Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

Sobre o Dia do Índio

por Elaine Tavares Discurso em atividade promovida pelo vereador Renato da Farmácia, do PSOL, e que contou com a participação de Cris Tupã e Marcos Karaí, da etnia Guarani: Aceitei falar hoje aqui na seguinte condição. Primeiro, como uma descendente do povo Charrua, da Banda Oriental, que vicejou junto às duas margens do Rio Uruguai, tanto no lado uruguaio quanto brasileiro. E segundo como alguém que tendo sangue charrua e não renegando a minha condição, tem pautado sua vida na missão de falar aos não-índios sobre a importância de se conhecer as culturas originárias, para que não se reproduzam os discursos discriminatórios e racistas, tão comuns àqueles e àquelas que desconhecem a realidade desses povos. Importante ressaltar que a chegada dos espanhóis e portugueses nas costas de Pindorama não foi um encontro de culturas. Foi uma invasão, violenta e genocida. Mas, hoje, passados mais de 500 anos, os povos originários seguem acreditando, como naquele então, que é possível viver em paz. Apenas não abrem mão de seu direito de ter território e vida digna. 1 – A primeira coisa a dizer é que essa gente – que muito chamam erroneamente de índios – é a verdadeira dona dessas terras. Digo erroneamente porque essas etnias tem nome próprio: Guarani, Laklãnõ Xokleng, Kaingang, Xetá, Charrua e assim por diante. Eram e são povos com história e cultura. Eles aqui estavam quando chegaram os invasores, eram mais de cinco milhões, e seus espaços foram sendo roubados na ponta da espada e na bala do canhão. Cada pedaço de terra onde hoje estão nossas cidades, as propriedades rurais, as fábricas, tudo, era originalmente desses povos. 2 – Não há qualquer argumento plausível para justificar o massacre desses povos. O que moveu os nossos antepassados brancos foi a sede incontrolável de ouro e riquezas. Em nome disso eles invadiram, mataram, estupraram, violentaram e destruíram tudo o que viam pela frente, incluindo aí grandes civilizações. Em nome de um deus único, o deus cristão, e argumentando que os originários não tinham alma, eles roubaram a vida e a terra de todos eles. 3  – Todo esse processo de invasão e violência não se deu sem luta. Os povos originários resistiram e batalharam contra os invasores desde os primeiros anos da chegada deles às nossas praias. Caciques como Hatuey, Guaicaipuro, Tupac Catari, Tupac Amaru, Sepé Tiaraju e tantos outros empreenderam lutas gigantescas na defesa de seu mundo. Infelizmente foram vencidos e tiveram suas terras roubadas. 4 – Mas, se foram vencidos, não foram extintos. Eles sobreviveram e estão aí. Com a instituição do estado nação, Brasil, houve a tentativa de incorporar esses povos sobreviventes a uma única identidade: a brasileira. Mas, isso não foi possível. Não por eles, que sempre foram muito tranquilos na possibilidade do encontro. A dificuldade sempre foi do lado do branco, que sabendo de seu crime, sempre teve medo. Então, a saída foi desqualificar e aviltar. Assim, o indígena, mesmo que vivendo na cidade, sempre foi apontado como alguém ruim, perigoso, preguiçoso, inútil. Essa é a ideologia que venceu. E mesmo aqueles que nunca viram um índio na sua vida, que nunca conheceram as culturas originárias, são capazes de reproduzir essa mentira. 5 – O resultado é perverso. O homem branco destruiu o modo de vida do originário e ao mesmo tempo se nega a conviver com ele. Não quer que ele tenha terra, e lhe nega a possibilidade de ser alguém digno de respeito na sociedade branca. É um beco sem saída. 6 – O fato é que contra todas as previsões, os povos originários não acabaram e nem se aculturaram. Eles sobreviveram à extinção e se fortaleceram como povo. De cinco milhões na época da invasão a 180 mil no final dos anos 60 do século passado, eles passaram para 300 mil nos anos 80 e agora já são quase um milhão. Contra todas as previsões de desejos eles sobreviveram e cresceram. Por isso, hoje, eles querem de volta seus territórios. Porque ninguém pode ser uma cultura sem território. É o território que determina o modo de viver. Assim que nas culturas originárias eles precisam de espaço para caçar, pescar, nadar, fazer suas batalhas, plantar, enterrar seus mortos, dançar, educar os filhos, fazer coisas que a comunidade branca não consegue compreender porque não é o seu modo de vida. Os brancos podem viver apertados numa quitinete ou morar numa cidade sem mobilidade. Uma comunidade originária, não. Então, porque se nega a eles seu território? Se sabemos que foi roubado? Se conhecemos a história? Por quê? 7 – Os povos originários não querem tirar a terra dos brancos, não querem sua fazenda, sua casa, seu quintal. Não. Eles sabem que já não é mais possível viver aqui nesse espaço, sem a presença dos brancos. Afinal, são 500 anos de convivência forçada. Mas, eles querem um espaço para viver conforme seus costumes e tradições. Um espaço grande, que lhes permita viver de verdade. Seus espaços tradicionais, com água pura, florestas, terra fértil. Esse espaço existe e pode ser ocupado pelos povos autóctones. 8 – Mas, há uma grande barreira nisso tudo: vivemos no sistema capitalista de produção. E, para o sistema capitalista essa proposta de vida dos originários é inconcebível. No sistema capitalista as pessoas existem para serem trabalhadoras, para vender sua força de trabalho a algum patrão. Isso fará com seja gerado valor, e isso será o lucro do patrão. Ninguém ficaria rico se as pessoas trabalhassem para si ou vivessem coletivamente em comunidade. A riqueza só é possível com a exploração do trabalhador. 9 – Por isso, para os que controlam o sistema, o índio é um inútil e tem de ser destruído. Só que o índio não é um inútil. Ele só não quer ser um trabalhador aos moldes do capital. Ele não quer vender sua força de trabalho. Não quer gerar riqueza para uma pessoa que ele nem conhece. Não. O indígena quer viver na sua terra, na sua comunidade, trabalhando para o bem viver de todos os seus,

Gandhi era racista? Forçava garotas a dormir nuas com ele?

