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Política análise

Análises de nossos colaboradores sobre a conjuntura política.

A política de despolitização da política

por Frei Betto A direita muda a retórica, não os métodos e objetivos. Para defender o mercado financeiro e os rentistas, adota eufemismos, como chamar o arrocho de ajuste fiscal. Para impor sua ideologia neoliberal, faz a campanha da Escola Sem Partido. Agora a falácia é o Partido Sem Políticos e os Políticos Apolíticos… O Lobo Mau se disfarça de Chapeuzinho Vermelho, e as vovozinhas ingênuas aplaudem os gestores que prometem governar a cidade como administram suas empresas – muito dinheiro em caixa, graças à privatização do patrimônio público e pouco respeito aos direitos dos cidadãos. Vejam a contradição: o sujeito se inscreve em um partido político, é apontado candidato na convenção do partido político, faz campanha pelo partido político, enche a boca de propostas e promessas políticas… E diz que não é político! É o quê? Como se fosse possível um ser humano ser apolítico! Pobre Aristóteles! Há quem acredite que sim. A minha tia, por exemplo, do alto de seus 96 anos. Isso não significa que ela não faça política. Faz, como todo mundo. Por omissão ou participação. Quem se omite, resguardado pela indiferença ou envenenado pelo nojo, passa cheque em branco aos atuais políticos e à política vigente. Quem não gosta de política é governado por quem gosta. E tudo que os maus políticos mais querem é que os cidadãos fechem os olhos a seus desmandos e maracutaias. Muitos participam ao reforçar ou tentar mudar a política vigente. Não apenas através do voto. Também via movimentos sociais, ONGs, sindicatos, associações, partidos, atividades artísticas etc. O neoliberalismo é mestre em artimanhas linguísticas. Insiste em tentar rimar capitalismo e democracia; apregoa que a livre iniciativa regula a distribuição de riquezas (o que a história jamais comprovou); defende ardorosamente a propriedade privada (nunca o direito àqueles que não a possuem); qualifica de crescimento econômico a piramidização da riqueza sobre a base da pobreza e da miséria. O objetivo é o que se vê na atual proposta Temer-Mendonça de reforma do ensino: evitar que os alunos tenham consciência crítica; abracem a utopia de “outros mundos possíveis”; tornem-se protagonistas de transformações sociais. Uma sociedade de dóceis cordeiros comandada por lobos sagazes. Há quem acredite em Papai Noel. E ainda mais que o bom velhinho cometa, no Natal, a maldade de presentear fartamente os ricos e deixar os pobres de mãos vazias. Portanto, não é de estranhar que haja quem acredite em político apolítico, travestido de bom gestor capaz de presentear o município com uma administração cinco estrelas. Quem viver, verá. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.

