda é cedo para previsões. Alguns sinais, porém, já indicam que, ao contrário do que diz a canção, não viveremos como os nossos pais. Por que a China conseguiu deter a epidemia em tempo relativamente curto, se considerarmos que, numa população que ultrapassa 1 bilhão de pessoas, não é fácil exercer tão eficiente controle? E é justamente esta palavra – controle – o indício de que, agora, a ficção de George Orwell, no romance “1984”, chegou à realidade. As nossas frágeis instituições democráticas estão ameaçadas. A China logrou conter o coronavírus porque, por meio de celulares, manteve cada cidadão sob vigilância. Inclusive capaz de mapear onde o usuário do celular, portador da infecção, esteve nas últimas duas semanas. O mundo tende, agora, a se transformar em uma gigantesca casa do Big Brother, na qual todos sabem o que todos fazem, em especial aqueles que detêm o controle dos algoritmos. A exigência de ficar em casa demonstra ser possível manter a sociedade em funcionamento sem obrigar milhares de pessoas a se deslocarem diariamente de casa para o local de trabalho. Isso traria muitas vantagens para o capitalismo: não precisar manter tantos prédios com escritórios e outros espaços laborais, nem funcionários para cuidar de limpeza, refeições, manutenção, energia, mobiliário etc. Muitos serão como empregadas domésticas antes da lei de 2015 que assegura direitos a elas: sem carteira assinada, leis trabalhistas, vínculos sindicais e queixas pelos corredores. Todos dormindo no serviço, sem hora para entrar e sair, obrigados a comprar o próprio alimento, sem direito a descanso no fim de semana e obrigados a fazer do espaço doméstico um local de trabalho, o que certamente afetará as relações familiares. Seremos todos prestadores de serviço, uberizados pela atomização das relações de trabalho. Outra possibilidade de esgarçamento democrático é as autoridades, por mero capricho autoritário, decidirem nos impor, com frequência, o toque de recolher. O “fica em casa” passa a ser rotineiro, e nossa mobilidade controlada pela polícia. E as fronteiras de nossos países podem ser periodicamente fechadas, o que nos faria experimentar o que significa viver na Coreia do Norte. Contudo, há malas que vêm de trem, como se diz em Minas. A pandemia desmoralizou o discurso neoliberal de eficiência do livre mercado. Como em crises anteriores, mais uma vez se recorreu ao papel interventor do Estado. Os países que privatizaram o sistema de saúde, como os EUA, enfrentam mais dificuldade para conter o vírus que os países que dispõem de sistema público de atenção aos enfermos. Talvez isso suscite cautela frente às propostas de privatização, e até mesmo incentive reestatizações. Fator positivo é, em meio à crise, estreitar laços de solidariedade, partilhar bens, cuidar dos vulneráveis, resgatar antigas brincadeiras para entreter as crianças e, sobretudo, descobrir que podemos ser felizes curtindo o âmbito familiar e sem muitas atividades fora de casa. A palavra crise deriva do verbo acrisolar, que significa aperfeiçoar. Porque ela nos ensina muitas lições. Se em poucos dias foi possível transformar estádios, como o Pacaembu em São Paulo, e pavilhões, como o Riocentro no Rio, em hospitais dotados de instalações de primeira linha, por que não é possível adotar medidas semelhantes para reduzir o déficit habitacional no Brasil? Há, porém, quem nada aprende com a crise, como aqueles que, na contramão da ética e dos mais universais princípios religiosos, consideram ser mais importante salvar o lucro dos bancos e das empresas que vidas. Padecem de uma miopia que os impede de ver que o coronavírus não faz distinção de classe. Portanto, se equivocam ao supor que a epidemia matará apenas idosos (aliviando as contas da Previdência Social), portadores de outras doenças (diminuindo a fila do SUS), moradores de ruas (higienizando as cidades) e favelados (reduzindo os gastos com a área social). Essa perversa ideologia é, ela sim, um caso grave de saúde política e que exige medidas urgentes de profilaxia. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.   https://urutaurpg.com.br/siteluis/coronavirus-o-virus-e-os-trabalhadores/ O coronavírus e o poder político norte-americano