por Leandro Uchoas Há cerca de cinco anos, um texto circulou amplamente na internet. De autoria do indiano Mayukh Sen no site Broadly, e reproduzido no Brasil pelo Vice, o artigo versava sobre o principal líder da independência da Índia, Mahatma Gandhi. Como eu estudo a vida e a mensagem de Gandhi há anos, e vivi naquele país estudando seu pensamento na universidade criada por ele, Gujarat Vidyapith, muitos amigos me procuraram. Alguns, com o intuito de esclarecer se aquelas palavras de Sen eram verdadeiras. Outros, com o ousado propósito de me alertar sobre um assunto que eu estudo muito, muito mais do que eles. E outros ainda com o também equivocado propósito de apenas denunciar Mayukh Sen, que teria difamado essa espécie de santo hindu – “santidade” essa jamais reivindicada nem aceita por Gandhi. O artigo ousava apontar os erros de Gandhi. Cometia um erro, logo de saída, ao rotular o Mahatma. Também pudera – nossa sociedade, seja na Índia ou no Brasil, tem mesmo esse hábito de pescar elementos na personalidade complexa de uma pessoa e utilizar esse elemento como uma síntese dele. Nossa sociedade faz isso com as pessoas comuns e com as grandes personalidades. Rotula-se seres que, em verdade, estão em plena e diária mutação. Grande erro. O título do texto foi “Gandhi era um racista que obrigava meninas a dormir na cama com ele”. Com essas palavras, o autor indiano sintetizou a personalidade de um personagem que, sem usar uma única arma, foi o principal líder – embora jamais o único – da luta da Índia pela independência do império mais vasto territorialmente da História, o britânico. Péssima síntese, não?! Entretanto, eu não queria começar a análise do texto de Sen pelos muitos elementos dele que me causam estranhamento ou repúdio. Queria começar pelos elementos com os quais concordo no texto de Sen. Porque, embora tenha ampla admiração por Gandhi, e me considere gandhista, eu também estou profundamente interessado, assim como o autor do texto, em desconstruir imagens falsas criadas sobre o Mahatma. Gandhi era profundamente humano, e Sen anteviu que seus críticos iriam usar esse argumento, até porque é absolutamente óbvio. Por ser ele um humano como eu, como você e como Sen, ele errou muito. Porém, não conheço um personagem histórico que tenha se modificado tanto, ao longo da vida, quanto o Mahatma Gandhi. Suas ideias mudaram muito ao longo da vida. Se em algum momento ele se vestia como um lorde e exigia ser tratado como advogado, ao fim da vida ele tinha apenas duas peças de roupa, que eram somente pedaços de pano enrolados no corpo. Se na juventude ele, de fato, escreveu textos racistas, terminou a vida defendendo que os negros seriam os grandes defensores de seus ideais não-violentos. Se foi profundamente opressor com sua esposa nos primeiros anos, a alavancou depois à posição de líder da Independência, sua principal “professora” de não-violência, e com posição equivalente a dele em seus ashrams . Se foi profundo defensor do império britânico, a ponto de ir à Primeira Guerra Mundial como enfermeiro para servir a Inglaterra, como suposto “cidadão britânico”, depois se transformou no maior adversário deste mesmo império. Exatamente por isso, nos livros escritos por ele, e publicados na editora da Gujarat Vidyapith, onde estudei, há sempre a reprodução de um pequeno texto nas primeiras páginas. Neste excerto, Gandhi afirma que, caso encontrássemos duas citações dele que fossem contraditórias, ou mesmo opostas, que ficássemos com a última, porque naquela altura de sua “velhice” ele já não tinha mais nenhum receio de mudar de opinião – palavras dele. A trajetória pública de Gandhi durou quase meio século. Se rotular qualquer pessoa é uma armadilha perigosa, torna-se erro primário fazê-lo a uma personalidade assim. Convergências Por que acho interessante o artigo de Sen, apesar de relatar inverdades ou verdades deslocadas de contexto? Acho interessante porque ajuda, em certo sentido, a desconstruir a imagem mítica do Mahatma. Na Índia, e mesmo no ocidente, Gandhi é visto como uma espécie de santo, cujas palavras de sabedoria e exemplo de integridade e de vida simples deveriam servir como norte à humanidade. Acredito que há certa verdade nisso – tanto que estudo sua vida, e tento tomá-la como referência em múltiplos aspectos. Mas há contradições que precisam e devem ser desconstruídas. Até porque ele mesmo, em seu livro “Minha vida e minhas experiências com a verdade”, que é vendido como se fosse sua autobiografia, Gandhi escolhe alguns recortes biográficos para mostrar, em grande medida, suas próprias falhas (algumas delas graves). Ele mesmo, portanto, achava interessante sublinhar seus limites. Gandhi realmente teve momentos machistas? Sim, eles os teve. Profundamente machistas. Porém, fica muito claro como lutou contra essas tendências, mesmo vivendo em países tão arraigadamente machistas (até hoje), como Índia e África do Sul. Por isso, ele produziu avanços claros. Gandhi escreveu textos racistas? Sim, ele o fez, quando jovem. Mas após a profunda metamorfose que sofreu na vida, arrisco dizer que ninguém fez mais pelo combate à opressão étnica do que ele ao longo do século XX. A personalidade de Gandhi foi moldada historicamente a serviço da construção do mito de um líder perfeito? Sim, isso aconteceu. Mitificar Gandhi era interessante para políticos e historiadores. Mas ele jamais foi cúmplice dessa mitificação, esforçando-se cotidianamente para desnudar seus próprios limites. Divergências Mesmo havendo alguma convergência entre o que penso e o que escreveu Sen, é evidente que há muito mais divergência. O texto de Sen é repleto de inverdades, de verdades retiradas de contexto, e de interpretações interessadas de fatos e ideias de um outro momento histórico. Embora não conheça pessoalmente o autor, ouso acusar algumas das ideias que defende de desonestas e mal informadas. Quando chegou na África do Sul para ser advogado, recém-formado na Inglaterra, Gandhi se vestia como um integrante da elite britânica. De fato, encontra-se em seus textos dessa época citações que podem ser interpretadas como algo profundamente racista, de quem considera os negros sul-africanos uma etnia inferior. É preciso, em primeiro lugar, entender

