Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

A morte e a morte de Alfredo

Alfredinho do Bip Bip – As noites de Pinheiros, tão compridas ultimamente quanto seus quarteirões em subida, demorados de percorrer, têm sido testemunhas da minha saudade do Alfredo. Já vai fazer um mês que morreu o Alfredo, o Alfredinho do Bip Bip, o Alfredo Jacinto Melo, “Melo com éle só, por favor”, como ele avisava. Alfredinho foi o cara que, há uns 25 anos, decidiu ser meu pai. “Meu índio”, ele me cumprimentava sempre assim, enquanto segurava meu rosto com as duas mãos pra me dar dois beijos nas bochechas. O meu amigo beijava todo mundo – homem, mulher, criança, velho, moço, trans, preto, branco, estrangeiro e também guaranis vira-latas que nem eu. Todas as noites, quando chega “a hora de ligar pro Alfredo”, por volta de umas 22h, eu, encostado no balcão do boteco Madadayo, aqui em Pinheiros, sinto uma saudade danada dele. Era nesse horário que eu sacava o celular do bolso e, automaticamente, teclava o número do Bip Bip. Desde que o Alfredinho se foi, no sábado de carnaval, eu penso que, daqui a algum tempo, vai ser difícil fazer alguém acreditar que ele existiu. Porque a existência do meu amigo-pai-irmão-filho sempre foi mesmo difícil de se fazer crer. Como explicar que, até ainda há pouco, existia um sujeito tão diferente de todo mundo? Alfredinho era mesmo o melhor de nós todos. Era mesmo tudo o que já se disse dele – e era também o que eu, logo eu, o “filho índio”, ainda não consegui escrever aqui, travado pelo vazio da saudade desde o sábado de carnaval deste 2019 de tantas notícias tristes enumeradas. Nunca conheci um cara tão justo, tão solidário, tão generoso, tão divertidamente ranzinza, tão sonhador, tão especial, tão crente nos mistérios do Rosário de Nossa Senhora e nos talentos de um finado técnico de futebol chamado Tim e nas belezas do Garrincha e na inocência do Lula e na ressurreição do PT e na vida eterna, amém, quanto ele. Alfredo amava muito a vida e se borrava de medo de morrer. Se houvesse qualquer imprevisto na saúde dele, fazia pra mim e outros amigos o mesmo pedido: “Neném, reze uma ave-maria pro seu paizinho”. Eu rezava. Não consegui rezar antes do último suspiro dele, porque quando cheguei ao apartamento da Rua Souza Lima, em Copacabana, o meu amigo já não respirava mais. No mesmo apartamento de tantas outras visitas felizes, o meu pai-filho-irmão estava estirado, já sem vida, na cadeira de astronauta dele. Estávamos ali alguns dos amigos mais queridos do Alfredinho, enquanto outros tão queridos quanto seguravam as pontas no Bip, onde o samba fervia, como ele gostaria que se desse. O choro incontido de quem ia chegando renovava as lágrimas gerais, reacendia a certeza da interrupção geral do carnaval que consagraria a Mangueira e o samba lindo da Manu e de seus parceiros – e que felicidade teria sentido o Alfredinho com a vitória da Mangueira e com toda a glória merecida do poema-enredo das “Marias, Mahins, Marielles, Malês”, cantado bonitamente pela Sapucaí inteirinha, inteirinha. Com o nosso-vosso-meu Alfredo estendido ali, naquela cadeira de astronauta dele, começaram a brotar cervejas e pacotes de amendoim, e improvisamos o que ele também teria feito – um velório informal, cheio de um sentimento de tristeza alegre, difícil de explicar. Rezamos o pai-nosso e a ave-maria das crenças tão sinceras dele, cantamos o hino do Botafogo das paixões imemoriais dele, esticamos o carpimento e a cerveja e o amendoim, até que chegou o agente funerário, lá pelas onze da noite, pra interromper nosso folguedo alegre-triste. Atendidas as demandas do moço da funerária – o atestado de óbito, a última muda de roupa pra vestir o nosso amigo-pai-irmão-filho -, lá fomos nós carregar o corpo do Alfredinho até o elevador, a caminho do carro fúnebre, estacionado na garagem do prédio. Éramos seis com o Alfredo mal ajeitado no colo, enrolado numa colcha, cinco amigos mais o moço da funerária, num elevador pequeno, que mal comportaria quatro, se muito. O elevador, com os sete a bordo – nós e o corpo do Alfredinho – , parou dois metros abaixo, se muito, e ali ficamos por uma hora e meia, à espera do resgate do Corpo de Bombeiros. Parece esquisito. Mas como foi bom estender o convívio e passar mais uma hora e meia com meu amigo ali. O moço da funerária foi o único assustado. Até ligação de vídeo fez pra família. Só se acalmou quando soube que o morto era famoso. Alfredo foi capaz disso depois de morto, ficar trancado num elevador lotado com alguns dos seus muitos amigos. Também foi capaz de ser, talvez, o único morto velado num botequim em toda a história da humanidade, e em pleno carnaval, embalado por uma orquestra de metais (a do Rancho Flor do Sereno, fundado por ele) e por uma roda de samba, numa cena que um desavisado achou se tratar de uma brincadeira: – O cara no caixão tá se fingindo de morto? Isso é um bloco? A fantasia dele é de defunto? Isso existiu, é verdade, mas vai ser difícil alguém crer daqui a algum tempo. Como o improvável personagem de “A morte e a morte de Quincas Berro D’água”, o fabuloso romance de Jorge Amado, meu amigo foi velado desse jeito. O enterro, no Cemitério de São João Batista, também virou bloco – e o caixão foi pra sepultura todo carimbado de adesivos de “Lula livre”. *  *  *  * Uma semana depois, a missa de sétimo dia do meu pai-irmão-filho, rezada pelo padre Zé Roberto, na Paróquia da Ressurreição, que ele frequentava, no Arpoador, transformou-se em roda de samba. (Na saída da cerimônia, eu e Adalgisa fomos assaltados na Praia de Ipanema por dois ladrões armados com faca. Queria ter contado ao Alfredo que aqueles dois jovens assaltantes, bem fuleiros, coitados, talvez já tivessem participado da ceia de Natal oferecida pelo meu amigo no Bip Bip todo 24 de dezembro: “Não senti raiva deles, Neném, só medo”, eu teria dito). (Pode haver quem não saiba: Alfredinho chamava todos nós de “Neném”, e por nós todos