Andersen para estas horas do Brasil

Certa vez, o Barão de Itararé publicou este pensamento genial: “Houve um tempo em que os animais falavam. Hoje, no Brasil, eles até escrevem” Notem o quanto o Barão era profético. Pois na presidência do Brasil, no começo do ano um asno, ou no começo do asno um ano escreveu: “Você lembra como eram os livros p/ nossos filhos em governos anteriores? Carregados de ideologias, ofendiam as famílias, atentavam contra a inocência das crianças. Isso mudou. Estamos ensinando o correto, aquilo que os pais sempre desejaram para seus filhos” Então é por estas linhas tortas que lembro o imortal Hans Christian Andersen, o escritor máximo de todas as infâncias. O mundo civilizado comemorou no último 2 de abril o nascimento do escritor Andersen. Ele é um caso raro do escritor que ao escrever para crianças com mais gosto é lido por adultos. Olhem, por exemplo, o maravilhoso conto A pequena vendedora de fósforos. Aquela trajetória da pequena menina que sai a vender fósforos em uma véspera de Ano Bom nas ruas geladas de uma cidade, que vislumbra pelo vidro da janela a ceia posta na casa burguesa, e com profunda fome, fica encantada e nos encanta, seria uma coisa que nas mãos de um falso artista daria uma cena piegas. Mas não nas de Andersen. A fome e o lar, doce lar, vemos, nas suas linhas. Ah os perus rosados, pingues, da noite de Ano, ah as tortas fresquinhas, deliciosas, da calma e pacífica e confortável vida burguesa dos lares que se fecham egoístas à dor em volta, toda essa felicidade, esse calor da lareira que vemos pelos olhinhos da menina, nos chegam como uma repulsa, como um cancro, como um fel, dos lares que rejeitamos com todas nossas forças. Então Andersen vai mais longe e nos fere mais dentro do coração. Se o artista é o criador de imagens que são o próprio domínio do divino, Andersen é um destes. Ele faz então a menina virar uma estrela – que coisa sublime!, uma estrela no céu escuro, em que se torna, ao cair morta de fome. Enregelada, a pequena vendedora sobe “em um halo de luz e de alegria, mais alto, e mais alto, e mais longe… longe da Terra, para um lugar, lá em cima, onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo”. Esse é um conto que por várias vezes tentei ler em voz alta em aulas de português para adolescentes pobres, e por mais de uma vez não consegui. A voz não me saía, embargava, quando chegava ao trecho da menininha sem vida que vira estrela. Eu não conseguia vencer o conflito entre chorar e lhes gritar: “Se não mudarmos este mundo, nada mais tem sentido. Vamos ser assaltantes, vamos roubar e matar”. Mas, covarde, para não me mostrar o fraco que sou, e para não ser incurso no Código Penal, apenas lhes dizia: – Mudemos de página. E me virava para o quadro. Mas a menina havia virado uma estrela, eu sabia, e por isso o branco da lousa estava embaciado, ainda que não fosse de vidro como a janela por onde olhava a pequena vendedora de fósforos. Este é o Andersen do qual não conseguimos falar sem paixão. O criador de imagens extraordinárias, delicado até a sutileza, até o perfume da poesia rara. Uma crônica bem escrita sobre ele iria do Soldadinho de Chumbo ao Patinho Feio. Da Pequena Sereia à Roupa Nova do Imperador. Ele é o outro nome com que chamamos um homem de revolta mais que moderna, porque eterna. Um criador de humanidade, porque da humanidade. O filho mais ilustre da Dinamarca, porque um dos irmãos mais ilustres de todos os povos. O homem a quem a sociedade hipócrita deixa na segura estante dos autores infantis. Mas que, à maneira de sorrir, de falar da fantasia, dos animais, dos seres inanimados, dos lugares distantes, nos fere como os melhores autores adultos. Não tanto por ser um autor agressivo. Mas porque nos fere e nos morde pela verdade que conta. Se usássemos do mesmo tom que se usa em discursos de homenagem, diríamos: Hans Christian Andersen, como se fosse insuficiente a tua humanidade de amor pelos rejeitados, de dar voz e afeto a qualquer objeto físico, tu nos deixas a luz da existência da dor no mundo da fantasia. E de passagem, no teu halo de face triste, como se fosse um brilho inocente, a lição de que a criança não é um homem bobo. Ela é um homem em permanente descoberta, um ser que escuta o preconceito, antes de ela própria ser atingida pelo preconceito, tu nos contas, em palavras de narração viva. Não fosses o escritor que és, com muita felicidade serias um educador de meninos de todas as idades, deveríamos dizer. E num acréscimo: enquanto houver pequenas vendedoras de fósforos que viram estrelas no céu escuro; enquanto houver soldadinhos de chumbo que amam dançarinas de papelão; enquanto houver figurinhas de porcelana que se apaixonam e vivem até o dia em que se desfazem em cacos; enquanto houver bonequinhos que ardem abraçados no fogo da lareira, tu és, Andersen, o patinho feio mais bonito, até mesmo nestas horas do Brasil. https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-humor-do-barao-de-itarare-como-antidoto-contra-a-barra-pesada/