A PEC 241 é ponte para a dor

por Eliane Tavares Muita gente ouve falar em PEC, mas não sabe o que é uma PEC. É como se fosse um projeto de lei, só que mais importante, porque muda a Constituição. Daí a sua sigla, PEC, Proposta de Emenda Constitucional. No caso do Brasil, a tão comemorada Constituição de 1988, que garantiu uma série de avanços, frutos de importantes lutas sociais pós-ditadura, já foi emendada mais de nove mil vezes, e isso até 2013. Quem levantou esse número foi o advogado Thiago Santos Aguiar de Pádua, num artigo para a página Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2014-mar-09/thiago-padua-brasil-10-mil-pecs-25-anos-constituicao). Ainda segundo os dados acima, a média geral de proposição de PECs é de 360 por ano, e pasmem, no geral, sem qualquer debate público. Ou seja, as bancadas – que representam interesses de grupos bem específicos e não a população – decidem sobre a vida de milhões, sem sequer submeter o tema a uma discussão mínima. Tudo se dá dentro do Congresso, com o silêncio obsequioso da mídia comercial. Nas mídias independentes e alternativas a discussão aparece, mas é claro que não tem o alcance dos veículos tradicionais e, geralmente, são demonizadas como “coisa de petralhas”. Somente quando é de interesse da classe dominante que o tema PEC se populariza, como aconteceu em 2013, durante as manifestações de junho, quando, do nada, todo mundo começou a vestir a camisa contra a aprovação da PEC 37, que tirava do Ministério Público o poder de investigação. Hoje sabemos por que houve tanto apoio da mídia comercial contra essa emenda, que foi derrotada a partir das grandes manifestações contra a corrupção. O Ministério Público iria cumprir triste papel na perseguição a um grupo bem específico de políticos: do PT. A PEC 241 Pois hoje pode passar pela segunda vez no plenário na Câmara a proposta de emenda à Constituição de número 241. Se aprovada, garante ao governo o direito de congelar os gastos por incríveis 20 anos. Eu disse, 20 anos, duas décadas. Agora imagem ficar por duas décadas com o mesmo orçamento para a saúde, educação, segurança, moradia, saneamento e seguridade social? Vinte anos com a aposentadoria congelada, com os salários do funcionalismo público congelado. E em nome de quê esse ajuste tão perverso? Em nome do que o governo Temer chama de “herança maldita do PT”. Mas, qual é a verdade? A verdade é que o governo está decidindo, num tempo de crise sistêmica do capital, manter religiosamente o pagamento dos juros da dívida, que consome mais de 45% do orçamento geral da União. Assim, opta por pagar aos banqueiros, de uma dívida ilegítima e ilegal, em vez de garantir direitos básicos à população. Não tem nada a ver com o PT, já que, de fato, no período em que esse partido governou, a economia estava em crescimento, o que permitiu melhorias nas políticas públicas. Agora, com a crise, haveria que se fazer escolhas. E o governo Temer está fazendo. Contra a maioria da população. Não é sem razão que o governo recém-empossado já realizou cortes em vários programas sociais, principalmente na Educação. Agora, caso passe o congelamento dos gastos, outros setores da vida cotidiana vão sofrer. Como a população brasileira ainda está inoculada com o ódio criado contra Dilma, contra o PT e contra tudo o que veio do governo passado, está bastante favorável para as bancadas que representam os interesses do grande capital, imporem uma grande derrota a toda gente. Afinal, os efeitos dessa proposta começarão a ser sentidos lentamente. E, quando aqueles que estão agora cegados pelo ódio ao PT se derem conta, tudo já estará consolidado. Nos movimentos sociais observa-se maior mobilização contra a PEC, mas o movimento sindical brasileiro parece adormecido. Pouco debate e pouca mobilização, o que possivelmente é fruto de todo o processo de domesticação vivido durante o governo petista, e que agora vai levar algum tempo para se recuperar. Aliado a isso, ainda tem a mídia comercial jogando pesado na consolidação da “historinha” de que é inevitável que os trabalhadores apertem o cinto para salvar o Brasil que o PT estragou. Muitos dirão que Dilma também faria o ajuste e que isso é necessário para tirar o país da crise. Mas, quem está no governo não é Dilma, é Temer, e é ele o responsável por isso, nesse momento. Ou seja, o governo brasileiro está fazendo uma escolha. Atender aos interesses dos grandes e penalizando a maioria, que é quem precisa dos serviços públicos. A luta contra a PEC 241 se dará nas ruas, ainda que sejam os mesmos de sempre a gritar contra o “saco de maldades”. E é muito provável que a Câmara dos Deputados, cuja conformação é completamente favorável ao governo a aprove sem problemas. Assim, o que se anuncia para os brasileiros é um longo tempo de profunda escuridão, tristeza e dor, afinal, serão 20 anos com os gastos públicos congelados. Isso significa que os valores que esse ano foram investidos nos serviços públicos como saúde, educação e previdência serão os mesmos daqui a 20 anos, e mesmo a classe média, tão virulenta no seu ódio aos pobres, terá de pisar miudinho para não se misturar aos que tanto despreza. Segundo pesquisas realizadas pelo grupo Tendências Consultoria Integrada, dirigido pelo liberal Maílson da Nóbrega, mais de 10 milhões de pessoas que integram hoje a Classe C serão rebaixadas às classes D e E. E, se para a classe média os prognósticos são ruins, que dizer dos mais empobrecidos? Desses, tudo será tomado. Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos. Alguns diagnósticos sobre a PEC 241  