Era uma vez o país que eu sonhava

por Marceu Vieira DOM PEDRO II – No país que eu sonhava, vigorava o sistema monarquista parlamentar. O rei era Dom Pedro II, sujeito bom e digno, carioca de nascimento, homem público maior, um cara justo, monarca que, na vida real, alheia ao meu sonho, havia sido uma das maiores vítimas dos seres abjetos da política no Brasil. Eles, os seres abjetos da política no Brasil, sempre foram muitos. Menos no país dos meus sonhos – e, nele, Pedro II reinava redimido. O primeiro-ministro do país que eu sonhava era Darcy Ribeiro, que acumulava ainda o posto de ministro da Felicidade Coletiva, criado por ele mesmo, com a concordância de Pedro II, pra assegurar a justiça social e o equilíbrio entre os poderes e, sobretudo, entre as classes. Não havia classes no meu país sonhado. Darcy só garantia que assim prosseguíssemos. E prosseguíamos. Darcy, aliás, nesse meu mundo ideal, havia sido escolhido pro Nobel da Paz, mas havia se recusado a receber o prêmio. Com o sorriso de quem se amava muito, mas muito mesmo, tinha dito, ao ser informado da escolha, que não precisava, não cabia, não carecia. “Podem ficar, obrigado, de coração, não precisa, não é desfeita.” No país dos meus sonhos, só se chorava de alegria. Uma certa sensação de euforia, sem a necessidade de drogas pra isso, dominava todo o povo – e assim meu país seguia, seguia e seguia. Leonel Brizola desempenhava, nesse meu país, o papel de ministro das Importâncias, pasta que reunia Educação, Saúde, Reforma Agrária e, pro desconforto de alguns, Comunicações. Seus principais assessores eram Joaquim Nabuco e Guimarães Rosa. Brizola os ouvia, parecia incrível, mas os ouvia. Lula, melhor companheiro do Brizola nesse meu país, era o ministro do Trabalho, da Previdência, da Agricultura, da Segurança Alimentar e da Distribuição Justa das Riquezas. Tudo dava certo nessa minha nação. Havia poucos ministérios no país dos meus sonhos. Eduardo Suplicy era o ministro da Justiça. Suplicy obedecia a um grande conselho presidido por Tiradentes e integrado por homens tão justos quanto Gilberto Freire e Luís Carlos Prestes. Minhas amigas Débora Tomé e Flávia Oliveira ocupavam, respectivamente, os ministérios da Mulher e da Igualdade Racial. Zumbi dos Palmares e Teresa de Benguela, consultados na composição do governo, referendavam seus nomes. Leonardo Boff era o ministro da Ecologia. Grande ministro, assessorado por Dom João VI. Que dupla faziam. Havia ainda um ministério só pra cuidar da causa gay e dos transgêneros, e era ocupado pela cidadã trans Indianara Alves Siqueira, comandante da ONG carioca TransRevolução. Transrevolucionária, a Indianara era a ministra das Garantias Fundamentais dos Gays e de Todxs Transgêneros. Chiquinha Gonzaga era a ministra da Cultura. Seu principal conselheiro era o maestro Villa-Lobos. Sua secretária era a Maria Teresa Madeira, indicada pelo Ernesto Nazareth. Sob o guarda-chuva do ministério da dona Chiquinha, havia uma importante Secretaria, a do Samba, e à frente dela estava o Donga. No Ministério do Esporte estava o Tostão. Seus secretários-executivos eram o Sócrates e o querido José Trajano. O ministro da Fazenda e do Planejamento era o meu pai-filho-irmão-amigo Alfredo Melo, dono do Bip Bip, o boteco de Copacabana. Alfredinho havia inaugurado a gestão do livre arbítrio nas finanças públicas – aquele colega ministro que precisasse de mais verbas tinha liberdade pra pegar, ele mesmo, dinheiro do cofre público, e ninguém ludibriava ninguém, e esse modelo de gerência dos recursos coletivos tinha se consagrado como o ideal nesse meu mundo infenso às maldades humanas. Pro Ministério da Juventude, o primeiro-ministro Darcy, sabido, havia escalado a menina Ana Júlia, estudante do Paraná. A pasta da Transigência, considerada fundamental pelo rei Pedro II, e cuja criação fora acatada por Darcy na montagem do governo, tinha no comando Beatriz Carneiro da Cunha. No Ministério dos Transportes, do Futuro e da Internet estava Juscelino Kubitscheck, que recebera a missão, também a pedido de Pedro II, depois de uma consulta a João Goulart. A Petrobras, no país que eu sonhava, era presidida pelo Getúlio Vargas. Getúlio, na verdade, estava no Ministério das Riquezas Energéticas, e acumulava a presidência da estatal. Era também um dos principais interlocutores de Pedro II e Darcy. Os três consumiam madrugadas e madrugadas e madrugadas, conversando, conversando, conversando, conversando. O chanceler do meu país ideal era o Ítalo Zappa – e o seu Ítalo (que saudade dele) ouvia alguns conselhos do Osvaldo Aranha e do Rui Barbosa. Não todos, vá lá. Alguns. Somente alguns. No país que eu sonhava, não havia ameaça às garantias fundamentais dos trabalhadores. Os velhos eram muito respeitados também. Nenhuma criança estava fora da escola, e havia vagas pra todos os doentes nos hospitais, todos públicos – que, por sinal, estavam sempre vazios, ao contrário das escolas, sempre cheias e também todas públicas e aplaudidas mundo afora por seu ensino considerado de excelência. No país que eu sonhava, não havia Michel Temer nem Rodrigo Maia no poder. Tampouco Renan Calheiros. Não tinha também a versão do Sérgio Cabral que se vê hoje, de cabeça raspada, humilhado, olhos avexados, metido em roupa de presidiário comum. Ele, o Cabral Filho, era só um vascaíno apaixonado, que não envergonhava o pai, o jornalista Sérgio Cabralzão. Eduardo Cunha já era passado antes mesmo de existir nesse meu país imaginado. Nem se falava dele. De quem se trata mesmo? O presidente do Supremo Tribunal Federal era o professor Geraldo Prado. Todas as instituições funcionavam, e éramos todos felizes. Muito felizes. Mas aí eu acordei com o barulho das manifestações deste 15 de março contra tudo que não havia no país dos meus sonhos – e Dom Pedro II e Darcy Ribeiro e Chiquinha Gonzaga e Getúlio Vargas e Leonel Brizola e João Goulart e Donga e Dom João VI e Zumbi dos Palmares e Teresa de Benguela e Tiradentes e Sócrates e Joaquim Nabuco e Guimarães Rosa e Villa-Lobos e Ernesto Nazareth e tantos outros e tantos outros e tantos outros estavam todos mortos, e o legado deles, quase isso. E a Indianara estava sofrendo preconceitos por aí, e