O bolsominion

De imediato, pensamos nele como um idiota ou imbecil. Mas isso é muito leve. Não se deve criminalizar um idiota, coitado, que chegou a esse estado em caminhos naturais, digo, por infelicidade da natureza. Nem tampouco ele pode ser visto como um imbecil, que se tornou ou se fez assim muito contra a vontade Bolsominion – Jamais alguém gostou de ser tido como um deficiente cognitivo. Quero dizer, o bolsonarista ou bolsominion possui traços de ambos, com a diferença que ele possui orgulho do seu modo degenerado de ser. E com isso se torna um desinibido da própria e com a própria estupidez. Antes de hoje, o bolsonarista estava escondido nas sombras. Ele perambulava nas trevas, oculto então a resmungar entre seus pares: – Feminista é tudo vagabunda. – Negro é burro. Negro é sub-raça. – Mulher boa é a minha mãe. E olhe lá. – Comunista bom é comunista morto. – Terrorista. É tudo terrorista. – Traveco, travestil (!), bicha, veado ou anormal é tudo igual. Tem que ser eliminado. – A família em primeiro lugar. E a família deve ser pai e mãe cristãs da antiga igreja. Aquela que rezava em latim. Ao que o interrompe outro bolsominion: -Latin?! A Igreja antiga latia? -Não, animal, latim é a língua que se falava em Portugal. Antes do português, entendeu? A língua cristã. – Mas Cristo falava latim? – Falava. Não me interrompa. Você tá parecendo comunista. E não pensem que abuso da ficção. Eles são assim e mais um pouco. Tentem explicar a um bolsonarista que o capitão (no sertão nordestino, capitão é penico) que o capitão é racista. O bolsominion não acreditará. Então você pode tentar um recurso infalível: olhe para o pobre ignorante diante de si e aponte que ele, descendente de negro, não podia votar em um fascistão. Fale que se o bolsominion é negro, como pode votar num atraso? Sabem o que acontecerá? O bolsonarista vai espalhar que você é que é racista. Por quê? Porque o chamou de negro. “Eu, negro?!”. Você nem pode responder: “Não, negra é a tua mãe. O teu pai é que é”. O bolsominion partirá para a briga, tão insultado ele se vê. Logo ele ser chamado de negro! O racista comunista bem merece um tiro O bolsonarista pode matar. Se há uma coisa comum à espécie é o perigo que representa para a humanidade. Ele assassina toda diferença. Ele executa qualquer sutileza do pensamento. Ele não só é perigoso por encarnar os preconceitos seculares e fazer disso um programa de Estado. Ele não é só o que vai contra qualquer conquista que é “coisa de esquerda”. De passagem, anoto que se há um sentido que o bolsonarista dá à palavra conquista é “tomar de assalto, subjugar o território inimigo”. Ou então, quando romântico, conquista para ele é levar para a cama uma fraquejada do sexo. Aliás, levar para a cama, não. Bolsonarista não leva ninguém pra cama. Ele come, porque conquista é conquista. Mas eu me referia ao perigo dos bolsonaristas em outra dimensão. Isso quer dizer: eles arremedam um Estado de Direito para derrubar o Direito e a civilização. Exemplos? Sintam um Ministro da Educação que chama um jornalista de agente da KGB em pleno 2019. Olhem um tal ministro da educação que escreve sobre Cervantes e publica as maiores barbaridades, como o “Dom Quixote sedimentou na cultura ibérica o ideal de comportamento cavalheiresco”. E pensem ainda numa senhora de Direitos Humanos que vê o mundo nas cores rosa e azul. Que fala em sermão que na Holanda os pais masturbam bebês. Depois, peguem um individuozinho louco que nas Relações Exteriores vê as mudanças climáticas como obras de marxistas. Ou vejam um capitão que bate continência para a bandeira dos Estados Unidos. (Nordeste do Brasil, mais uma vez, você é vanguarda). E como se fosse pouco, olhem bolsonaros que elogiam e dão emprego a chefes de milícia. Mais que elogiam, abrigam chefes de pistoleiros, como o capitão em Brasília incentiva e abriga milicianos. Como o filho e toda sua boa gente, tutti buona gente. Que são cúmplices do assassinato de Marielle. Por isso, nem tentem falar em cultura ou educação com um bolsonarista. Se não é cultura de laboratório de exames, ele não sabe o que é. Mas sabe e pode puxar uma pistola pela agressão e acinte, como falava um deputado na ditadura. Ou seja: quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que ele agisse em defesa do teatro. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito: – Viva a Democracia! Ao que o deputado respondeu: -Insulto eu não tolero! Bolsonaristas não sabem o que é democracia, arte, ciência ou cultura. Nem por isso são cachorros. Mas mordem. Já é uma tragédia Até quando as mazelas políticas vão se sobrepor às narrativas culturais no Brasil?  

A terra é plana!