Alguns diagnósticos sobre a PEC 241

por Pablo Ortellado O texto reflete mais ou menos o que sei e penso sobre a PEC 241, que vai congelar os gastos do Estado brasileiro por 20 anos. Para começar, apresento a maneira como entendo os argumentos de quem defende a proposta: para eles, há no Brasil um desequilíbrio fiscal estrutural (isto é, se gasta estruturalmente mais do que se arrecada), com aumentos crescentes da dívida pública – movimento que precisa ser contido e revertido por meio de medidas duras, diluídas num período longo de tempo (20 anos). Embora dolorosas, pois reduzirão significativamente os gastos sociais do Estado, essas medidas serão compensadas pelos seus impactos positivos imediatos já que, ao resgatar a confiança dos investidores, elas vão gerar crescimento econômico, diminuição do desemprego e redução dos juros. Não agir assim, para os defensores da PEC, seria demagogia perigosa num momento de grave crise e nos levaria ainda mais para o fundo do poço. O que me parece errado, tanto no diagnóstico, como nas soluções propostas: 1) ainda que tivéssemos um desequilíbrio fiscal da natureza alegada pelos defensores da PEC, a solução não poderia ser um corte radical e horizontal dos gastos do Estado, mas cortar pontualmente gastos que beneficiam setores mais privilegiados (desonerações e altos salários, por exemplo) e aumentar a arrecadação, fazendo com que os brasileiros mais ricos paguem a sua parte no financiamento do Estado. Poderíamos transformar o vício em virtude, olhando para a nossa estrutura tributária regressiva – isto é, para o fato de os ricos pagarem bem menos impostos do que os pobres – como uma oportunidade de fazer a arrecadação crescer em momento de crise. Isso teria a vantagem de não mexer no que a imensa maioria paga de impostos; 2) haverá quase seguramente redução significativa dos gastos em saúde e educação. Atualmente os gastos em saúde e educação são vinculados, isto é, uma parcela do que o Estado arrecada com impostos é automaticamente repassada para saúde e educação, de maneira que, à medida que o país cresce, também crescem os recursos disponíveis para os serviços públicos. Esse sistema vai ser extinto com a PEC e os gastos totais do Estado não vão mais poder crescer. Como os outros gastos não poderão ser cortados (a maior parte deles são gastos com assistência social e previdência), a tendência é que a distribuição fique mais ou menos como está e os gastos com saúde e educação se reduzam muito, em relação ao PIB. Saber exatamente quanto é um exercício de futurologia, porque não sabemos quanto o Brasil vai crescer, nem como vai se comportar a inflação. Mas todas as simulações sérias que eu vi (os estudos do IPEA, do DIEESE e da minha colega Úrsula Peres), que utilizam expectativas padrões de mercado ou aplicam a regra da economia brasileira do passado, mostram redução muito drástica dos recursos necessários à saúde e educação; 3) existem pelo menos três grandes malandragens na PEC. Ela é uma obra de gênio. A primeira malandragem é semântica – dizer que não há cortes de gastos em saúde e educação, mas apenas a suspensão dos novos aportes. Não se tira recursos, simplesmente se deixa de colocar. Atualmente, os gastos são vinculados e crescem com a arrecadação. A partir da nova regra, estariam congelados. No decorrer dos 20 anos, um verdadeiro abismo separa o que seria gasto com saúde e educação na regra dos gastos vinculados e o que passaria a ser gasto com os gastos congelados. Nas simulações, essa diferença é uma redução de 40%; 4) a segunda malandragem é dizer que nada impede que os gastos em saúde e educação continuem crescendo, desde que o teto seja respeitado. Esse argumento só pode ser enunciado com má fé. O próprio governo Temer foi incapaz de distribuir desigualmente o ônus da crise, pesando mais sobre os mais privilegiados – pelo contrário, ele deu aumento para os servidores mais ricos e manteve todas as muito criticadas desonerações às empresas do governo Dilma. Esperar que os gastos em saúde e educação cresçam, vencendo a ação desses poderosos lobbies, se não for má fé, é apenas ingenuidade. E é de uma insensibilidade social sem par esperar que os gastos em saúde e educação cresçam às custas da redução dos gastos em assistência social (como o seguro-desemprego e o Bolsa-Família); 5) a terceira malandragem é diluir essa desconstrução dos serviços públicos em longos 20 anos. Isso tem duas vantagens para os proponentes: a primeira é que praticamente nada acontece sob o governo Temer, que poderá sobreviver ileso, já que nenhum dos cortes serão sentidos até o fim do seu mandato; o segundo é que os efeitos mais terríveis vão ser sentidos aos poucos e a barra pesada só será sentida nos anos 2020, 2030, quando nossa população estiver envelhecida, demandando mais o SUS e os recursos estiverem congelados no estágio atual; 6) como se não bastasse ser equivocada no conteúdo, a medida é um despropósito na forma. Ela está tramitando de maneira aceleradíssima, patrocinada por um governo que não submeteu tal programa ao crivo das urnas. Não foram feitas audiências públicas, os jornais não investiram no debate público e a maioria dos brasileiros simplesmente não tem ideia de que está em discussão – e esse desconhecimento não é por acaso: se o debate fosse realizado, o Brasil jamais aceitaria a medida, porque um sistema sólido de educação e saúde é um dos poucos consensos deste país tão dividido; Foram necessários 30 anos para construir nosso sistema público de saúde e para ampliar e consolidar nossa educação pública. Tudo, agora, corre o risco de ser desconstruído com um projeto que está sendo aprovado sem debate e que deve ter um tempo total de tramitação de apenas dois meses! 7) por fim, gostaria de enfatizar que embora envolvida em questões técnicas, essa é uma questão inteiramente política. Se temos mesmo um desajuste fiscal, temos que fazer um debate público sobre como resolvê-lo: se aumentamos a arrecadação sobre quem não paga imposto ou se cortamos gastos e onde cortamos os