O desabafo de um paulistano

por Otávio de Carvalho Sou um paulistano dos tempos de ir de bike de Moema ao Ibirapuera quase toda tarde. Considero essa cidade minha também, mas não vejo há tempos o cidadão paulistano com a empatia de outrora, a que devia ter pelos meus conterrâneos. Talvez porque uma avó seja do Pará e a outra gaúcha, sempre me vi como brasileiro e ponto. Nunca entendi Pobre Paulista do IRA! ou as vinhetas da Rádio Jovem Pan, as achava estranhamente excludentes, já que Sampa é somente uma esquina para ver os Brasis que nela existem. Se Sampa queria ser Milão no início do Século 20, agora quer ser uma Miami fake, que esconde o próprio centro e as periferias. Nossa elite é mais rica em ódio e preconceito do que em grana. E até a periferia mimetiza esse sentimento. Foi em São Paulo com seu bairrismo provinciano que aprendi a não gostar dos argentinos e cariocas. Foi em São Paulo que aprendi a não gostar dos nordestinos. Em São Paulo me imaginei e me comportei como esse povo besta que se acha superior. Aprendi na GV, na USP, na FAAP e ESPM todo elitismo e ignorância possíveis, mas sempre com as melhores notas 😉 Mas o tempo é rei, consegui mudar. Viajando, vi que o boliviano era mais pobre que qualquer morador de favela de São Paulo e que mesmo assim mantinha suas tradições e cultura. Que o carioca e o nordestino sabem viver e receber bem seus vizinhos. Que o jeito entrão e despachado dos nortistas, gaúchos e mineiros é repleto de verdade e autenticidade. Fui a Cuba e voltei após 20 anos e vi todas mentiras que contam sobre lá. Saquei que o México e o Peru são nosso Egito e Mesopotâmia. Que a Amazônia não é o jardim do quintal, somos nós que vivemos no quintal dessa casa. Vi que nossos índios são os mestres dessa terra ocupada que destruímos sem medo do amanhã. Não sou mesmo Borba Gato. Prefiro o Cristo Redentor mesmo que seus braços abertos não salvem ninguém. Queria para a minha cidade os parques de Buenos Aires, os bares e o espírito do Rio de Janeiro, a inocência e o prazer de viver dos nordestinos, bolivianos e mexicanos. Também vi a sabedoria de ver o tempo passar dos nossos vizinhos uruguaios e o orgulho do passado ancestral dos peruanos do altiplano. Chega né! Mas não me mandem embora, só me vou daqui quando eu mesmo decidir. Moro hoje bem no centro da paulicéia mais que desvairada, na babel democrática do Copan, prédio louco onde Oswald de Andrade teria pirado e se reinventado antropofagicamente após um porre na Roosevelt ou na Dom José Gaspar. Apesar dessa super conexão, é foda essa falta de identidade com os da minha terra e o paradoxo da intimidade com tantas coisas de outros lugares. Pau no Dória, Haddad, Kassab, Serra, Pitta, Maluf, Erundina, Jânio, Covas, Barros, Faria Lima… que merda vocês fizeram!?! A cidade não sabe o que será dela mesma no futuro… sem planos nem perspectivas fora do caos. Hoje eu montaria uma empresa de demolição, para destruir a horrível Praça da Sé e fazer dela um Zócalo inspirado na city dos chilangos. Não sobraria nenhum elefante inacabado, nenhum dos bregas edifícios neoclássicos, nem os arranha-céus descontrolados do Morumbi, Tatuapé, Moema, Santana ou da Lapa. Esses lugares precisam de vilas como as dos anos 20 e a vida voltaria para as ruas. Aprendi o que era mundo nos paralelepípedos da Rua Normandia entre dezenas de famílias de classe média de verdade, aquela sem os meios de produção, mas que ainda achava bom ter vizinhos e que compartilhavam o que abundava em clima de festa comunal. Hoje “a rua” é um quase shopping sem alma, numa Moema lotada de gente, mas onde ninguém é vizinho de ninguém. Sim, eu vou pro mundo, mas também vou pôr o dedo nas feridas dessa cidade e ver se quem sabe ela acorda desse sonho colonizado de Ter e não de Ser. Paulistanos! O que mais vale? Ter a roupa, o carro, a casa, o celular e a viagem certa… Ou Ser alguém legal de verdade ou que faz a diferença? Sobre os rocks preferidos que retratam a cidade, me vem à mente dois versos de canções emblemáticas, num deles dos irmãos Vecchione se diz: “A Paulicéia desvairou, a Paulicéia pirou, pirou”: E noutro o 365 implorava: “Desperta São Paulo”: 45 anos vividos nessa cidade louca, hora de lutar e celebrar com todos psicotrópicos disponíveis? Sim, claro, mas dessa vez pronto para chutar o balde e ver o que vai dar se formos sempre em frente… sem se importar que a vida é uma corrida desenfreada para a morte. Então vamos correr inspirados e viver os sonhos, dar um basta em tudo que não for de verdade ou banhado no amor, que acaba sendo a única arma para lutar até nosso destino de eternidade chegar. O movimento punk nunca há de morrer  

Brizola: “eu tirei o dó da minha viola“

por Marceu Vieira Brizola – O cronista digital, nas suas viagens diante do teclado, foi surpreendido por um novo encontro com a lembrança de Leonel Brizola, desta vez interessado em falar da morte de dona Marisa Letícia, da prisão do ex-bilionário Eike Batista, da nomeação de Moreira Franco como secretário-geral de Temer, da reeleição de Rodrigo Maia à Presidência da Câmara, da escolha de Eunício de Oliveira como presidente do Senado e da indicação de Alexandre de Moraes pro STF na vaga de Teori Zavascki. O ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul garante que, em vida, já havia “adiantado algumas destas notas, só agora escritas na partitura da política brasileira”. Governador, o senhor continua acompanhando o que vai no Brasil? Veja, Marcel. Como já te disse nas nossas últimas conversas, daqui de onde hoje assisto às coisas, já com a mansidão que a vida terrena não me permitia, eu me encontro, francamente, muito preocupado com alguns fatos que têm ocorrido. Que fatos? Primeiramente… Desculpe interromper, governador. Mas o senhor também chama o Temer de “primeiramente”? Creias que o meu primeiramente não é nenhuma referência a este Temer. Este Temer, que o grande establishment, não só o brasileiro, mas o establishment mundial, tu podes crer, este Temer, que o establishment mundial impôs ao nosso Brasil, arrancando a presidenta Dilma do seu mandato democrático. Mas, honestamente, não falo dele aqui. Dele, falarei mais adiante. O que é dele está guardado e eu vou dizer. Mas, primeiramente, eu quero é apresentar minhas condolências ao presidente Lula pelo passamento de dona Marisa Letícia, uma grande mulher que foi vítima deste tempo de ódio. De que ódio exatamente o senhor fala? A rigor, Doalcei, não apenas do ódio disseminado na internet, este instrumento perverso às vezes. Desculpe corrigir. É Marceu, governador. Mar-cêu… Tu me perdoes. Sempre erro teu nome, não é verdade? Desde aqueles tempos em que tu eras repórter jovenzinho do velho “Jornal do Brasil”. Mas veja, Dirceu. O ódio de que eu falo é este disseminado não só nas chamadas redes sociais, mas no dia a dia das conversas e do debate político. Dona Marisa adoentada ali, e as almas venenosas alimentando comentários que nem me atrevo a reproduzir, como se quisessem abreviar o fim terreno da grande mulher do Lula. Isto machuca. Francamente, isto machuca! Eu, pessoalmente, me sinto ferido e sinto em mim a dor do Lula. De certa forma, vivi isso aí com a minha Neusa, que hoje está aqui comigo. Hoje, do plano em que estou, consigo compreender o sentido da palavra amor melhor do que quando aí estava. E recito pra ti o lema positivista do francês Auguste Comte, com quem mantive aqui alguns colóquios… O senhor se tornou positivista? Como é isso? Não é bem isso o que vos digo. Veja. Em vida, este lema não me cativava, mas hoje confesso que me desperta simpatia: “O amor, por princípio; a ordem, por base; o progresso, por fim.” Francamente, acredito que há hoje uma grande crise de amor na Humanidade. Em particular, nas nações que ficaram pela metade do caminho do desenvolvimento, como o Brasil. Honestamente… O senhor… Um instante, tu me perdoes por concluir. Que outra grande carência explicaria tanta perversidade com dona Marisa senão a da falta de amor? Uma mulher simples, livre de luxos, companheira do seu marido e aliada das causas democráticas desde as greves do ABC, citada por esses novilhos do Ministério Público e pelo juiz Moro por causa de titicas comezinhas? Tu me perdoes o termo, Alfeu. O senhor acredita que a morte de dona Marisa pode comprometer a força política do Lula? Francamente, não acredito. Acho que o Lula, lá nos seus aviamentos da costura política, tem linhas e agulhas de sobra pra confeccionar a cortina que vai separar o sofrimento privado da sua luta pública. Eu e o Lula tivemos grandes diferenças, tu sabes. Foram grandes diferenças! Mas nunca deixei de reconhecer nele o líder que é e sempre foi. Lula cometeu ali os seus pecadilhos, tisc…, cedeu a encantamentos que nós, a rigor, não cedemos. Mas jamais, jamais, veja Alceu, jamais o Lula deixou de ser o grande homem público com pensamento voltado para o Brasil. As vantagens que pode ter tido ao lado de dona Marisa por ter chegado à Presidência são calamacos e cangalhas. Ou nem isso! Ouso dizer que nem isso! Lula não participou da dilapidação promovida por seus críticos, que posam aí de “moretes”. Muito menos dona Dilma, que conheço bem. O que são “moretes”, governador? Com todo o respeito ao excelentíssimo juiz Moro, que faz lá o seu trabalho, mas muitas vezes parece inebriado pela fama e levado pelos arroubos da juventude, o que se vê aí é um desfile de “moretes”, uma legião de puxa-sacos que têm a barra das bombachas, eles sim, mais sujas do que bucho de barrasco, porque estão enterrados no lamaçal até os joelhos. Quem são os “moretes”? Veja, Orfeu. É só tu leres os jornais e assistires ao noticiário na TV, e não é só a Globo, que tanto me perseguiu. A imprensa parece dobrada de joelhos diante do golpe estabelecido. Nada é questionado com o rigor que deveria. Nada! A rigor, nada. A imprensa é comandada pelo Estado policial em que o Brasil se transformou. E mais. Basta pesquisar as fotografias recentes em que o juiz Moro aparece ao lado desta gente do PSDB e do PMDB. O PSDB é gado encaronado! Aliás, não é nem gado! Eles se dizem tucanos, mas são pavões! Basta ouvir um elogio que abrem suas plumagens e caminham balançando a cintura todos frajolas pra onde se aponta estar o melhor da festa. Na verdade, o PMDB é o líder da manada que desgraça o Brasil desde o fim da ditadura militar. São os filhotes da ditadura! São o entulho acumulado depois da obra feita! Os tucanos são a ala sofisticada do desfile, nada mais. Mas o senhor não acha que… Permita-me concluir, Nereu. Mas mesmo