Agoricidade

A pós-modernidade, com suas novas tecnologias, contrai o tempo histórico e esgarça os espaços sociais, agora atomizados em tribos e grupos. Ao destronar as grandes narrativas, a globocolonização nos comprime na agoricidade – a plenitude do agora. O antes e o depois já não importam. Desde a queda do Muro de Berlim, o sistema nos colocou viseiras que não nos deixam alternativa senão mirar o presente infindo. Impedem-nos de olhar para trás, como faz o anjo de Walter Benjamin, e contemplar, indignados, a assombrosa quantidade de vítimas da opressão e das tiranias. Estamos condenados ao memoricídio – a morte da memória. Sem ela não há história e, muito menos, historicidade. Nem identidade e, portanto, vínculo atávico a gênero, classe ou nação. As viseiras também nos impedem de olhar para os lados e reconhecer a outricidade, a presença do outro e, assim, estender as mãos e praticar a solidariedade. Tempos nefastos e obscuros! Só nos é facultado mirar o presente, aqui e agora, sem possibilidade de vislumbrar o horizonte de expectativas. As utopias se volatilizaram. O futuro se contemporaneizou na agoricidade, sem portas e janelas abertas à esperança. O tempo histórico retorna à condição de tempo cíclico. Como no relógio: os ponteiros se movem, os segundos, minutos e horas se sucedem, porém permanecem prisioneiros de um círculo hermético. Todas as marcações se repetem. Assim, fechados em nossas bolhas virtuais, somos impregnados pelos sentimentos (pensar? Nem pensar!) de que as guerras são inevitáveis, a desigualdade social é mera entropia do progresso, e a miséria é a amarga recompensa de quem não soube aproveitar as múltiplas oportunidades que a vida oferece. A pluralidade de ideias, o contraditório, a diversidade de opiniões, são falácias que retardam o progresso. Por que se preocupar em ter opinião própria se há quem se ocupa em pensar por mim? Mormente porque esse alguém tem o poder de ordenar o caos, uniformizar as ideias, hegemonizar as opiniões e erradicar toda discordância que semeiam os joios da confusão e do pensamento crítico. Admita: você já não tem livre arbítrio, ainda que julgue que sim, pois a sua liberdade está, agora, submetida a algoritmização. São os algoritmos que, ao captar e sistematizar sua base de dados na internet, fazem suas escolhas, determinam suas preferências, decidem suas opções. Você pode rir quando eles afirmam que a Terra é plana; a humanidade descende diretamente de Adão e Eva; as vacinas são nocivas; e a cultura é o caldo no qual se aquecem os embriões do marxismo, do globalismo e do ambientalismo. Quem se importa com o seu sorriso irônico? A verdade, órfã do tempo, agora é filha do poder. O clamor indignado da ciência diante de tais assertivas é recebido com desdém. O poder tem sempre razão. E o seu único projeto de futuro é perpetuar o presente. Agora é proibido sonhar. Ou melhor, podemos sonhar, desde que abdiquemos do desejo de que o sonho se torne realidade. Se alguém insiste, estará cercado por muitos que já se atolaram no pântano viscoso da agoricidade. E esses sempre insistem que o passado passou, inútil perscrutá-lo, e o futuro é apenas uma quimera, pois “não há nada de novo debaixo do sol”, como diz o texto bíblico, e nem haverá. Urge caminharmos da virtualidade à realidade. Estender o fio que une essas duas pontas, de modo que não sejamos imobilizados dentro das bolhas virtuais que nos confinam no reino da distopia. Sem consciência histórica nossa identidade se iguala à da mônada, e sem nos assumir como gênero, classe e nação, nossa existência se resume a mero fenômeno biológico, sem a transcendência de uma vida capaz de emergir no processo histórico como fenômeno biográfico. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.   A robotização do cotidiano