Colômbia diz não à paz

por Elaine Tavares Apesar de o governo e as FARC já terem assinado um acordo de paz, com mais de 297 páginas, comprometendo-se a encerrar 52 anos de conflito armado, no plebiscito realizado nesse domingo, a maioria do povo colombiano disse não ao acordo. O resultado foi de 50,24% para o não, e 49,75% para o sim. E ainda que a presença nas urnas tenha sido pouco expressiva – 37,28% – é esse grupo que coloca um balde de água fria no processo de paz. A luta armada na Colômbia, que iniciou com o assassinato de Jorge Gaitán, em 1948, tem um complexo emaranhado de grupos revolucionários, paramilitares e exército, que se enfrentam sem trégua. O conflito já provocou um saldo de mais de 260 mil mortos, e quase sete milhões de desalojados – gente que vaga pelo país sem conseguir fixar-se ou viver em paz. A batalha pela paz recomeçou em 2012 e culminou com o acordo de Havana, esse ano, no qual o governo e as FARC se comprometeram com o cessar fogo. Mas, entre os colombianos – quase 35 milhões de pessoas – ainda viceja muito ódio. Os que votaram pelo “não” insistem que não é possível encerrar o conflito anistiando os revolucionários. Querem que sejam presos e paguem pelo que consideram “o desastre” que tem sido as FARCs ao logo desses anos. Em todo mundo a vitória do “não” causou estupor. Parece inimaginável que mais de seis milhões de pessoas tenham saído de casa para rechaçar um acordo que pretende estabelecer a paz no país. Mas, foi o que aconteceu. Quem acompanha mais sistematicamente a conjuntura colombiana sabe que esse não é um resultado surpreendente. Afinal, a guinada direitista que vive a América Latina, com campanhas sistemáticas de ódio a qualquer proposta vinda da esquerda, já indicava que a batalha seria dura também ali naquele país. Além disso, o principal articulador do voto pelo “não” foi Álvaro Uribe, o ex-presidente denunciado inclusive pelos Estados Unidos como narcotraficante. Para esses grupos a guerra civil é fonte de riqueza e de negócios. Logo, ela não pode acabar. O argumento público de Uribe é o ódio: “Não podemos outorgar impunidade aos rebeldes”, mas o que se esconde por trás é bem mais prosaico: dinheiro e poder. Agora, com o resultado do plebiscito, restará aos grupos guerrilheiros a decisão de seguir ou não com o processo de desarmamento que já estava em curso. O acordo previa a entrega das armas e a reintegração de todos os guerrilheiros – quase seis mil combatentes – à vida política nacional. Os dirigentes das FARC reagiram ao plebiscito com bastante tristeza. Estavam preparados para a paz. “Sabemos que ao longo dos tempos cometemos vários erros, mas pedimos perdão a toda a Colômbia”, escreveram na conta do Twitter. Eles também informaram que já destruíram parte das armas, realizaram um inventário de bens os quais servirão para reparar famílias e prepararam um pedido de perdão. “Seria uma lástima que isso fosse frustrado”, declarou Humberto de lá Cale, ontem, ao votar. De todas as imagens do dia de ontem, na Colômbia, as que mais chocam são as que retratam a alegria de Álvaro Uribe. Como é possível que um homem, que foi presidente da nação e que hoje é senador, se regozije por conta de um resultado que recolocará o povo colombiano na trilha da violência e da morte? Por todo o país, o sentimento é de muita tristeza, afinal, foi um resultado apertado, que mostra também uma Colômbia dividida. De um lado, os que querem seguir vivendo e de outro, os que lucram com a morte e com a destruição do país. O presidente Juan Manuel Santos afirmou que seguirá lutando pela paz. Timochenko, um dos líderes das FARC também reitera a vontade de continuar na busca da paz. Agora, muita água rolará por baixo da ponte até que a vida vença. Santos já anunciou que irá conversar com as forças que alavancaram o “não”. Isso significa que começa outra batalha interna, uma queda de braço entre os outrora companheiros e agora adversários: Santos e Uribe. Uribe sai fortalecido desse plebiscito e certamente colocará na mesa algumas exigências. De qualquer forma, considerando ser ele quem é, mesmo que se acerte com Santos, o povo colombiano é quem irá pagar caro por qualquer acordo que surja daí. O resultado desse domingo na Colômbia é de uma tristeza infinita para todos aqueles que caminham no rumo da paz. Mostra que a jornada ainda está longe do final. Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos. FARCs entregam armas e seguem no caminho da paz Colômbia e o difícil caminho para a paz