Marisa Letícia

por Frei Betto Se havia uma mulher que não pode ser considerada mero adereço do marido era Marisa Letícia Lula da Silva. Conta a fábula que, tendo sido coroado, o rei nomeou para o palácio um lenhador que, na infância, fora seu companheiro de passeios pelo bosque. Surpreso, o pobre homem escusou-se frente à tão inesperada deferência, alegando que mal sabia ler e não possuía nenhuma ciência que justificasse sua presença entre os conselheiros do reino. “Quero-o junto a mim – disse o rei – porque preciso de alguém que me diga a verdade”. Marisa não tinha a vocação política de Lula, mas sua aguçada sensibilidade funcionava como um radar que lhe permitia captar o âmago das pessoas e discernir as variáveis de cada situação. Por isso, era capaz de dizer a Lula verdades que o ajudavam a não se afastar de sua origem popular nem ceder ao mito que se cria em torno dele. A simplicidade talvez era o predicado que ela mais admira nas pessoas. Nascida em São Bernardo do Campo, numa família de pequenos sitiantes, ela guardava a firmeza de caráter de seus antepassados italianos. Comedida nas palavras, a ponto de preferir não dar entrevistas, não fazia rodeios quando se tratava de dizer o que pensava, doa a quem doer. Por isso não podia ser incluída entre as tietes do marido. Nos palanques, preferia ficar atrás e não ao lado de Lula. A admiração recíproca que os unia não impedia que, ao vê-lo retornar de uma maratona de reuniões, às 3 da madrugada, ela o convocasse para criticar o desempenho dele numa entrevista na TV ou compartilhar decisões domésticas. Marisa era com certeza, a única pessoa que, no cara a cara, não ia o risco de se deixar enredar pela lógica política do marido. Defensora intransigente de seu próprio espaço, não chegou a ser o tipo de esposa que compete com o parceiro. Sabe que seus papéis são diferentes e complementares. Mas ninguém era aceito na intimidade dos Silva sem passar pelo crivo dela, que sabia distinguir muito bem quem são os amigos do casal e quem são os amigos de Lula. Tanto quanto Lula, Marisa conheceu as dificuldades da vida. Décima filha de Antônio João Casa e Regina Rocco Casa, cresceu vendo o pai carregar a charrete de verduras e legumes que plantava e vendia no mercado. Se o sítio era pequeno, suficiente para assegurar a precária subsistência da família de onze filhos, o coração dos Casa era grande o bastante para acolher os necessitados. Dona Regineta – como era tratada sua mãe – ficou conhecida como benzedora em São Bernardo do Campo, pois, na falta de médicos e de recursos, muitas pessoas a procuravam, especialmente quem padecia de bronquite. A filha estudou até a 7ª série. Ainda criança, viu-se obrigada a conciliar a escola com o trabalho, empregando-se como babá na casa de um sobrinho de Portinari. Aos 13 anos de idade, tornou-se operária na fábrica de chocolates Dulcora. Do setor de embalagem Marisa foi promovida a coordenadora de seção antes de, aos 20 anos, trocar a Dulcora por um cargo na área de educação da prefeitura de São Bernardo do Campo, onde trabalhou enquanto solteira. Em 1970, ela se casou com Marcos Cláudio dos Santos, motorista de caminhão. Seis meses depois, ele morreu assassinado, quando dirigia o táxi do pai, deixando Marisa grávida do filho Marcos, que Lula considera seu primogênito. Em 1973, ao recorrer ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para obter um pecúlio deixado pelo marido, Marisa conheceu Lula. De fato, foi paquerada dentro de um verdadeiro cerco estratégico montado pelo presidente do sindicato, que ouvira falar de uma “lourinha muito bonita” que andava por ali. Lula tentou convencê-la de que também era viúvo, sem que a moça acreditasse, até ver o documento que ele, de propósito, deixara cair no chão. A primeira mulher de Lula, Maria de Lourdes, morrera em 1971, com o filho que trazia no ventre, em consequência de uma hepatite mal curada. Em maio de 1974, Lula e Marisa se casaram. Da união nasceram os irmãos de Marcos: Fábio, Sandro e Luís Cláudio. O julgamento de Lula e o futuro Nos primeiros anos de casada, Marisa não gostava de política. O progressivo comprometimento de Lula com atividades sindicais alterava a rotina da casa. Obrigada a levantar cedo para despachar as crianças para a escola, ela esperava o marido regressar de reuniões que se prolongavam madrugada adentro. No fogão, a comida pronta para ser requentada, já que Lula prefere não comer em restaurantes. Depois de deitar os filhos, ela acompanhava as telenovelas sem entusiasmo. E, com razão, se queixava da difícil tarefa de atender a mais de cem telefonemas por dia, muitas vezes sem conseguir convencer os interlocutores de que ela não controlava a agenda do marido, não sabia se ele poderia ou não participar de um evento em Porto Alegre ou no Recife e, muito menos, o que ele pensava do último pronunciamento do ministro da Fazenda. Em abril de 1980, ela passou pela prova de fogo, quando Lula esteve preso no DEOPS de São Paulo, devido à greve de 41 dias. Preocupada com a segurança dele, sempre fez questão de abrir a porta quando estranhos batiam, evitando expor o marido. No mesmo ano, fez o curso de Introdução à Política Brasileira, promovido pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, abriu sua casa para as reuniões do núcleo petista que se organizara no bairro Assunção, onde moravam. O engajamento da mulher levou Lula a participar mais diretamente das tarefas domésticas. Mas é ela quem cuida das finanças da casa. Dela dependeu também a logística pessoal de Lula, cujas roupas é ela quem comprava geralmente. Como ele costumava andar de bolsos vazios, sequer trazendo consigo a carteira de identidade, da bolsa de Marisa surgiam o talão de cheques e a caneta com a qual Lula dá autógrafos. Durante as campanhas presidenciais, Marisa sempre levava, nas viagens, uma coleção de camisas