O conto infantil segundo Bolsonaro

Neste começo de 2020, o breve tuitou: “Você lembra como eram os livros p/ nossos filhos em governos anteriores? Carregados de ideologias, ofendiam as famílias, atentavam contra a inocência das crianças. Isso mudou. Estamos ensinando o correto, aquilo que os pais sempre desejaram para seus filhos” (Jair M. Bolsonaro) Contam que depois desse tuíte, Jair M. continuou neste primor de interpretação literária: Olhem só o despropósito, o absurdo que era a literatura infantil nos governos que chamam de democracia. Tinha um tinhoso, um tal de Hans Christian Andersen, um cara terrivelmente gay. E olhem só esta aberração que ele dava, ele dava, entenderam?, que ele dava o nome de O Soldadinho de Chumbo. O degenerado começava assim: “Numa loja de brinquedos havia uma caixa de papelão com vinte e cinco soldadinhos de chumbo, todos iguaizinhos, pois haviam sido feitos com o mesmo molde”. Vocês já viram, o recado era pra desmoralizar as nossas forças armadas. Assim, como quem não quer dizer nada. O pervertido insinua que nossos soldados são todos iguais como bonequinhos, de um mesmo molde, do Oiapoque ao Chuí. E continua o depravado: “Apenas um deles era perneta: como fora o último a ser fundido, faltou chumbo para completar a outra perna”. O que é isso? Ele queria dizer que faltou bala, que faltou chumbo em nossos quartéis? Os comunistas sempre usaram bem isso. E continua o degenerado: “Mas o soldadinho perneta logo aprendeu a ficar em pé sobre a única perna e não fazia feio ao lado do seu batalhão”. Olhem só, isto é um estímulo à indisciplina militar. Nós jamais poderíamos admitir um soldado de uma perna só. E prestando continência! Imaginem o deboche que era um soldado levantar o braço e cair numa perna. Mas vamos adiante. Depois de umas enroladas, o indivíduo cravava: “Havia uma bonequinha da maior beleza, porém, era uma jovem que estava em pé na porta do castelo. Ela também era de papel, mas vestia uma saia de tule bem franzida e uma blusa bem justa. Seu lindo rostinho era emoldurado por longos cabelos negros, presos por uma tiara enfeitada com uma pequenina pedra azul. A atraente jovem era uma bailarina, por isso mantinha os braços erguidos em arco sobre a cabeça. Com uma das pernas dobrada para trás” Sabem o que é isso? É sexo na infância. Olha, não demora muito e eles põem na cabeça de nossas crianças que o soldadinho vai foder a bailarina! Está claro, só não vê quem não quer: a bailarina tem uma perna levantada, opa!, aí o cara disfarça dizendo que a perna está dobrada para trás. Para trás, vocês ouviram bem? E o que é que tem atrás da bailarina?!, É ou não é a bundinha se oferecendo? Ele nem esconde as intenções maldosas do soldadinho excitado: “O soldadinho a olhou longamente e logo se apaixonou, e pensando que, tal como ele, aquela jovem tão linda tivesse uma perna só. “Mas é claro que ela não vai me querer para marido”, pensou entristecido o soldadinho, suspirando. ‘Tão elegante, tão bonita…’” Acharam pouco? Olhem só. Logo, logo, na hora das crianças dormirem, esse pedófilo do Andersen mostra que a hora é de bagunça. Aí está o verdadeiro bacanal:: “Quando os ponteiros do relógio marcaram meia-noite, todos os brinquedos se animaram e começaram a aprontar mil e uma. Uma enorme bagunça! As bonecas organizaram um baile, enquanto o giz da lousa desenhava bonequinhos nas paredes. Os soldadinhos de chumbo, fechados na caixa, golpeavam a tampa para sair e participar da festa, mas continuavam prisioneiros. Mas o soldadinho de uma perna só e a bailarina não saíram do lugar em que haviam sido colocados” Pois é exatamente aí que começa a safadeza: “O soldadinho não conseguia parar de olhar aquela maravilhosa criatura. Queria ao menos tentar conhecê-la, para ficarem amigos”. Amigos?! Sei, aí tem. Então, enrolada vai, enrolada vem, o maquiavélico volta com uma paixão imoral, anticristã: “E, na porta do castelo, lá estava ela, a bailarina: sobre uma perna só”. Mas está claro, só não vê quem não quer, a bicha do autor deixa por baixo a frase: a bailarina está nua! Sim, nua! Isso é insinuado. Ela está “nua com os braços erguidos acima da cabeça, mais bela do que nunca. O soldadinho olhou para a bailarina, ainda mais apaixonado, ela olhou para ele, mas não trocaram palavra alguma. Ele desejava conversar”. Conversar, sei! Mas agora é que a pornografia infantil fica mais interessante: “De repente como foi, como não foi, o garotinho agarrou o soldadinho de chumbo e atirou-o na lareira, onde o fogo ardia intensamente. O pobre soldadinho viu a luz intensa e sentiu um forte calor. A única perna estava amolecendo e a ponta do fuzil envergava para o lado. As belas cores do uniforme, o vermelho escarlate da túnica e o azul da calça perdiam suas tonalidades”. Sim, bacana, não é? O soldadinho queimando, sei. Ele está mesmo é queimando é de paixão criminosa. E continua a descrição sem qualquer pudor: “O soldadinho lançou um último olhar para a bailarina, que retribuiu com silêncio e tristeza. Ele sentiu então que seu coração de chumbo começava a derreter — não só pelo calor, mas principalmente pelo amor que ardia nele. Naquele momento, a porta escancarou-se com violência, e uma rajada de vento fez voar a bailarina de papel diretamente para a lareira, bem junto ao soldadinho. Bastou uma labareda e ela desapareceu. O soldadinho também se dissolveu completamente” Minha gente, isso é foda na metáfora. O soldadinho e a bailarina queimaram, mas foi no fogo da paixão. De tara. Estão entendendo? É preciso saber o que essas mentes que só pensam em sexo fazem. É assim que eles desencaminham a infância brasileira: “No dia seguinte, a arrumadeira, ao limpar a lareira, encontrou no meio das cinzas um pequenino coração de chumbo: era tudo que restara do soldadinho, fiel até o último instante ao seu grande amor. Da pequena bailarina de papel só restou a minúscula pedra azul da tiara, que antes

Somos todos pós-verdade?