Este texto não é sobre Lula

por Fernando Bastos Neto Vocês sabem que Juscelino Kubitschek é um dos políticos mais prestigiados do Brasil. Faz algum sentido. Os anos JK são conhecidos como a “Era Bossa-Nova”. O Brasil parecia estar finalmente na direção do desenvolvimento e industrialização. Foi o tempo da construção de Brasília, mas também do Plano de Metas, dos cinquenta anos em cinco, de capitais estrangeiros sendo atraídos, de fábricas automotivas vindo pra cá, de investimentos em infraestrutura. Tudo isso pincelado pelo carisma mineiro de um presidente capaz de transitar entre comunistas e udenistas, dono um charme de contagiar a todos. Vejam só, já tivemos até série de televisão laudatória sobre Juscelino na Rede Globo, com José Wilker de papel principal. Maior prova de que JK é querido pelo establishment não há. No entanto, pouca gente se lembra de alguns episódios posteriores ao seu mandato de presidente, especialmente das reiteradas acusações de corrupção direcionadas a Juscelino Kubitschek. Para explicar esta história, convém retomar a eleição de 1960, que escolheu o sucessor de JK. A disputa estava centralizada entre Jânio Quadros e o Marechal Lott. Lott, candidato do PTB, de Getúlio e Jango, foi um reconhecido militar legalista (algo mais ou menos raro, dada a história do Brasil), mas claramente sem tino para a política. Clássica figura reconhecidamente séria, mas sem carisma. Jânio, do contrário, surgiu como um meteoro na política. Candidato pelo pequeno e quase inexpressivo PTN, recebeu o apoio da UDN. A União Democrática Nacional era o partido das donas de casa batedoras de panela, das classes médias urbanas, dos servidores públicos. Sua figura mais proeminente, Carlos Lacerda, poderia ser definida como uma espécie de Reinaldo Azevedo com mandato parlamentar. Outro detalhe importante sobre esse partido é que ele jamais havia ganhado uma única eleição para a presidência da república. Em 46, o Brigadeiro Eduardo Gomes perdeu para o general Dutra. O mesmo Brigadeiro seria derrotado por Getúlio, no ano de 1950. Já em 1955, Juscelino venceu Juarez Távora. Curiosidade: depois da terceira derrota seguida, a UDN tentou aplicar um golpe para evitar a posse de JK. Sim, é golpe o termo. Esse tipo de coisa era mais ou menos comum naquela época. Alegava a União Democrática que JK não havia vencido com a 50% + 1 dos votos, portanto não teria legitimidade para assumir o posto. O detalhe de que a legislação eleitoral da época não previa segundo turno, nem a necessidade de conquistar determinada porcentagem para ser empossado, nada disso fazia diferença. Tanto foi assim, que um General (à época) assumiu a posição da defesa da legalidade e deu um golpe preventivo (sim, gente, foi um golpe preventivo, a história do Brasil é cheia dessas loucuras) para garantir a posse de Kubitschek. JK venceu suas eleições, mas só pôde assumir porque um grupo de dentro das forças armadas decidiu garantir sua posse pela força das armas. O nome do líder deste grupo de militares era Henrique Teixeira Lott. Saiba mais sobre o golpe preventivo liderado por Lott. Voltemos às eleições de 1960. Traumatizada por ter perdido nas urnas tantas vezes, a UDN resolveu se arriscar e apostar numa figura obscura de outro partido, mas ascendente dentro do cenário político nacional: Jânio Quadros. Pela primeira vez, o moralismo de direita incorporava indícios que podem ser chamados de populistas. Com um discurso conservador e de forte combate à corrupção, Jânio venceu o apagado Lott com relativa facilidade. O papo da vassourinha simplesmente pegou. É verdade que não chegou aos 50% + 1 votos, no entanto desta vez a UDN não questionou a legitimidade do pleito. Eleito, Jânio Quadros tomou medidas heterodoxas. Proibiu o biquíni, inaugurou uma nova era da política externa brasileira, condecorou Che Guevara e tudo mais. Até que renunciou. Antes de renunciar, contudo, ele havia colocado em prática o discurso da vassourinha, criando inquéritos com o objetivo de investigar a gestão anterior. Não havia a teoria do domínio do fato, nem procuradores do MPF que curtem a página Revoltados Online, mas logo a investigação chegou em Juscelino. Ninguém precisa conhecer uma única letra da história brasileira para saber que houve roubalheira na construção de Brasília. JK estava na mira. Como na época não havia Gilmar Mendes no seu encalço, Juscelino Kubitschek logrou êxito numa gambiarra jurídica que lhe permitiu tornar-se Senador pelo estado de Goiás, ganhando, assim, imunidade parlamentar, se safando das investigações. A renúncia de Jânio jogou o país numa espiral de tensão enorme. A UDN, que finalmente havia vencido uma eleição, viu seu sonho virar um pesadelo: assumiu Jango, herdeiro do getulismo, aquele mesmo que os udenistas lutaram tanto para derrotar. Mais um golpe foi tentado: a posse de Jango só foi aceita por conta de mais uma campanha da legalidade, dessa vez liderada por Leonel Brizola, que se resolveu pela saída pacífica negociada: transformar o país num regime parlamentarista. Sim, desde aquela época esta é uma ideia fixa de parte da direita brasileira. Não durou muito, logo viria um plebiscito e a população optou pelo presidencialismo. Também não durou, porque o golpe de 64 não tardaria a chegar. Golpes no Brasil, como esse texto já mostrou, eram bastante corriqueiros. Normalmente, isto é, até 64, o procedimento de praxe era derrubar o governo, dar um reset no sistema — devolver o poder para os civis. Era essa a promessa, ao menos, do grupo ligado ao presidente empossado Castelo Branco. Seria coisa rápida. Tanto a UDN de Lacerda, quanto o PSD de Juscelino acreditaram na promessa e apoiaram o golpe. Ambos tinham pretensões para 65. Seria tipo uma disputa entre Pelé e Maradona da política brasileira, mas esse embate nos foi negligenciado pelos milicos que não ficaram alguns dias como de praxe, mas vinte e um fucking anos. Lacerda logo se tocou e voltou à oposição. JK, agora com o mandato cassado sob alegação de corrupção, era visto como potencial inimigo da ditadura militar. Passou a ser conduzido coercitivamente de maneira diária a prestar contas na polícia do exército. Os jornais enfatizavam a agonia de Juscelino, com ênfase nas acusações de corrupção. Imagina se