O futuro neste ano que se inicia

por Urariano Mota Houve um tempo em que o futuro era a paz idílica, sentimental, onde todas as feras passeavam ao lado de mansas ovelhas. Esse futuro passou. Houve um tempo em que o amor era a resposta certa para toda baixeza humana. Passou. Houve um tempo ainda em que a simples visão da flor, da orquídea, da cornucópia de pétalas nos jardins, deixava o peito cheio de um sentimento de felicidade, a ponto de suavizar o semblante, de amolecer os músculos, de fazer úmidos os nossos olhos. Esse tempo se foi. Então, que futuro nos resta? Que paraísos são possíveis? Ou para que inferno o vento sopra? Os jovens mais sensíveis e angustiados nos perguntam sempre: o senhor acha que ainda é possível uma ditadura de generais no Brasil? – Não sei, não sabemos, é o que nos vem. Quem sabe é o vento, dá vontade de responder. Mas só o dizer “não sei” para eles é motivo de espanto. Entendemos a razão. Os jovens confundem cabelos brancos com sabedoria. Talvez nem saibam que os idiotas também amadurecem, sem crescimento da experiência. Talvez nem percebam que esse pesadelo do golpe militar nos acompanha todas as noites, como uma amada de sinal invertido. Quem sabe? As possibilidades por vezes se transformam por obra de um absurdo acaso. Dizem os incrédulos: nenhum homem é serpente, o animal que adivinha terremoto com antecedência de 5 dias. Pois lhes respondo, para melhor fortalecimento do diagnóstico de loucura: o homem é mais fino e arguto que as serpentes, até no veneno. Olhem por quê. A depender do que se deseja no mundo, o futuro é bem conhecido. Por exemplo, um político esperto, pragmático, não se pergunta para que lado sopra o futuro. Ele se diz, “gozemos o presente”. Agora, carpe diem, porque o amanhã é hoje. Muito melhor dizendo, o futuro será aquilo que ele consiga arrancar do poder neste momento, em todos os momentos. Ou em linguagem mais vulgar, o futuro é a construção do seu patrimônio, agora. Porém há os mais sensíveis que as melhores serpentes. Estes se perguntam qual a tendência, para que melhor se preparem e venham a subir na crista da onda. O futuro para estes – observem a medida do ofídio – varia no intervalo de breve tempo. Para onde vai o mar, que onda se anuncia ou se forma sob a superfície no horizonte? Que ideias e bandeiras estarão em voga nesse futuro? Eles se perguntam, perscrutam o tempo, e a resposta nem sempre é certa, porque o movimento que se apresenta aos olhos nem sempre mostra o subterrâneo, que virá com força adiante. Então vem esta lição. Lembram-se do cardeal Richelieu, que mandou dobrar os sinos ao fim de uma revolta, sem saber para quais vitoriosos tocava? O vencedor, não importava quem, pensaria que os sinos o saudavam. No entanto nós, sem o talento dos adivinhadores das tendências do poder que virá, desejamos da realidade futura algo diverso e de menor peso. Queremos apenas saber como o nosso destino será inscrito no destino de toda a humanidade nos próximos dias. Se o futuro que se quis se faz no presente, se o futuro imediato se faz ao fim deste presente fugaz, então o mais longe, que bem desejamos, não será feito sem a intervenção da nossa vontade. Vontade ativa, que vai além do perguntar à rosa dos ventos para que lado sopra o futuro. Nós já estamos na humanidade. Iremos para onde ela for. Para nossa desgraça ou felicidade, nem tão rápido, nem tão prematuro. Quem sabe, talvez com um sentimento de alegria a perturbar nosso íntimo, mais uma vez, se encontrarmos o perfume do jasmim em novo dia. O país da Política Alerta à classe média  