A resposta é sim, se comungamos essa angústia, esse sentimento de frustração frente aos sonhos idílicos da modernidade. Quem diria que a revolução russa terminaria em gulags; a chinesa, em capitalismo de Estado; e tantos partidos de esquerda assumiriam o poder como o violinista que pega o instrumento com a esquerda e toca com a direita? Quem diria que a especulação superaria a produção, e o valor intrínseco de um ser humano se deslocaria para os bens que possui (e seu valor não é reconhecido se não possui bens)? Quem diria que tantas pessoas haveriam de erigir o mercado como um deus ao qual prestam culto, e cuja mão invisível seria capaz de regular o progresso das nações sob a égide da economia? Nenhum sistema filosófico resiste, hoje, à mercantilização da sociedade: a arte virou moda; a moda, improviso; o improviso, esperteza. As transgressões já não são exceções, e sim regras. O avanço da informatização, da robótica, a googletização da cultura, a celularização das relações humanas, a banalização da violência, são fatores que nos mergulham em atitudes e formas de pensar pessimistas e provocadoras, anárquicas e conservadoras. Na pós-verdade, o sistemático cede lugar ao displicente; o articulado ao disforme; a teoria à conjectura. A razão delira e fantasiada de cínica baila ao ritmo dos jogos de linguagem. Como proclamou Nietzsche, já “não há fatos, apenas versões”. Nesse mar revolto, muitos se apegam às “irracionalidades” do passado, à religiosidade sem teologia, à xenofobia servil à Casa Branca, ao consumismo desenfreado, às emoções sem perspectivas. Já não se buscam grandes narrativas, paradigmas históricos, valores universais. Agora sopra o vento da “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie, e muitos se ajoelham aos avatares, convencidos de que a lei da força deve predominar sobre a força da lei. Para a pós-verdade, a história findou, e resta nos adequarmos ao tempo cíclico. O lazer, agora, se reduz a mero hedonismo, e a filosofia, a um conjunto de perguntas sem respostas. O que importa é a novidade, as luzes da ribalta, o invencível Homem de Ferro. Já não importa a distinção entre urgente e prioritário, acidental e essencial, valores e oportunidades, efêmero e duradouro. A estética se faz esteticismo. E o que vale é o adorno, a moldura, e não a profundidade ou o conteúdo. Tendemos a ficar reféns da exteriorização e dos estereótipos. Para a pós-verdade, já não cabe o pensamento crítico, e ela abraça a razão cínica como Diógenes a sua lanterna. Prefere, nesse mundo conflitivo, ser espectadora e não protagonista, observadora e não participante, público e não ator. A pós-verdade duvida de tudo. É cartesianamente ortodoxa. Por isso, não crê em algo ou em alguém. Como a serpente Uroboros, morde a própria cauda. E se refugia no individualismo narcísico. Basta-se a si mesma, indiferente à dimensão social da existência. A pós-verdade tudo desconstrói. Seus postulados são ambíguos, desprovidos de raízes, invertebrados e apáticos. Ao jornalismo, prefere o shownalismo. O discurso pós-verdade é labiríntico, descarta paradigmas, e sua bagagem cultural coloca no mesmo patamar artistas, autores clássicos e arrivistas que alcançaram 15 minutos de fama. A pós-verdade não tem memória, abomina o ritual, o litúrgico, o mistério. Como considera toda paixão inútil, nem ri nem chora. Sua visão de mundo é uma colcha de retalhos eivada de subjetivismo. A ética da pós-verdade detesta princípios universais. É a ética de ocasião e conveniência. Camaleônica, adapta-se a cada situação. A pós-verdade transforma a realidade em ficção e nos remete à caverna de Platão, onde as sombras têm mais importância que o nosso ser, e as nossas imagens predominam sobre a existência real. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. O jornalismo, a mentira e as redes sociais