Brizola volta a falar do calvário de Dilma e do impeachment

por Marceu Vieira  Ao assistir à inquisição de Dilma no Senado, o cronista digital teve uma nova alucinação e revisitou o baú de lembranças do seu tempo de repórter político. Mais uma vez, surgiu diante dele a memória de Leonel Brizola, e o cronista arrancou do velho trabalhista gaúcho o que ele pensa do martírio e da paixão da presidente em sua crucificação no tribunal do Senado.   Governador, o senhor ainda acredita na possibilidade de absolvição da Dilma? Veja, Morfeu.   É Marceu, governador. Tu me desculpes. Tu sabes desta minha confusão renitente com teu nome. Mas veja, Alceu. A rigor, se isto ocorrer, será uma imensa surpresa. Realmente, uma imensa surpresa. Um velho ditado no Sul diz que não se apeia do cavalo enquanto o fim da estrada não chega. Mas o fim da estrada está próximo, independentemente do desfecho que tiver. Eu te digo isso com um sentimento de desgosto muito grande! Muito grande, realmente. Estes senadores de gravatas modernas, não é verdade?, esses que aí estão a julgar a presidente, eles, sim, vão merecer um julgamento. Um julgamento exemplar e ainda mais severo que este que impõem agora à presidente legitimamente eleita. Será o julgamento da História! A História, tu sabes, é cruel em seus julgamentos. Eu mesmo tenho aqui as minhas dificuldades em explicar certas situações em que estive.   Que situações, governador? A rigor, poucas, bem poucas. Mas sei que ainda hoje me julgam, compreende?   Por exemplo… Julgam o velho Brizola pelo seu papel no episódio do impeachment do presidente Collor, por exemplo.   O senhor apoiou Collor naquele momento de crise. Sente-se arrependido? Isto é uma grande inverdade, tu me permitas dizer. Chego a duvidar, sinceramente, que tu penses assim. Tu, que acompanhaste uma boa parte da nossa trajetória, que estavas ali tão próximo, a nos entrevistar naquele período, tu sabes que não foi o que ocorreu. As diferenças entre mim e o Collor eram conhecidas. Já não sei de ti, mas qualquer guri daquele tempo, qualquer piá, francamente, sabia da minha profunda discordância em relação ao presidente Collor. De modo que, se há um arrependimento neste coração que já parou de bater, mas segue vivo aqui no meu peito, se há um arrependimento é o de eu não ter me posicionado com mais clareza sobre estes fatos naquela época para desfazer certos mal entendidos. Nada mais. Leia outra “entrevista” do cronista digital Marceu Vieira com Leonel Brizola. Se não era apoio, o que era? Deixe-me concluir, Ateneu. Calma lá que te darei a tua resposta. Em nome da governabilidade, eu, como governador do Rio de Janeiro, do que muito me orgulho, aliás, procurei o presidente Collor e propus a construção de Cieps federais e a adoção de algumas das nossas ideias. Sobretudo, na área da educação. Ele nos atendeu com os Ciacs, não é verdade? Creio que o presidente se contaminou ali, criou ali um certo encantamento em relação a algumas das nossas ideias, e se construiu um clima amistoso entre nós. Ele foi sempre muito cortês conosco. E nós retribuíamos o trato pessoal. E foi só.   Mas o senhor não participou dos atos pelo impeachment dele nem se posicionou. Veja, Nereu. Eu sempre disse que caberia ao Congresso e ao Supremo Tribunal julgar os crimes de que acusavam o Collor. Eu não fui a reboque do PT, um ramal auxiliar do PT, que queria a carnificina, o julgamento sumário, a crucificação imediata. Eu estava ali, de camarote, entendes? Tu sabes das minhas convicções e das minhas imensas diferenças também com o PT. Francamente, até me surpreende que tu queiras seguir por esta vereda agora nesta nossa conversa e neste momento tão grave do nosso país.   Qual a diferença daquele processo de impeachment pra este de agora? Permita que eu te diga. Veja. Tu mesmo, agora, estás aí a trabalhar para a Rede Globo. Andei sabendo, nas minhas resenhas, dos teus novos voos, com este Adné…   Adnet, governador, Adnê. Tu me perdoes a maneira desabrida. Longe de mim querer te desagradar ou te constranger. Longe de mim! Mas este Adné, que, na verdade, me parece um fanfarrão, te pôs pra trabalhar no império Globo. Por isso, sinto teus questionamentos contaminados.   Governador, trabalho atualmente pra um programa de humor, como roteirista. E perguntei apenas sobre as diferenças entre o processo de impeachment da Dilma e o do Collor. Eu te peço desculpas. As minhas mais sinceras desculpas. Mas é como vejo. A grande diferença é que não há crime agora. O que fez a dona Dilma?! Com todo o respeito aos sábios da lei, a rigor, ela não fez nada. Não há nada! Esta é a verdade. Dilma não roubou, não acobertou corruptos, não se apequenou diante dos… como te dizer… diante dos chimangos. Dilma não se beneficiou de um alfinete do palácio! Um alfinete! A rigor, Dilma, uma jovem que vimos nascer na política lá no Rio Grande, não fez nada. Nada. Já Collor tinha lá as intercorrências dele, não é verdade? Tu sabes. Collor ficava naquela motoca d’água dele (jet ski), ali nos lagos de Brasília, exibindo seus dotes atléticos, enquanto no porão do palácio havia quem fizesse coisas que se dizia que faziam em nome dele, tu sabes bem. Não sou eu quem está dizendo! Não sou eu, Leonel, quem diz. Diziam que faziam. Diziam até que o tesoureiro pagava as contas pessoais dele! Mas veja. Diziam. Não sou eu que afirmo. E o que fez a dona Dilma? A rigor, nada! Dona Dilma é inocente e está pagando por crimes que não cometeu. Com toda convicção, não cometeu.   O senhor diria que ela paga pelos erros do PT? Tu agora tocaste num ponto, creia, que tem andado aqui nas minhas reflexões. Daqui de onde estou agora, tenho uma visão mais ampla do que ocorre e descontaminada das coisas da política. O Lula, na sua autossuficiência, abandonou a Dilma em certo momento. Não há como negar. Não quero julgá-lo. Mas, francamente, foi o