Homem de fé que sou, e ainda mais mineiro, sempre desconfiei dessa ciência influenciada pelo marxismo. Se a Terra fosse redonda e girasse em torno do próprio eixo, no mínimo deveríamos sentir tonturas. Esse preconceito contra o geocentrismo de Ptolomeu decorre dos malévolos conceitos paulofreirianos assumidos por Copérnico e Galileu. Eles adotaram o princípio marxista de que o lugar social determina o lugar epistêmico, e ao retirar os pés da Terra para fixá-los no Sol, inventaram a teoria do heliocentrismo. Ora, basta erguer os olhos ao céu e constatar que o Sol gira em torno da Terra, caso contrário não haveria dia e noite. Não há nada de anacronismo quando acuso Copérnico e Galileu de influência marxista. Nosso chanceler, Ernesto Araújo, já demonstrou que as teorias de Marx, tão perniciosas, precedem o próprio Marx, pois, segundo ele, o “marxismo cultural globalista” teve como marco inicial a Revolução Francesa. Outro absurdo pretensamente científico, que espero ser corrigido pela Escola sem Partidos, é a teoria de que nós, seres humanos, descendemos dos símios. Somos descendentes diretos de Adão e Eva! Está na Bíblia! Decorremos da Criação divina, e não desses macacos que se dependuram com o rabo nos galhos, enquanto descascam bananas com as mãos. Sim, sei que Adão e Eva tiveram dois filhos homens, Caim e Abel. O fato de estarmos aqui se explica porque ao menos um deles transou com a mãe. Contudo, na época o incesto ainda não era pecado. No máximo, um mal necessário, como hoje a liberação de armas de fogo para a defesa da vida. O marxismo é como essas partículas de poeira que flutuam no ar e são vistas apenas quando forte incidência de raio solar atravessa à nossa frente. Toda a nossa cultura, em especial a história e a arte, está contaminada pelo marxismo. Afirmar que Moisés libertou os escravos do Egito é pura ideologia. Não havia escravos às margens do Nilo, havia servos. E o grande feito de Moisés não foi libertar escravos, e sim abrir caminho para os hebreus, em terra seca, entre as águas do Mar Vermelho (que, de fato, era ocre, mas a influência comunista…). Não existe Estado laico. Há que se definir, ou é de Deus ou é do diabo. É pura ideologia colocar a ciência acima da fé e afirmar que o Estado é laico em uma nação cristã. Já que o superministério da Economia já sabe como reduzir o desemprego, e os problemas de saúde podem encontrar cura na igreja da esquina, faz bem o governo em liberar, como primeiro grande gesto da nova gestão, a posse de armas! O Estado precisa conter gastos e a segurança pública é onerosa. Melhor que cada cidadão se defenda como puder! E se uma criança acessar a arma do pai?, indagam mães preocupadas. Ora, esclarece o ministro, arma é menos perigosa que liquidificador. No entanto, não se cogita descartar esse eletrodoméstico. O que faltou ao ministro explicar é que, como o nome do aparelho alerta, liquidificador, além de triturar tenras mãozinhas, é uma arma indelével, fica a dor… Ora, chegou a hora de dar um basta nessas ideologias nefastas que confundem a cabeça do povo. O politicamente correto é científica e teologicamente incorreto. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. A era das incertezas

A tradição autoritária brasileira

Tradição autoritária – A geração que viveu depois de encerrada a ditadura civil/militar, a partir de 1984, aparentemente sempre teve a ilusão de que vivia em um país democrático, capaz de caminhar seguro para um tempo de direitos e justiça. Nada mais falso. O Brasil, historicamente, esteve bem mais próximo do autoritarismo do que da liberdade e os tempos ditos “democráticos” também foram eivados de repressão. Os avanços conquistados com muita luta foram poucos e agora estão fragilizados diante de nova avançada do conservadorismo. Primeiro é importante lembrar que foi esse gigante adormecido um dos últimos espaços da América do Sul a se tornar independente da servidão da colônia. Enquanto os países de colonização espanhola iniciaram seu processo em 1808, na Venezuela, com revolução armada, o Brasil só cortou os laços com Portugal em 1822 depois de um arranjo bem safadinho entre Dom João e seu filho Pedro. E, nessa dita quebra de laços, tampouco se fez República, e ela só viria em 1889, fruto de um golpe militar, praticamente feito à surdina, sem muito alvoroço e igualmente arranjado. Ou seja, enquanto o restante do continente já respirava ares republicanos por mais de meio século, o Brasil dormitava sob um “império”. O marechal Deodoro da Fonseca, que acabou à frente da quartelada criadora da República, assumiu a presidência como interino, e só em 1891 foram realizadas eleições que o formalizaram no cargo. Mas não eram eleições gerais, e sim feitas dentro do Congresso Constituinte, portanto indiretas. Deodoro cumpriu dois anos e depois assumiu o seu vice, Floriano Peixoto, de triste memória para os moradores da ilha de Santa Catarina (obrigados que são a carregar o nome de Florianópolis). Esse governo foi tão duro que ficou conhecido como “República da Espada”.  Depois dele vieram outros, de 1894 a até 1930, constituindo a chamada República Velha, que até teve eleição, mas com baixíssima participação popular e votos de cabresto. A Segunda República ou primeira fase da “Era Vargas” iniciada com a revolução de 1930, teve Getúlio Vargas como chefe provisório até 1934, sendo depois respaldado pela Assembleia Constituinte que o levou, por eleição indireta, à presidência, na qual ficou até 1937. Mais um período, longo, com a população fora das decisões. Naquele ano, quando já se preparavam as eleições para presidente, Getúlio dá um golpe, alegando que o Brasil passava por uma grave “ameaça comunista”, e segue no governo até 1945, quando se encerra o que ficou conhecido como a Terceira República. Foi um tempo de profundo autoritarismo, no qual, inclusive, Getúlio entregou Olga Benário, grávida, aos nazistas. A Quarta República vai de 1946 até 1964, passando pela cadeira de presidente nove pessoas, com algumas delas a esquentando muito pouco tempo. Foi nesse período também que aconteceu o suicídio de Vargas, quando estava novamente na presidência. Período turbulento e cheio de intrigas na alta cúpula do poder. De novo, a chamada “ameaça comunista” foi mote para um golpe, comandado pelos militares, mas com amplo apoio da classe dominante civil. O que se seguiu à queda de João Goulart foi a ditadura, tenebroso período de torturas, mortes e desaparecimentos, que se configurou chamar de Quinta República, no qual só militares comandaram o governo. Tempo duro, sem liberdade e sem possibilidade de participação nas decisões da vida nacional. Em meio a um “milagre” responsável por uma grande dívida, vivia-se a paz dos cemitérios que, tantos, hoje, fazem questão de saudar. A chamada democracia só veio dar ar da graça no Brasil em 1984 quando a ditadura se desmilinguiu na transição para a Sexta República, num processo que igualmente não teve a participação popular. Apesar das grandes manifestações nacionais clamando por eleições diretas, o presidente civil foi escolhido de maneira indireta: Tancredo Neves. Mas, não assumiu. Morreu antes da posse, assumindo no seu lugar, o vice, José Sarney. A partir daí foi chegando o neoliberalismo que fincou estaca no coração da nação. Collor, Itamar e FHC. Governos difíceis para os trabalhadores, de muita perda de direitos e muitas batalhas sindicais e populares. A partir de 2003, com Lula e depois Dilma, ambos do Partido dos Trabalhadores, o governo assumiu uma coloração mais social, mas ainda atrelado às políticas neoliberais. Nesse período foram garantidos alguns avanços, mas nada que mudasse as estruturas da nação. A participação popular não foi estimulada e a democracia participativa não vingou.  Então, veio o golpe em 2016 e Temer assumiu, iniciando a curva conservadora outra vez. Vejam que a história política brasileira é uma sucessão de situações complicadas, golpes, autoritarismos, caudilhismo e muito pouco, quase nada, de participação real das gentes. Se formos voltar ainda mais no tempo, a herança escravocrata pode ser uma explicação para essa interminável fieira de conservadorismo e atraso. “O bagulho é lôco”, se poderia dizer, afinal, de toda essa gente que comandou o país desde o início da República  apenas 12 terminaram o mandato. E a população nunca foi chamada a decidir sobre qualquer coisa. Mesmo os chamados conselhos, criados na época neoliberal, nada mais eram do que espaços ritualísticos, nos quais o domínio seguia na mão do Estado. Assim que a assunção de Jair Bolsonaro, representando o que há de mais atrasado na fazendinha Brasil, não é nenhuma surpresa. Essas forças do obscurantismo nunca estiveram por muito tempo escondidas. Dormitavam, mas de olhos abertos. Tampouco é novidade o poder estar tomado por forças religiosas. Sempre foi assim, só que quem andava de braços dados com ele era a igreja católica. Hoje, são as neopentecostais. Tivemos um curto período, o da Teologia da Libertação, em que alguns padres fizeram a diferença junto à população. Mas, essa pastoral foi aplastada pela política do Vaticano, que não queria saber de transformações. Dito isso, o fato de tudo parecer um incrível filme de terror – principalmente para as gerações mais novas, que desconhecem a história – não deveria paralisar as pessoas. Mas, aparentemente muitos ainda estão anestesiados por alguns anos de política “paz e amor”, essa equivocada tática da conciliação de classes levada pelo PT. A história sempre