O presidente invisível

No romance “O homem invisível”, H. G. Wells conta a história de um cientista que se tornou invisível a ponto de roubar e ninguém saber, de ferir, de matar e ninguém descobrir o criminoso, pois que era invisível. Assim começa o livro de H. G. Wells em livre tradução: “O desconhecido chegou em um dia de tempestade, debaixo de um vento cortante, no último vendaval do ano”   E para respeitar a sensibilidade do leitor, é preciso esclarecer logo como se ligam o personagem de Wells e o presidente que se tornou invisível no Brasil. Do lado de fora do livro, o indivíduo no Palácio não aparece para todos brasileiros há pelo menos seis longos meses. Primeiro, porque o vácuo atenta contra a federação brasileira em declarações, ordens e falas: repetidas vezes, o vazio se manifesta contra os nordestinos em geral e contra os seus governadores em particular. Portanto, para os paraíbas do alto do Brasil e de todas as regiões, não existe qualquer ente humano na presidência. Em segundo lugar, a nulidade, além de atentar contra o Brasil ao privatizar o rio da unidade nacional, o São Francisco, não é presidente para a maioria do povo, pois só existe para um terço dos brasileiros. O que vale dizer, ele é um terço, de reza, para exorcizar a aparição. Do lado do livro, olhem o que fala o personagem invisível: “Ele explica que, decidido a conseguir uma descoberta de importância científica, começou a trabalhar em uma experiência para fazer invisíveis pessoas e objetos, empregando dinheiro roubado até do seu pai, se preciso fosse. Mas agora planeja começar um reinado de terror, usando sua invisibilidade para submeter o país”. Veem o invisível no governo brasileiro? Se acham pouco, olhem o que H. G. Wells narra mais adiante: “Ele não tinha nenhum lugar aonde ir, e ninguém em quem confiar. Revelar seu segredo significava delatar-se, converter-se em um espetáculo para todos, uma esquisitice humana”. Percebem o processo de cá, nestas horas em o oculto do Planalto com os filhos e apoiadores passam a desconfiar de traição, de quebra de confiança, em todos que não repitam a sua bárbara cartilha? Mas notem que ser invisível não é o mesmo que não causar imenso mal a toda gente. Acompanhem o que adverte o livro de H. G. Wells: “Ele está louco! Ele não é um ser humano. É puro egoísmo. Ele pensa tão só em seu próprio interesse, em sua salvação. Esta manhã pude escutar a história do seu egoísmo! Feriu muitos homens e começará a matar, a não ser que possamos evita-lo. Ele vai espalhar o pânico. Nada poderá pará-lo se ele escapar”. E de modo mais preciso nestas próximas linhas do livro, quando um líder da resistência clama por luta popular contra o homem invisível: “Temos que começar agora mesmo. Temos que empregar todos os homens que estejam disponíveis. É preciso evitar que ele fuja do cerco. Se ele conseguir, irá por todo o país matando à vontade e fazendo o mal. Ele sonha em estabelecer um Reino de Terror! Ouçam o que lhes digo: será um Reino de Terror. Temos que vigiar os trens, as estradas, os navios…” Veem o invisível presidente que por atos, estímulos aos assassinatos de lideranças políticas, que por declarações e chacotas incentiva a barbárie, que se adianta em medidas claras contra a cultura, a educação, o trabalho e a saúde, cresce para um Reinado de Terror? O que podemos fazer? nos perguntamos. E lá no livro de H. G. Wells um ouvinte ao pedido de resistência sugere: “Peça ajuda ao exército”. Mas neste ponto, voltamos à realidade mais crua do povo brasileiro. Diante desse pedido no livro “O homem invisível”, respondemos do lado de cá, fora das suas páginas: – Pedir ajuda a quem, senhor? Ao Exército?! Impossível, primeiro porque os generais formados na ideologia de extrema-direita apoiam o mais desonroso fantasma em toda história. Contra a esquerda, tudo, até mesmo um invisível presidente. Tudo, ainda que o espectro seja o máximo de ignorância, de falta de educação, decência, ausente da mais rasa humanidade. Impossível ainda, em segundo lugar, porque não interessa uma chamada para um golpe militar a “favor da democracia”. Conhecemos bem esse caminho. Pior, imaginem o problemão: se tiram o fantasma, quem iria para o seu lugar? Uma junta de iluminados oficiais? Mas ainda aqui, nas soluções extremas, precisaríamos antes que se revelasse a todos o nada que porta a faixa presidencial. Não como se apresenta nas páginas finais do livro de H. G. Wells: “E assim, lentamente, começando pelas mãos e pés e subindo pelos membros para os centros vitais do corpo, a estranha metamorfose continuou. Era como a difusão vagarosa de um veneno. Primeiro, foram os pequenos nervos brancos, o esboço pouco nítido de um membro, depois os ossos opacos e as artérias interligadas, a seguir a carne e a pele, primeiro uma vaga névoa tornando-se rapidamente densa e opaca”. Não. Para nós fora do livro, a revelação do invisível será a denúncia contra um indivíduo indecente, que desrespeita o Brasil e o mundo civilizado. Esse tenente mal formado, grosseiro, cujos heróis são assassinos, não ocupa o posto mais alto da República. Enquanto ele vagar no Palácio do Planalto, para a maioria e todas instituições democráticas o cargo de presidente está vago. Lá em Brasília, existe só uma faixa que se move sozinha sobre o corpo de ninguém. Ou sobre o vácuo de um presidente invisível.     http://www.zonacurva.com.br/o-que-machado-de-assis-falou-do-juiz-sergio-moro/ Brasil, uma vertigem  