O repórter como porta-voz da polícia

por Urariano Mota Sobre o assassinato de uma criança de 10 anos pela polícia, pude observar a falta de investigação, ora, investigação, nem mesmo um distanciamento, da reportagem da televisão que transmitia as informações mais absurdas, como foi no caso de uma criança que dirigia abrindo e fechando o vidro do carro enquanto atirava, como se fosse um supermenino, afinal executado. Mas pude ver que o fenômeno é maior e mais amplo, ao ver no Bom Dia Brasil esta notícia: “Dinheiro de fraude pagava contas de Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann. O documento a que a TV Globo teve acesso é um relatório da Polícia Federal sobre o material apreendido no escritório do advogado Guilherme Gonçalves, em Curitiba, no ano passado. Serviu de base para a Operação Custo Brasil, que prendeu 11 pessoas na semana passada. Entre elas o próprio advogado e Paulo Bernardo, ex-ministro do Planejamento no governo Lula e das Comunicações no governo Dilma”. Ao ver isso, tive um choque e uma descoberta. É que já deixou de existir a chamada imprensa investigativa. A polícia investiga pela imprensa e faz do repórter o seu porta-voz. Tão simples, e não havia notado antes. Até entendemos que diante de uma notícia-bomba, algo como “O ex-presidente Lula matou mais de cem amantes”, o repórter nem respira, toca a inverossimilhança para a frente. Na pressa e na prensa, ele não vai deixar o furo de reportagem para outro. Mas o que espanta é o depois da bomba, a retaguarda da notícia que não apura nem põe um salutar sinal de interrogação, uma dúvida sequer na fala noticiada. Pelo contrário, a retaguarda da Rede Globo, Band, SBT, rádios, e até mesmo da imprensa escrita, se põe a levantar um autêntico castelo de cartas, uma teoria que justifique a única verdade, a versão policial. Imagino o dia em que a Polícia Federal descobrir, por exemplo, que Deus existe, conforme documentos apreendidos em investigação no Mercado Público de Água Fria . Claro, com provas fotográficas e testemunhas. Numa delas seria visto um senhor barbudo, numa manhã de domingo a comer cuscuz com guisado em uma mesa, num box do mercado. Sim, e daí? Daí é que houve esta revelação: o grisalho homem não pagou a conta com dinheiro vivo ou cartão. Ele sorriu, abençoou a graça da refeição, se levantou e sumiu por uma larga porta. Intrigada, a Polícia Federal, que hoje é o próprio olho de Deus, ao qual nada escapa, perguntou ao dono do boxe por que o cidadão não pagou. E o comerciante assim lhe respondeu: “Esse homem pra mim é Deus. É meu maior amigo”. E os policiais, para não se ajoelharem, registraram a ocorrência descoberta em relatório, ao qual nada escapa. Levada a notícia para a televisão, os apresentadores acrescentariam que essa era mais uma prova da infinita humildade e concretude da existência divina. Quando mesmo se esperava, Deus se revelara a comer cuscuz com um guisadinho no popular bairro de Água Fria. E terminaria a notícia com o ar mais grave: “o local agora é destino de imensa romaria, e de tal sorte, que Denizar, filho de Seu João do Caldíssimo, está agora de plantão ali com uma imagem de São Jorge para que seja abençoada. Fiéis de um terreiro próximo, o mais antigo do Recife, o do Pai Adão, já comparecem e batem os mais lindos toques de tambor todas os dias. O dono da coalhada no bairro, única do Recife, se tornou o mais ardoroso crente diante dos lucros por sua fórmula santa de coalhar o leite. E Carlos, o barbeiro da Rua Japaranduba, afirmou que será capaz de deixar o Santa Cruz e torcer pelo Sport, se Deus assim lhe mandar”. Tudo agora é possível. Publicado originalmente no Diário de Pernambuco.