Elis, o meu coração e a PEC do Temer

por Marceu Vieira Meu coração é velho. Mais do que eu. Por isso, depois de ler tanta coisa e de assistir a tantos comentários de economistas e analistas sabidos na TV sobre o congelamento dos gastos públicos e a reforma da Previdência, entrei num cinema da Praia de Botafogo, onde a Baía de Guanabara é mais agredida e também mais generosa, pra tentar desopilar o coração. Meu coração é velho, mas o corpo que o carrega ainda precisa trabalhar e trabalhar e trabalhar (e cadê emprego formal bastante pra todo mundo?) e contribuir e contribuir e contribuir pro governo, e ainda assim pagar plano de saúde e escola, e pagar mais plano de saúde e escola, e mais plano de saúde e escola, e ainda assim continuar e continuar e continuar, até o dia em que a vida, talvez nem tão comprida quanto esta frase, determine o fim de tudo. Fui ver “Elis”, de Hugo Prata, que conta uma parte da trajetória da cantora maravilhosa, a mulher tão bonita e tão cheia de imensas aflições no seu corpo miúdo e ao mesmo tempo exuberante e desejado pelos homens da sua época. O filme me tocou profundamente. Menos pela construção, que merece elogios e algumas ressalvas (onde foi parar o encontro dela com Tom Jobim?), e mais, bem mais, pela história comovente contida, sobretudo na primeira metade, quando, na tela, surge a moça frágil e forte – muito bem interpretada pela atriz Andreia Horta -, ali recém-chegada do Rio Grande do Sul, conduzida pelo pai até a porta da fama no Rio de Janeiro, onde a jovenzinha gaúcha encontra Miele e Ronaldo Bôscoli, este aí prestes a se tornar a grande paixão da vida dela. Meu coração velho e confuso se reapaixonou pela personagem na tela. Reapaixonou-se porque eu já tinha 19 anos quando Elis morreu – e, como sempre amei a música, e sempre também me atraí pela beleza não completamente perfeita, e essa, acho, era a beleza da Elis, enfim, rever aquela existência dramática na tela grande do cinema fez a paixão reacender no meu coração, agora já maduro e contaminado pelos anos. Elis estaria perto de completar 72 de idade se não tivesse morrido naquela manhã de 19 de janeiro de 1982, aos 36, vítima da overdose do álcool e da cocaína. Vítima de uma depressão fulminante. Vítima dela mesma. A menina descrita no filme nasceu num país corrupto e corrompido desde o primeiro espelho dado por Cabral ao primeiro índio pelado que lhe apareceu na frente. Mas nasceu num tempo de tentativas de se construir por aqui um capitalismo melhor que o de hoje, quando não é mais o baronato industrial o dono do Brasil, mas o financeiro. A História ensina assim: era o fim da Segunda Grande Guerra quando Elis nasceu. O Brasil se industrializava. Planejava o futuro a longo prazo pra que todo mundo, nesta terra de Caramuru e Paraguaçu, pudesse consumir o que a indústria produzisse. No tempo da Elis, num planeta sem internet pra dizimar os discos e os afetos e tantas outras coisas, o pacto social determinado pela elite industrial brasileira era o de criar uma classe trabalhadora capaz de comprar o que se produzisse. Mas, de um momento qualquer da ditadura militar pra cá, passando pelo reinado tucano, alguma coisa deu errado – e a elite mandante passou a ser não mais a industrial, mas a financeira, a dos bancos, a dos juros, a do overnight, a das Letras de Câmbio, a dos fundos de investimento, a do dinheiro pra quem tem dinheiro, até alcançarmos o ápice agora, num tempo já sem a Elis, com a aprovação desta PEC produzida pela perversidade oportunista dos mandarins de ocasião ou pela burrice de quem não acredita que educação, por exemplo, é a política pública de segurança e mobilidade social mais eficiente a longo prazo, capaz de reduzir, numa tabelinha com o futuro, todos os gastos com saúde e Previdência. O mundo pós-Elis é uma ciranda movida a esse dinheiro detestável e improdutivo. Um mundo às vezes xexelento e desagradável, que ficou demais pra corações velhos como o meu e o de tanta gente que se insubordina, enquanto é tratada no noticiário como antiquada ou alistada ao vandalismo. E tudo isso, neste tempo sem Elis pra consolar, é feito pra pagar os juros de uma dívida pública que não para de crescer, não para de crescer, não para, não para, como ensinam economistas e comentaristas sabidos na TV. O que a maioria dos sabidos não diz é que esse desmanche social é feito pra saldar a tal dívida pública com uma elite financeira sustentada pelos impostos pagos pelos mais pobres. E que a tal dívida foi contraída porque ela, a elite financeira, não paga o imposto que deveria pagar por justiça. Antes da votação da PEC, o professor Jessé de Souza, do Departamento de Ciência Política da UFF, ensinou, numa audiência pública no Senado, que 53% dos impostos engolidos pelo Estado brasileiro são pagos pelos 79% que recebem até três salários mínimos. O professor ensinou em vão, porque os senadores não aprenderam, ou fingiram não aprender. Ensinou ainda que a tal dívida pública será paga por 200 milhões de brasileiros a essa elite financeira formada por apenas 20 mil famílias – nascidas aqui, nesta terra de Dom Pedro II, ou estrangeiras com interesses aqui. E também que a tal dívida cresceu porque faltou dinheiro pra obrigação social – o mesmo dinheiro apossado às tungas por tantos políticos ao longo dos anos, como o juiz Moro poderia dizer. E que, quando faltou dinheiro pra obrigação social, foi a essa elite financeira que o governo recorreu – dinheiro que essa mesma elite financeira deveria era pagar em impostos, camaradamente não cobrados; bufunfa graúda que essa mesma elite vai agora, com a bênção da PEC do Temer, receber pra realimentar essa ciranda. Segundo meu amigo economista Chico Genu, que dificilmente será um dia ouvido pelas TVs, está em curso “uma rapina, que, em última análise, visa tirar dinheiro dos pobres para dar aos ricos,

O medo governa

por Frei Betto Neste mundo desprovido de utopia, senso histórico e confiança na representatividade política, o medo ocupa cada vez mais espaço. As forças conservadoras nos incutem tal insegurança que, como cordeiros a serem tosquiados, aceitamos trocar a liberdade pela segurança. Deixamos de melhorar a nossa qualidade de vida ou fazer uma viagem de lazer para manter intocado o dinheiro no banco. Temos medo do desemprego, da inflação, da recessão. A toda hora soa o alarme: cuidado! A fera está solta! Nem sempre a identificamos com nitidez, mas, como manada, disparamos em corrida para nos afastar o mais possível do alcance da fera. Quem é a fera? É o “outro”, o imigrante que vem roubar nossos empregos. É o estrangeiro que ameaça subverter o nosso estilo de vida. É o muçulmano que, por baixo da túnica, carrega um cinturão de dinamites. É o refugiado que obriga o nosso governo a desviar recursos para socorrê-los. É o homossexual encarado como promíscuo. É quem pensa diferente e cujas ideias nos parecem conter material explosivo… Assim o medo se dissemina pelo país. Penetra em nossas casas. Impregna-nos a mente, os olhos, os ouvidos, o olfato e o paladar. Medo do alimento que engorda, do tabaco que envenena, da bebida que embriaga. Medo de tudo e de todos. Esquecemos o que a sabedoria recomenda: que tenhamos medo do medo. Cresce a síndrome do medo. Isso vale para Rio, São Paulo, Belo Horizonte ou qualquer outra grande capital. Medo de assalto, o que induz o cidadão a tonar-se prisioneiro de sua própria casa, trancada com mil chaves, dotada de alarme de segurança, e quebrada, no visual, pelas grades que cobrem as janelas. O medo viaja a bordo do desconhecido. O porteiro do prédio deve exigir identificação, o nome é anunciado por interfone, o visitante conferido pelo olho mágico e, por fim, as fechaduras, de roliças chaves dentadas, abertas uma a uma. Doença da moda é a agorafobia – medo de lugares públicos. Teme-se que a praça esconda ladrões atrás das árvores, e crianças pedintes se transformem em perigosos assaltantes ao se aproximar do carro. Aumenta o número de pessoas que preferem não sair à noite, jamais usam joias e entram em pânico se alguém se dirige a elas para perguntar onde fica tal avenida. O homem é, enfim, o lobo do homem. De onde vem tanto medo? Da sociedade que nos abriga, marcada por desigualdade e preconceitos. Se não somos iguais em direitos e nas mínimas condições de vida, por que se espantar com reações diferentes? Como exigir polidez de um homem que sente na pele a discriminação racial e, na pobreza, a social? Como esperar um sorriso de uma criança que, no barraco em que mora, vê o pai desempregado descarregar a bebedeira na surra que dá na mulher? A discriminação humilha, e a humilhação gera ressentimento, amargura e revolta. O contrário do medo não é a coragem, é a fé. Não apenas religiosa, mas cívica, política, utópica. Acreditar que o futuro pode ser melhor e diferente. E começar, hoje, a semear os bons frutos a serem colhidos no futuro. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Canis et circenses  