Glenn Greenwald, o norte-americano brasileiríssimo

Na homenagem ao jornalista Glenn Greenwald e equipe do The Intercept Brasil realizada na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), tive o prazer de conversar com ele e fazer o seguinte comentário, que, aliás, agradeceu imensamente. Falei que  governo norte-americano sempre mandou para o Brasil os maiores canalhas e golpistas que fizeram as maiores sabotagens contra o povo brasileiro nos últimos 70 anos. Afirmei que Greenwald era o único americano que estava trabalhando pelo Brasil e desmascarando as atrocidades da quadrilha dos golpistas através das denúncias das conversas gravadas entre o juiz e o promotor do caso ‘Vaza Jato’. Disse-lhe que umas das primeiras sabotagens foi quando os EUA enviaram o publicitário Ivan Hasslocher que fundou a agência Promotion, em 1959, com o objetivo de iniciar o golpe nas eleições de 1962. Com ajuda de bancos internacionais,  gastou cinco milhões de dólares para eleger, deputados estaduais, federais, senadores e governadores. Era o início para começar a derrubar o presidente João Goulart em 1964. Outro elemento foi o embaixador Lincoln Gordon, um dos articuladores do golpe gastando também cinco milhões de dólares,  com ajuda do coronel Vernon Walters, que depois foi vice-diretor da CIA. Walters foi o intermediário do presidente Ronald Reagan para entregar 50 milhões de dólares ao papa João Paulo II para ajudar na desestabilização do Leste Europeu e na criação do sindicato Solidariedade na Polônia e acabar com o comunismo na União Soviética. Walters e o papa polonês tiveram encontros semestralmente entre 1981 a 88. A CIA mandava relatórios para o Vaticano sobre os padres latinos ligados ao movimento da Teologia da Libertação. Outra figura sinistra apareceu quando o ex-governador de Minas Gerais, o banqueiro Magalhães Pinto, convidou o agente da FBI Dan Mitrione para ensinar torturas aos soldados da PM para combater os movimentos de esquerda no estado mineiro. Nas suas aulas práticas, ele utilizava presos, mendigos e indigentes. Dan Mitrione teve nome de rua em Belo Horizonte, mas depois o nome da rua foi rebatizada em homenagem à memória do estudante  José Carlos da Mata Machado, da Ação Popular, que foi assassinado aos 27 anos no DOI-Codi, em Recife, na ditadura militar, em 1973. Mitrione ensinou torturas nos países latinos aliados da Operação Condor.  Teve a sua maldita alma encomendada pelos guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional  (Tupamaros) do Uruguai, em 10 de agosto de 1970. Até o nosso cinema teve um agente que trabalhou durante 50 anos para destruir as produções de filmes no Brasil, desde a Companhia Vera Cruz, em São Bernardo do Campo-SP. Trata-se de Harry Stone que veio para o Rio de Janeiro como representante da Motion Pictures nos anos 50. O cineasta Glauber Rocha chamava-o de agente da CIA. Na inauguração do MAC  (Museu de Arte Contemporânea) de Niterói, tive o prazer de dizer ao Harry Stone que odiava americanos, os seus filmes, que não frequentava cinemas há vários anos. Mas eu tinha o prazer de assistir somente os filmes que mostravam a derrota dos norte-americanos na Guerra do Vietnã. Ele ficou vermelho como um peru e sumiu. Falei para Glenn Greenwald sobre a retribuição que ele, Edward Snowden e Julian Assange fizeram para a humanidade com as suas denúncias desmascarando as atrocidades cometidas pelos governos dos Estados Unidos em vários países. Parabéns Glenn Greenwald, o norte-americano brasileiríssimo! http://www.zonacurva.com.br/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/