Jornalismo e mentiras

por Elaine Tavares A mídia brasileira foi pega de surpresa pelo presidente eleito nas últimas eleições quando este não quis saber de entrevistas nem de jornalistas para falar com seu eleitorado logo depois da vitória. Transmitiu suas palavras direto de casa, pelo celular, na sua rede social, sem mediações. Depois, nos dias que se seguiram chutou o pau da barraca de uma série de empresas de comunicação acusando os jornalistas de “fabricantes de mentiras”. Entre seus seguidores não há um que respeite a mídia. Os comentários são os mais estapafúrdios: a rede Globo é comunista, a Folha de São Paulo é do Lula. Ou seja: duas coisas que foram sistematicamente demonizadas durante a campanha eleitoral, comunismo e PT. A coisa beira ao surreal.  Mas, entre nós, jornalistas, quem pode dizer que o presidente eleito esteja errado sobre a imprensa ser uma fábrica de mentiras? A mídia comercial brasileira – tal como a mídia mundial – é efetivamente uma fábrica de enganos. Manufatura mentiras e age visceralmente ligada com o sistema dominante. Usa dos espaços de notícias para constituir um consenso sobre a realidade, sobre o mundo, sobre o que é bem ou mal. Sob a capa da “imparcialidade” que a teoria funcionalista legou ao jornalismo hegemônico, ao longo de décadas tem extraído a mais-valia ideológica das pessoas que se colocam frente à televisão ou do jornal. Ou seja, concretamente, o jornalismo praticado na maioria dos meios é realmente mentiroso. Logo, não é uma invenção do presidente eleito. Ele aproveita uma verdade para poder tornar verdade as mentiras que diz e dirá. O exemplo é tomado de Donald Trump, que fez a mesma coisa nos Estados Unidos. Durante sua campanha presidencial soltou os cachorros na mídia tradicional e fez – com a providencial ajuda das Big Datas, empresas de dados – aparecer essa verdade já sistematicamente denunciada, obviamente pelas entidades de esquerda. Ora, Trump não fez isso porque é louco, como diziam seus opositores. Não. Ele é um ultra milionário que tem acesso a qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. E, hoje, o dinheiro pode comprar dados pessoais, manipulando mentes, tornando os meios de comunicação tradicionais bem obsoletos.  Assim que agora, diante do furacão das mentiras disseminadas pela internet por bilhões de robôs, misturados a pessoas bombardeadas pela guerra psicológica por empresas especializadas nesse fazer, que também espalham “notícias” os jornalistas se levantam em indignação. Mas, figuras como Trump ou o presidente eleito do Brasil estão cagando para os jornalistas. Eles não precisam mais dessa categoria. As notícias agora podem ser fabricadas por um simples robô de inteligência artificial mediana. Então, Trump expulsa jornalistas das coletivas, manda outro calar a boca, humilha. Bolsonaro não permite jornalistas nas suas aparições e promete até destruir jornais os quais acusa de fabricantes de mentiras. O campo da disputa das mentes é outro agora e eles estão ganhando, sem necessitar das mídias convencionais.  Ao refletir sobre isso fiquei a matutar sobre a responsabilidade dos jornalistas nesse massacre em praça pública do jornalismo.  Não é de hoje que se discute a ação dos jornalistas dentro dos meios de comunicação comerciais. No geral, a maioria se curva sem críticas ao que manda o projeto editorial do veículo. E quem define o projeto editorial nunca é o jornalista. É o dono do negócio. E o dono do negócio define quem será notícia e quem não será. Quem será demonizado e quem será mostrado como bonzinho, qual abordagem deve ser dada em tal notícia, qual deve ser dada em outra. Tudo vem determinado de cima. Sobra pouca margem de manobra para o trabalhador/jornalista fugir. Sim, sempre há os rebeldes, os criativos e ladinos que encontram brechas para fazer escapar a verdade. Mas, a esmagadora maioria se rende sem questionar. Em muitos casos assume a verdade do patrão como sua e pode tornar-se até mais real que o rei. Basta uma passadinha na Globo News e já temos uma mostra do que eu digo.  Quero dizer com isso que os jornalistas dos meios hegemônicos estão agora colhendo os frutos dessa capitulação. E eles são amargos. Acostumados que estavam a ser o esteio da classe dominante, agora estão tendo de lidar com um grupo desconhecido de pessoas que consegue ter mais poder de comunicação que todos os seus patrões juntos. Ou seja, ficaram desnecessários para os novos donos do campinho e serão tratados como lixo. A dança das cadeiras do poder dominante está muito louca e será necessário algum tempo para ver onde isso vai dar. As empresas de comunicação podem capitular, se render ao novo grupo de mando. Isso é bem possível. Eles são camaleônicos, mudando conforme os interesses. Se isso acontecer os jornalistas voltarão a servir ao rei, como sempre fizeram. Ou, algumas dessas empresas podem desistir do negócio, passar a outro mais atrativo e lucrativo, sem a necessidade de jornalistas, e todos irão amargar a grade barca. O certo é que a barra vai pesar. Ainda assim, isso não é o fim do jornalismo como já se vê um que outro alardear. O jornalismo seguirá sendo essa função essencial de mostrar o que alguém quer esconder. E também seguirão existindo – como hoje existem – jornalistas de quatro costados, capazes de saltar sobre as pedras do engano e da mediocridade, desvelando a realidade e produzindo conhecimento com seus textos, como ensinou o teórico Adelmo Genro Filho. O jornalismo é um fazer que não morre, nem mesmo nas mais odiosas distopias, porque sempre alguém escapa do torpor e narra a vida em sua imanência, descortinando a verdade. A conjuntura não está boa para nossa categoria. E vai seguir assim por um longo tempo. Então, é um bom momento para refletir sobre esse fazer e sobre a capitulação ao engano que boa parte dos colegas abraçou. Todo tempo é tempo de mudar.  Já para aqueles que sempre remaram contra a maré, é só mais uma tempestade, a qual atravessarão com remadas sistemáticas, as mesmas que os mantiveram navegando incólumes nesse grande mar de mentiras fabricadas ao longo das décadas. 