Os meios alternativos no Brasil

por Elaine Tavares Antes de falar dos meios alternativos – que eu prefiro tratar de independentes, comunitários ou populares –  é preciso pontuar alguns elementos referente aos meios de comunicação que dispomos na chamada mídia corporativa ou comercial. Isso é importante para entendermos a ideia de alternativa. Seríamos nós uma alternativa a quê? Do ponto de vista do sistema capitalista que rege o mundo nós estamos colocados na periferia. Somos um país dependente e subdesenvolvido. A outra face de uma moeda, na qual para que um seja rico e pungente, outro tem de ser explorado até o âmago. Fazemos parte dos explorados. Que isso fique claro. Essa mídia corporativa, tal como a conhecemos, é visceralmente ligada ao capital. Tanto que o primeiro jornal diário do mundo nasceu em 1650, na Alemanha, nos albores desse então novo modo de organizar a vida, espalhando-se a ideia depois para a França, Inglaterra e demais países da Europa. Assim, o que antes eram folhas literárias e políticas passaram a ser jornais diários que misturavam as notícias com o anúncio das mercadorias. Era necessário dar notícias desse mundo novo que emergia dos burgos. Do final do século 18, pelo século 19 afora até a primeira grande guerra no século XX os jornais acompanharam a lógica liberal, então hegemônica. Eram empresas privadas, com ligações políticas com o poder, que buscavam potencializar – com as notícias – a venda de mercadorias. O poder instituído já sabia da importância estratégica de formar opinião pública, por isso os jornais eram armas potentes da classe dominante. Com o final da primeira grande guerra e a ascensão dos Estados Unidos como grande potência mundial, começou uma mudança no processo informativo. Já não era suficiente só anunciar produtos, havia que usar os veículos para formar um consenso sobre como ser no mundo. Havia acontecido também a revolução russa em 1917, e ela colocava uma novidade no mundo: a proposta socialista se fazendo corpo. Mais um motivo para a comunicação mudar. É nesse período, de 1918 a 1950, que começam a tomar corpo as teorias de comunicação baseadas na persuasão. Usava-se dos recursos da ciência para buscar formas de enredar as gentes, fazendo-as crer que o “mundo livre” do capitalismo era o melhor dos mundos. O rádio, iniciando sua trajetória pelas ondas do ar em 1918, passa a ser um importante meio de distribuição desse consenso. O cinema, igualmente, torna-se uma usina ideológica, principalmente dos EUA, e os meios em geral – que eram unicamente privados – passam a ficar bem mais abertamente ligados aos Estados. Afinal, é ponto pacífico que os estados nacionais são os espaços que organizam as burguesias locais ao mesmo tempo em que são por elas dominados. Nascem então as principais teorias de comunicação, dando status de ciência ao processo de persuasão e controle das mentes. Com a segunda grande guerra e o advento da televisão, esse processo recrudesceu. O novo veículo agora entrava nas casas com áudio e vídeo, aprofundando ainda mais a manufatura do consenso. A tal ponto de até hoje o mundo inteiro saudar o fim da segunda guerra como uma vitória dos EUA, com o famoso desembarque da Normandia, eliminando completamente da história o sacrifício de milhões de russos, que foram os que realmente pararam a máquina de matar de Hitler. O cinema e o jornalismo inventaram outra história. Com a chamada “guerra fria”, depois do fim da segunda grande guerra, o processo ficou ainda mais forte. Alienar as mentes era estratégico e os meios de comunicação de massa – rádio e TV – concessões dos Estados, estavam amarrados nessa missão. E assim como era no centro do sistema, também na periferia. As teorias, os veículos e as técnicas de comunicação eram importadas sem qualquer visão crítica. A periferia sempre tentando “progredir” como o centro, sem dar-se conta de que isso era impossível. O único desenvolvimento que os países periféricos podem ter no sistema capitalista é o desenvolvimento do subdesenvolvimento, conforme bem revelou Gunder Frank. O conhecido “neoliberalismo”, que é uma fase a mais do processo de acumulação capitalista trouxe para o mundo das comunicações novas tecnologias. O advento da internet, possibilitando interconexão mundial deu a receita mágica: ilusão de democracia e aprofundamento da dominação. A famosa www passou a ser uma correia de transmissão planetária da mesma lógica de fabricação de consenso. Totalmente dominada pelos mesmos grupos que controlam a produção da informação, a “rede” se espalhou dando possibilidades de interação, coisa nunca antes possível. A ideia de que, agora, qualquer pessoa é produtora de conteúdo abre um espaço importante de debate. E mais do que nunca é preciso ter bastante claro o que é espaço de opinião e o que é informação de qualidade. No geral, as redes sociais, além de espalharem opiniões, reproduzem as informações que são produzidas pelos mesmos grupos que controlam os meios de massa como rádio, TV, jornais e revistas. No campo da vida real, as empresas que controlam servidores e grandes produtores de informação seguem sendo as mesmas, com um elemento novo: a crescente participação das entidades financeiras – bancos – no controle acionários dos conglomerados midiáticos. Ou seja, a financeirização da vida não está mais circunscrita à economia clássica. Não basta aos bancos definirem a situação econômica dos países, eles têm de inventá-la também. Isso significa que, com o controle da informação, eles podem produzir um futuro dentro dos seus interesses. Nesse sentido, a informação produzida pelos grandes meios de comunicação assume a condição de commoditie, vendida num mercado futuro. Torna-se irmã siamesa das matérias primas de base como cereais, minerais, petróleo etc. Os grandes meios fabricam informações que não apenas influenciam no presente, mas também conformam o futuro. Inventam uma realidade vindoura moldada aos seus interesses. Isso é novo e precisa da nossa atenção. O sítio do jornal espanhol El País, por exemplo, tem 30 milhões de usuários, e metade desses leitores está na América Latina. Hoje, o El País é comandado por uma instituição financeira que tem uma dívida de três milhões de euros. Uma dívida que não é cobrada

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