A verdade assassinada

Verdade assassinada – Sempre foi difícil para as pessoas saber onde se esconde a verdade. Durante muito tempo ela aparecia como revelada por deus. Desde um livro, escrito por sacerdotes de uma igreja, deus falava e estava dito. Poucos eram os que questionavam. E assim, os homens do poder, usando deus como escudo, iam definindo a verdade em seu benefício. Depois, com o teatro mambembe, as companhias de atores que circulavam pelos caminhos apresentavam novas versões dos fatos e a verdade assomava, ainda que em pequenas golfadas, nem sempre assimiladas. Mais tarde veio o jornalismo, como um fazer específico de divulgação de notícias que, por origem, deveria estar comprometido com a verdade dos fatos.  Mas, não tem sido assim. O jornalismo é profissão exercida por pessoas que trabalham para grandes companhias e a estas empresas não interessa a verdade. O que vale é que seja veiculada a versão mais lucrativa para os empresários ou a mentira que sustenta o mundo capitalista, no qual para que um viva outro tenha de morrer. Por isso, tanto o jornal, quanto o rádio, a televisão e a internet não são veículos confiáveis. Porque são controlados por empresas comprometidas com o capital e não com as gentes. Pessoas há que praticam o jornalismo, ou seja, esse fazer que tem por princípio desvelar a verdade para que todos possam saber onde estão metidos e o quê, de fato, está acontecendo. Mas, são poucas. O jornalismo independente é difícil de ser praticado, faltam recursos para ir até onde estão os fatos, falta gente comprometida, falta estrutura. Ainda assim, ele resiste aqui e ali. São os respiros por onde a verdade consegue caminhar. Mas, nos dias que correm, com o advento das redes sociais, ficou bem mais difícil saber onde anda a verdade. Qualquer pessoa com um celular virou produtor de conteúdo e esse conteúdo não necessariamente expressa a verdade. Pode ser uma mentira deslavada, um engano programado, ou mesmo uma má interpretação sobre os fatos. As chamadas “fake news”, que é a expressão inglesa para notícias falsas, se espalham e provocam toda a sorte de horrores. Vivemos há pouco tempo uma eleição presidencial na qual as notícias falsas, as informações falsas, foram divulgadas à exaustão. Mentiras sobre pessoas, mentiras sobre situações, mentiras sobre fatos. Mentiras e mentiras. Sobre isso a justiça jamais se pronunciou. Pelo contrário, alegou que não poderia se meter na chamada “liberdade de expressão”. Essa semana, a mesma justiça que fez vistas grossas para os horrores das mentiras em tempo de eleição decide censurar uma reportagem que apresenta informações baseadas em documentação oficial. A alegação do ministro do STF é de que a reportagem é uma “fake news”. Como assim? Mentiras são coisas que não tem comprovação. A denúncia feita pela reportagem tem. Documento. Realidade. Logo, a censura é inconstitucional. Uma inconstitucionalidade promovida por quem deveria ser o guardião da Constituição. Mais uma vez, morre a verdade. Semana passada a polícia britânica prendeu Julian Assange, o criador do WikiLeaks, um sítio que se propôs a desvelar as informações que os governantes e os empresários querem ver escondidas. Um sítio de jornalismo, comprometido com a informação veraz. Então, o homem que decidiu destapar a verdade é preso sob a alegação de quê mesmo? De nada. Ele não cometeu crime algum. Ações criminosas como os assassinatos de civis no Iraque, documentos sobre a fabricação de golpes em variados países do mundo, falcatruas empresarias, espionagem industrial e estatal, toda a sorte de crimes e enganos contra a humanidade precisam ser conhecidas pelas gentes. A informação é um direito humano. Mas, não importa isso. Julian está preso e as notícias dizem que ele é um espião, um bandido. Assim como a reportagem da revista Crusoé, divulgada também no sítio O Antagonista foi tirada do ar, censurada por abrir a verdade. A verdade é crime no século XXI. A verdade sempre foi crime. Porque a verdade liberta, abre os olhos, faz pensar. A verdade precisa ser assassinada. Como jornalista tenho vivido momentos de estupor. Praticamente já não se pode confiar em ninguém. As próprias fontes, no campo da esquerda, por vezes mentem tentando ampliar uma suposta verdade que julgam conhecer. Foi o caso da prisão da professora Camila Marques, nesta segunda-feira (15), em Goiás. De repente, a rede social foi invadida por notícias, de gente confiável, dando conta de que a professora teria sido presa por acusação de doutrinação, dentro da histeria persecutória que tomou conta do Brasil nos últimos meses. Imediatamente a notícia espalhou, provocando medo e indignação. Pouco tempo depois, com a soltura da professora, os fatos vieram à tona. A prisão tinha se dado em outro contexto. Foi igualmente arbitrária, igualmente torpe, mas não foi por “doutrinação”. Assim que nós mesmos, que vivemos de divulgar notícias, vamos ficando cada vez mais limitados na confiança das fontes. Se todos mentem, o que fazer? Se formos divulgar só aquilo que presenciamos, ficamos reduzidos há muito pouco. As fontes deveriam ser isso mesmo que significam: fontes. Generosas cascatas de informação veraz. Mas, se as fontes nas quais confiamos mentem, como escrever? Cada vez mais fortaleço em mim uma velha máxima que aprendi e que tenho ensinado. Na dúvida, não divulgue. Não há problema algum em dar a informação depois de todo mundo. Nossa obrigação é dar a melhor informação, a mais completa, a mais próxima da verdade. Eu mesma já fui pega pela lógica da pressa. Mas, a cada dia vou me controlando. A mentira é mato nos tempos que correm, erva daninha que cresce em qualquer terreno, inclusive nos dos nossos amigos. Há que ter calma, paciência histórica e esperar. Uma mentira uma vez dita não se apaga. Não há direito de resposta que dê jeito. E a verdade fica obscurecida. Julian Assange escolheu o caminho da verdade e hoje paga por isso. No mundo das mentiras, ele é o vilão. E é. Para o capital, para as grandes empresas, os governos, Julian é a ameaça mais perigosa. Porque, como já disse, a verdade liberta. É uma

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