O capitalismo, a banalização e o Netflix

por Elaine Tavares Foi na televisão que comecei minha vida profissional. Era 1982 e eu era repórter da TV Caxias, em Caxias do Sul. Antes disso não era muito ligada em TV. Mas, depois que fui descobrindo suas entranhas, me apaixonei. Sou fascinada por tudo o que se produz na telinha. Espectadora voraz. Desde as primeiras matérias que produzi já percebi o poder desse veículo. Produtor da ideologia poderosa da classe dominante, por vezes escapa, e pode até produzir conhecimento. É raro, depende muito das pessoas, mas acontece. Eu mesma, ao longo da vida televisiva, muitas vezes consegui fazer passar a luta dos sem-terra, as greves dos trabalhadores, enfim, outra informação. Gotas, mas, enfim… Há que resistir em qualquer lugar. Agora, nessa nossa brutal contemporaneidade capitalista, a televisão ainda é poderosa demais. Apesar do avanço da internet, é desde os estúdios dos grandes conglomerados televisivos que se produzem as coisas que as pessoas veem na rede. Mesmo que o meio seja um computador ou o celular, a ideologia televisa segue seu curso, firme e forte. Um dos exemplos mais contundentes é o Netflix. Por 20 reais as pessoas podem ter acesso às produções televisivas e cinematográficas que o sistema capitalista cria. No geral, são os mesmos conglomerados de sempre que se fundem e se agigantam. E, obnubilados pela ilusão de que estão livremente fazendo suas escolhas, os consumidores só conseguem formar “listas” com o que o sistema oferece. Procure um filme do Wim Wenders no Netflix e vê se acha. Não tem. Não tem no Netflix e tampouco tinha na televisão, a não ser em algum horário da madrugada, em algum canal de pouca audiência. O que tem é o lixo ideológico de sempre, o mesmo que povoava nossas sessões corujas, super tela, tela quente e tudo mais. Só muda o meio, a mensagem segue igual. Eu, como espectadora compulsiva, vejo tudo que há. Por vezes, claro, encontro algumas pérolas, mas tem que saber muito bem o que procurar. O bom está sempre escondido. Quem não sabe, não acha. A informação crítica é sempre necessária, para a interação com qualquer meio. Mas, o que me apavora mesmo são os chamados blockbusters, os filmes e seriados arrasa-quarteirões, sucessos virais. Outro dia, passeando pelas opções da Netflix, querendo curtir uma daqueles comédias idiotas para fugir do doloroso cotidiano, me deparei com uma série que está fazendo bastante sucesso nos EUA. Chama-se Santa Clarita Diet. A história é de uma mulher que, do nada, se transforma num zumbi, uma morta-viva e que necessita comer carne humana para seguir vivendo. Mas, não é como os zumbis que conhecemos, troncha e caindo aos pedaços. Não. Ela é normal. O marido a vê matando sua primeira vítima e, pasmem, não se surpreende. Parece a ele uma coisa quase natural. Logo, ele começa a ajudar a esposa a fazer as vítimas. Mais tarde, a filha também descobre e, pasmem, não se apavora. Também passa a ajudar. A família, que é “gente de bem”, moradora do subúrbio – aquelas casinhas sem cerca bem típicas da famílias de classe média alta – decide então caçar pessoas “do mal”. Ou seja, são bonzinhos e vão limpar o mundo. Então, a partir de seus pressupostos do que seja “gente do mal” eles vão matando. Convertem-se assim em juízes da sociedade. Tudo tratado com muita graça. É uma comédia. Assisti as duas temporadas, horrorizada com a capacidade que esse sistema tem de banalizar a vida mesma. Posso entender porque os Estados Unidos é o país onde mais acontecem esses casos de massacres aparentemente absurdos e inexplicáveis. Não são inexplicáveis. Essa sociedade investe pesadamente na ideologia do justiçamento, no moralismo de cueca, o qual a pessoa se acha no direito de julgar e praticar ela mesma a sentença. Com base em nada, apensa no seu “gosto pessoal”. Ou seja, se o vizinho é chato, mata ele. Se o chefe cobra demais, mata ele. Se a professora exige muito, mata ela. E sabe o que mais? Não acontece nada. A pessoa ainda pode virar herói ou heroína. Aqui no Brasil, estamos consumindo de maneira acrítica todo esse lixo desde há tempos. Estamos aí vivendo 15 anos de Big Brother , a Fazenda e outros programas de realidade que ensinam a eliminar o outro, simplesmente por uma malquerença. E se elimina sem dó, pagando pela ligação. Toda essa ideologia de violência, banalização da vida e justiçamentos com base no gosto pessoal segue firme e forte nos novos meios de comunicação. O modelo de geração de medo “à la Datena” e afins adentrou também as redes sociais e estão a formar pessoas capazes de virar zumbi e não se importar. Aceitam tranquilamente o “fardo” e tratam de aproveitar para vingar suas pequenas e grandes maldades. Metralhar os inimigos, furar o olho do outro, comer o fígado, arrancar as vísceras, esmagar o coração. Junte a isso um fundamentalismo religioso também criado pela religião eletrônica e pronto: estamos bem arranjados. Outro dia um menino de 10 anos atirou numa professora e se matou. Aqui, no Brasil. Isso está bem perto. O brasileiro cordial, que já era um mito, vai se esfumaçando. Estamos sendo doutrinados, dia após dia, a sermos monstros competitivos. E isso vale inclusive para aqueles “bons cristãos” que disseminam imagens de Nossa Senhora, falam de amor, mas que arreganham os dentes em explosões de ódio contra o que não gostam ou não entendem. A parada é dura. Há que mudar isso. E não será com “democratização da mídia”. Só uma mudança radical, de todo o sistema. Sem isso, seguiremos zumbis… Noam Chomsky e o sonho americano por um fio

A luta necessária dos trabalhadores hoje

por Elaine Tavares Tarde de quinta-feira. O posto da Caixa Econômica Federal, um dos bancos públicos brasileiros, está lotado. São quase 100 pessoas sentadas nos bancos azuis, com olhar perdido no vazio, esperando. Antes de entrar, precisam passar pelo constrangimento de esvaziar suas bolsas ou colocá-las num escaninho que, mesmo na agência central, parece coisa do século passado. Leva-se pelos menos uns 10 minutos no trâmite de pegar a chave com um garoto que distribui senhas, abrir o cadeado que fecha uma corrente na porta do armário. Coisa bárbara. Lá dentro o ambiente é tóxico. Rostos ansiosos e tristes. Por ter deestar ali pagando contas, e por passar pela absurda espera. Como sempre, há poucos caixas, fruto do sistemático desmonte das empresas estatais brasileiras. Também os trabalhadores têm o rosto pesado, superexplorados que são. A tensão ali dentro é concreta, quase se pode pegar com a mão. Naquela tarde, no meio das cadeiras, um gurizinho de uns três anos, corria, brincando entre as cadeiras. Então, no meio do corredor, decidiu parar, abriu os bracinhos, apertou os punhos e fez cara de Hulk, rugindo, brabo. Sua manifestação espontânea de raiva por estar ali há tanto tempo, levou todo mundo ao riso. Foi um átimo de descontração. Poderia ter sido o catalisador para que toda aquela gente se levantasse e quebrasse tudo, dando vazão ao ódio por estar sempre sendo espezinhado nesse mundo no qual o capital dita as regras e mantém as pessoas escravizadas. Mas, não. Houve o riso, o balançar de cabeça e os olhos voltaram ao vazio. Há que pagar as contas. Há que esperar. Esse tem sido o comportamento de boa parte dos brasileiros nos últimos tempos. Um resignado cumprir das tarefas cotidianas, enquanto o Brasil vai se esfacelando, com as riquezas sendo entregues e os direitos trabalhistas exterminados. Um processo de destruição tamanho que exigiria uma violenta reação. Mas, ainda não aconteceu. Há resistências pontuais, uma greve por salário aqui, outra ali. Reações particulares, algumas muito fortes, mas sem conexão com o todo. A reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional destruiu 60 anos de luta, pois praticamente todos os direitos conquistados a duras penas foram para o ralo. Ter a carteira assinada e, com isso, uma série de garantias trabalhistas já é coisa do passado. O tempo agora é do trabalhador por hora, por projeto, o famoso “self-made man”, aquele que se faz a si mesmo, o empreendedor individual. O empresário de si mesmo. Parece coisa bonita e o nome em inglês deixa ainda mais atrativo. “Só não se dá bem quem não se esforça”, dizem os patrões, agora livres de encargos e deveres, prontos para acumularem mais e mais. Viva o trabalho intermitente, no qual o trabalhador terá mais tempo para si trabalhando por períodos curtos. Como se o trabalhador pudesse existir sem o trabalho. Não no mundo capitalista. Nesse mundo o trabalhador só tem a força de trabalho para vender e se não a vende, não come, não mora, não tem saúde nem educação. Ainda assim, há quem aplauda a reforma. Brasil: tempo de lutar Os números, ah os números, dizem que o emprego aumentou. Mas não dizem que são precarizados, que são por prazo curto, que são por salários mais baixos. O desemprego estrutural se aprofunda e logo, logo, seus efeitos se farão sentir com mais força. Não bastasse isso a Câmara dos Deputados segue atuando rápida e livremente a favor de seus patrões: os latifundiários, as transnacionais, os bancos. Dia após dia aprovam novas leis que garantem mais lucros aos seus chefes e aumentam o abismo entre pobres e ricos no Brasil. Dane-se a pátria. Está a um passo de ser aprovada a desregulamentação dos agrotóxicos, que envenenarão ainda mais a comida da maioria do povo. Poderão ser vendidos sem fiscalização e, inclusive, marcas que estão proibidas em praticamente todo o mundo. Também aprovaram a privatização da Embraer, empresa brasileira que não apenas fabrica aviões de qualidade como é também responsável pela segurança aérea do país. Ou seja, os dados referentes à segurança do espaço aéreo brasileiro agora pertencerão aos Estados Unidos, através da Boeing, empresa que comprou a Embraer. Há quem ache muito legal ser colônia dos EUA, mas seria bom dar uma espiada na situação do Afeganistão, Iraque, Somália, Porto Rico, Colômbia, para ver quem realmente ganha com o “protetorado estadunidense”. Não são os trabalhadores. Não são mesmo. Na semana passada, os deputados aprovaram também a privatização da distribuição de energia, mais uma fatia da Eletrobras. Com isso, entregam para os estrangeiros ou para a elite nacional esse importante filão que é a energia elétrica. Hoje, com a distribuição sendo pública, mesmo as comunidades mais longínquas tem garantia de luz, pois ela é um direito e o estado provêm. Mas, privatizada a distribuição, estender linhas não será mais direito e sim espaço de consumo. Ou paga, ou não tem. E, da mesma forma, a conta da luz deverá ter uma alta significativa, pois as empresas cobrarão pelos caminhos por onde a energia vai fluir. No âmbito do executivo também se avolumam as decisões contra os trabalhadores, a maioria da população. Enxuga-se tudo o que é público, desmontam-se as empresas estatais, arrocham-se os trabalhadores. No campo da educação a destruição já vem de um bom tempo. A reforma do ensino médio, que levou os secundaristas às ruas, passou, e hoje as coisas já estão acomodadas. As escolas se apequenam, física e culturalmente. E o espectro da perseguição e da delação ronda, destruindo professores críticos e constituindo uma massa facistificada. O professor virou vilão e apanha na cara. A boa educação ficou para os que tem dinheiro para pagar. Aos pobres, as batatas. Na saúde, o terror segue seu curso, cada vez mais forte, com o desmonte sistemático do SUS e com as propostas de sua destruição. Acabou a Farmácia Popular, diminuíram-se os recursos e o povo que arque com o custo dos remédios, para engordar a conta da farmacêuticas, tratando das doenças que são criadas pelos venenos das transnacionais de alimentação.

Violência na TV

por Albenísio Fonseca O “il mondo cane” das metrópoles pode servir ao sensacionalismo barato e perverso que motiva uma audiência. Mas há um limite de tolerância à falta de ética e respeito a princípios consagrados à pessoa e ao exercício da profissão, que recusam como jornalismo a abordagem na forma de interrogatório torturante, utilizado por supostos repórteres, nos programas de tevês sobre a violência, como método de intimidação ao direito de ampla gama de miseráveis – oh! Victor Hugo. Programas que atentam, com a crueldade dos seus fatos, para o bem estar social, e sob a complacência permissiva das autoridades policiais e jurídicas. “Comunicadores”, radialistas (?), a usar do livre direito de expressão da nossa tênue democracia, para replicar a violência seriada; o escabroso, como sedução. A adotar métodos coercitivos, sentenciando, antes de qualquer veredito. As emissoras – concessão pública, diga-se – a dispor em suas grades de programação de tribunais de inquisição da correição pública, a espetacularizar a violência do drama contemporâneo. Cuja antípoda, suposta justificativa, pasmem, é, evidentemente, a moral social e os bons costumes. E eis que se consagram à luz do Dia. “Tem jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar. É um banco de sangue encadernado, já vem pronto e tabelado, é somente folhear, e usar” Dos anos 60 da Tropicália, de Tom Zé, desenvolvemos (!) do ponto de vista mesmo de uma História da Imprensa – oh! Gutemberg – para uma ação de mídia televisiva em escala de alcance massivo extraordinária. Mas, para que? Para atender ao gosto popular mais reles? À sede pela barbárie que inunda o cotidiano? O baixo instinto da plateia a ser saciado pelo dantesco? O estupor tornado em prazer? A desgraça como deleite? Filmes de violência requerem horários de exibição. O real em sua face mais cruel, psiquiátrica, digamos, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente, não? Ser visto é tão humano quanto ver, dirias – oh! Dante – no inferno da vida banalizada. A Justiça titubeia. Restringe-se à ação pontual. Convertido numa espécie de horário nobre do terror, os programas devem, ao menos, sair do meio-dia. Ampla programação cultural no Brasil só é exibida em altas horas, inacessíveis ao grande público, incompatíveis com um compromisso público pela cultura, pelo avanço das “tecnologias” da consciência cidadã. O “fenômeno” desses programas não é apenas baiano. No balanço geral, temos na mira que falta ao País um projeto de Nação, e desde há muito. Adepto da democracia, da qualidade, do bom senso e do respeito ao direito e à dignidade do ser humano, sou totalmente avesso à censura, ao totalitarismo, à violência e à criminalidade – oh! Newton. Defender uma tevê comprometida com reais valores civilizatórios nos faz clamar que os procuradores convençam mesmo aos juízes – sob o espírito das leis – oh! Montesquieu – a passarem o rodo nesse tipo de pretenso entretenimento. A violência da polícia paulista no protesto contra aumento no transporte público

A era das incertezas

por Frei Betto Vivemos na era de incertezas. Há mais perguntas que respostas. Mais dúvidas do que certezas. Navegamos à deriva na terceira margem do rio. Abandonamos a primeira, a modernidade com sólidos paradigmas filosóficos e religiosos, e ainda não sabemos como se configurará a segunda, a pós-modernidade. Estão em crise as grandes instituições pilares da modernidade: o Estado, a Família, a Escola e a Religião. Vigoram modelos e propostas para todos os gostos. Em meio à turbulência, emerge com nitidez o mundo hegemonizado pelo capitalismo neoliberal. A financeirização da economia supera a produtividade. A regulação da sociedade se desloca das mãos do Estado para as do mercado. Se no século passado a Europa fez concessões à socialdemocracia como antídoto à ameaça socialista, agora os direitos sociais retrocedem e novas tecnologias tornam obsoleto o trabalho humano. Como tudo que é sólido desmancha no ar, é preciso criar exceções e dar consistência ao sistema globocolonizado de consumismo e hedonismo. Assim, difunde-se a ideologia da privatização, concomitante ao esgarçamento das instituições. Privatiza-se a política. Já que os políticos fracassaram, entrega-se a administração pública a empresários bem-sucedidos. Já que os partidos se desmoralizaram, cada um que lance mão de seu celular e faça dele sua tribuna de ódio ou aplauso. Para sustentar essa democracia virtual sobre abissal desigualdade social, cria-se a cultura da apartação. UPPs, não para combater o crime organizado, e sim para assegurar que a turba ignara desça dos morros em fúria ensandecida. Se desaba um prédio ocupado por sem tetos, a culpa é das vítimas. O discurso do ódio é legitimado até pelo STF ao confundir graves ofensas à honra alheia com liberdade de expressão. Passamos da era analógica à digital. Mudam também os padrões de relacionamentos. O valor do outro depende de sua posição no mercado. E fora do mercado não há salvação. Nem tudo, entretanto, se ajusta à mercantilização do planeta em detrimento dos direitos humanos. E o maior desajuste reside em nossa relação à natureza. Esgotou-se o tempo. A ânsia de lucro poluiu o ar, o mar e a terra. Ou mudamos os nossos paradigmas socioambientais ou a Terra voltará a viver como ao longo de milênios, sem a nossa incômoda presença. Há que se adotar o desenvolvimento sustentável, no qual estejam incluídos o ecológico, o social e o cultural. No fim da década de 1940, o Japão, arruinado pela guerra, era mais pobre que o Brasil. E quarenta anos depois, quando o nosso país se destacou como a 8ª economia do mundo, o Japão já figurava entre as cinco primeiras. Havia promovido uma revolução educacional, o que jamais fizemos. Nosso modelo de desenvolvimento continua predatório e são tímidas as iniciativas para que, neste país ensolarado, as energias eólica e solar prevaleçam sobre as fósseis, tão poluidoras do meio ambiente. É preciso mudar os paradigmas do que entendemos por progresso e avanço civilizatório. Os países europeus e os EUA comprovam que crescimento do PIB não significa redução da desigualdade social. E como tem acentuado o papa Francisco, desenvolvimento que não tem centralidade no ser humano, e sim do acúmulo do capital privado, é antiético. Quiçá os índios andinos tenham algo a nos ensinar quando sublinham a diferença entre “viver bem” e “bem viver”. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.   O apocalipse informativo A terra é plana! Fundamentalismo econômico  

Karl Marx e a Liberdade de Imprensa

por Urariano Mota O jornal O Globo, entre outros, destacou: “Há 25 anos, a Assembleia Geral da ONU proclamou 3 de maio como Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em uma ação para conscientizar o mundo para a luta a favor do simples direito de informar — sistematicamente violado mundo afora, seja através de violência, intimidação, censura ou desinformação deliberada. Muito mudou desde então, principalmente com o ascensão irrefreável das mídias digitais. Mas fazer jornalismo com liberdade, adverte a entidade, ainda é um desafio um tanto difícil….” Mas que interessante: Jornal Nacional, Jornal das Dez, CBN…. Sobre as dificuldades do jornalismo, da censura e desinformação deliberada, não temos como discordar do parágrafo acima, a partir do que vemos no próprio grupo midiático Globo. O certo é que no Dia Mundial da Imprensa o tom geral das notícias omitiu a defesa da liberdade de opinião, o justo exercício da inteligência e sensibilidade do jornalista. E vem a recordação que na imprensa jornalista não tem opinião. A sua sempre será a do patrão. Um processo de comunismo invertido: o empregado pensa que é o pensamento do dono do seu trabalho. Então é hora de trazer as luzes de Marx sobre a liberdade de imprensa. Em um de seus textos de juventude, na Gazeta Renana, ele escreveu: “A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira condição da sabedoria”. (Destaque meu) O que vale dizer, o povo não pode ser analisado, sequer visto, pelo que se publica nos jornais, rádio e tevê. Ali, a condição não é livre. Na mídia, não lhe reconhecem sequer humanidade, como no recente noticiário da CBN sobre o desabamento do prédio em São Paulo. Ao tranquilizar os cidadãos, vale dizer, os que merecem o nome, a emissora esclareceu: ali, só moravam moradores de rua e drogados. Ah, bom, nem parecem gente. Mas não só nesse caso. Nas notícias de todos os dias, quando um jovem negro é assassinado – aliás, nem é jovem, essa categoria nobre, é marginal, traficante, o que vem a ser o mesmo: negro e morador de favela merece a sua justiça. Em outros casos, quando fazem caras e bocas, vozes e expressões de piedade, de “humanos” enfim (alô, alô, construtores de robôs, olhem os modelos na tevê). Semelhante representação ocorre quando noticiam, por exemplo, uma desempregada que sonha em ter uma máquina de lavar e chora na imagem, ou na notícia da criança imigrante com o corpinho morto na praia. Penso que assim como os ingleses têm, ou tinham, a sua hora do chá, o tea time, podemos dizer que nesses momentos os apresentadores possuem o seu hypocrisy time. Emoção também se vê aqui. E continua o jovem Marx na Gazeta Renana, como se escrevesse para o Brasil de 2018: “Na medida em que a imprensa elogia diariamente as criações da vontade do governo, na medida em que o próprio Deus manifestou-se na seguinte forma sobre a sua criação, no sexto dia: ‘Verdadeiramente, foi muito bom’, na medida em que um dia necessariamente contradiz o outro, a imprensa mente constantemente e deve rejeitar a consciência de que mente, escondendo assim a sua própria vergonha”. (Destaque meu) Ora, como não lembrar esse Marx nas explicações da imprensa nacional sobre o mais medíocre e entreguista governo do Brasil até hoje? Seria cômico, se não fosse essencialmente trágico. Fala o comentarista econômico suavizando uma desastrosa ascensão: “Ele sobe, sobe, mas depois cai”. Ele estava falando do dólar. E a edição que se faz da quantidade massacrante de desempregados com carteira assinada? “É, mas se abrem novas atividades”. O que vale dizer: vendedores em luta fratricida nas ruas, a disputar pontos de venda de churrasquinhos. Enquanto ganham centavos, todos estão trabalhando. Diante dos programas sociais que são cortados e se esvaziam, os âncoras (de quê, meu Deus? Dos náufragos?) falam que o “governo passa um pente fino para retirar os fraudadores de benefícios”. A saber: débeis mentais, deficientes de toda ordem, miseráveis que podem e devem trabalhar porque, afinal, ainda estão vivos. O Karl Marx mais maduro, quarenta anos adiante da Gazeta Renana, na sua crítica à cobertura da imprensa inglesa sobre a Guerra Civil norte-americana, é um escritor, historiador e jornalista ao mesmo tempo: “A Inglaterra, cuja indústria está parcialmente ameaçada de ruína através da estagnação na exploração de algodão dos estados escravagistas, acompanha o desenvolvimento da Guerra Civil nos Estados Unidos com intensidade febril.” Durante meses os semanários e diários principais da imprensa de Londres reiteraram a mesma ladainha sobre a Guerra Civil Americana. Enquanto insultam os estados livres do Norte, eles se defendem ansiosamente contra a suspeita de serem simpatizantes dos estados escravagistas do Sul…. A guerra entre o Norte e o Sul – assim é a primeira escusa da imprensa inglesa –é uma mera guerra tarifária, uma guerra entre um sistema de proteção e um sistema de mercado livre. O senhor de escravos deve usufruir o trabalho escravo em sua totalidade ou ser roubado em uma parte dele pelos protecionistas do Norte? Está e a questão que está em litígio nesta guerra segundo a imprensa londrina”. Em que lugar teríamos um jornalista que flagra a história e lhe dá uma visão de análise que será insuperável 200 anos depois? Nem mesmo o privilegiado e brilhante John Reed conseguiu tamanha altitude ao testemunhar a revolução de 1917. Escreve Marx: “Mas, defende a imprensa londrina, a guerra dos Estados Unidos não é nada mais do que uma guerra pela manutenção da União pela força. Os ianques não podem se decidir a eliminar quinze estrelas de sua bandeira. Eles querem parecer colossais

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