A prisão de Suplicy, o fim do Ocupa Minc e o tempo de ódio

por Marceu Vieira A prisão do ex-senador Eduardo Suplicy pela PM de São Paulo e o fim do protesto Ocupa MinC, no Rio, pela Polícia Federal, deram a este cronista digital, na manhã de ontem, a certeza de que o Brasil vive um tempo comprido de ódio e desesperança. Um tempo que, pelo jeito, deve ainda demorar a acabar. Suplicy participava de um ato contra a expulsão de gente pobre de um terrenão da prefeitura com 11 mil metros quadrados, na Zona Oeste paulistana. Prefeitura, por mais estranho que pareça, chefiada por Fernando Haddad, do mesmo PT do ex-senador. PM, por ainda mais esquisito, comandada pelo governador Geraldo Alckmin, do PSDB, a quem o prefeito petista recorreu. Pra quem não conhece São Paulo, cabe explicar que a Zona Oeste da cidade é composta pelas subprefeituras da Lapa, de Pinheiros e do Butantã. Segundo o IBGE, vivem ali cerca de 900 mil pessoas, cuja renda média é de R$ 2.174,55. Fica na região o maior campus da USP, por exemplo. Contradição em forma de metrópole, mais até que o Rio do Ocupa MinC, São Paulo tem dessas coisas. A tal comunidade desocupada com truculência pela PM do tucano Alckmin a pedido do petista Haddad se chama Cidade Educandário e fica às margens da Rodovia Raposo Tavares. De educandário, aquela porção de Brasil, localizada no bairro Jardim Raposo Tavares, não tem nada – bem como, de jardim, a região nada tem. Na Zona Oeste paulistana, convivem uma massa pobre e desafortunada e uma minoria rica e de vida sobeja. Suplicy, um homem digno de 75 anos de idade, deitou-se no chão pra tentar conter o furor da expulsão dos sem-nada e acabou carregado por braços e pernas pelos PMs do batalhão do Alckmin. Levado numa viatura pro 75° Distrito Policial, prestou esclarecimentos e foi liberado após três horas de constrangimento. “Se fazem isso com um ex-senador da República, imagine o que sofre a população”, ele escreveria depois um desabafo numa rede social. Seu crime, segundo o capitão Eliel Pontirolli, “desobediência e obstrução à Justiça”; seu objetivo, segundo ele próprio, evitar um confronto ainda maior, que ferisse aquela gente. A duas semanas do início das Olimpíadas, faltou um Suplicy no Rio, na mesma manhã, no desbaratamento do Ocupa MinC pela Polícia Federal de Michel Temer. Talvez ele conseguisse muito pouco também. Provavelmente, nada. Mas o simbolismo da sua presença e de um gesto dele, certamente, acrescentaria algo bom ao que se passou. Uma das manifestações mais bonitas da democracia desde o fim da ditadura militar – uma outra, eu acho, foi a tomada das escolas da rede pública pelos estudantes, e ambas tão mal contadas pela imprensa dominante -, o Ocupa MinC reuniu jovens e artistas por 70 dias nos pilotis do Palácio Gustavo Capanema, no centro carioca. Nesse período se apresentaram ali, ou apenas discursaram, estrelas da cultura brasileira como Caetano Veloso, Erasmo Carlos, Lenine, Frejat, Arnaldo Antunes, Jards Macalé, Marieta Severo, tantos outros. A ocupação nasceu de um protesto contra o fim do Ministério da Cultura. Depois, quando o presidente interino, pressionado, recuou da decisão, virou um grande evento permanente pelo “Fora Temer” e pela volta da Dilma. A esta altura do campeonato nacional do ódio e da desesperança, como também foi impossível conter a expulsão dos pobres da Zona Oeste paulistana, é muito difícil acreditar na possibilidade de uma coisa ou de outra. Faltam Suplicys pra isso. Seriam necessários muitos mais.  Publicado originalmente no Blog do Marceu Vieira. Aceite ser manipulado: tenha ódio de política

Escola sem partido?

por Frei Betto Nada mais tendencioso do que o Movimento Escola Sem Partido. Basta dizer que um de seus propagadores é o ator de filmes pornô Alexandre Frota. O movimento acusa as escolas de abrir espaços a professores esquerdistas que doutrinam ideologicamente os alunos. Uma das falácias da direita é professar a ideologia de que ela não tem ideologia. E a de seus opositores deve ser rechaçada. O que é ideologia? É o óculos que temos atrás dos olhos. Ao encarar a realidade, não vejo meus próprios óculos, mas são eles que me permitem enxergá-la. A ideologia é esse conjunto de ideias incutidas em nossa cabeça e que fundamentam nossos valores e motivam nossas atitudes. Essas ideias não caem do céu. Derivam do contexto social e histórico no qual se vive. Esse contexto é forjado por tradições, valores familiares, princípios religiosos, meios de comunicação e cultura vigente. Não há ninguém sem ideologia. Há quem se julgue como tal, assim como Eduardo Cunha se considera acima de qualquer suspeita. Como ninguém é juiz de si mesmo, até a minha avó de 102 anos tem ideologia. Basta perguntar-lhe o que acha da vida, da globalização, dos escravos, dos homossexuais etc. A resposta será a ideologia que rege sua visão de mundo. A proposta da Escola Sem Partido é impedir que os professores eduquem seus alunos com consciência crítica. É trocar Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Rubem Alves por Cesare Lombroso e Ugo Cerletto. Ninguém defende uma escola partidária na qual, por exemplo, todos os professores comprovem ser simpatizantes ou filiados ao PT. Mesmo nessa hipótese haveria pluralidade, já que o PT é um saco de tendências ideológicas que reúne ardorosos defensores do agronegócio e esquerdistas que propõem a estatização de todas as instituições da sociedade. Não faz sentido a escola se aliar a um partido político. Muito menos fingir que não existe disputa partidária, um dos pilares da democracia. Em outubro, teremos eleições municipais. Deve a escola ignorá-las ou convidar representantes e candidatos de diferentes partidos para debater com os alunos? O que é mais educativo? Formar jovens alheios à política ou comprometidos com as lutas sociais por um mundo melhor? Na verdade, muitos “sem partido” são partidários de ensinar que nascemos todos de Adão e Eva; homossexualidade é doença e pecado (e tem cura!); identidades de gênero é teoria promíscua; e o capitalismo é o melhor dos mundos. Enfim, é a velha artimanha da direita: já que não convém mudar a realidade, pode-se acobertá-la com palavras. E que não se saiba que desigualdade social decorre da opressão sistêmica; a riqueza, do empobrecimento alheio; a homofobia do machismo exacerbado; a leitura fundamentalista da Bíblia da miopia que lê o texto fora do contexto. Recomenda-se aos professores de português e literatura da Escola Sem Partido omitirem que Adolfo Caminha publicou, em 1985, no Brasil, “Bom Crioulo”, o primeiro romance gay da história da literatura ocidental; proibirem a leitura dos contos “D. Benedita” e “Pílades e Orestes”, de Machado de Assis; e evitar qualquer debate sobre os personagens de “Dom Casmurro”, pois alguns alunos podem deduzir que Bentinho estava mais apaixonado por Escobar do que por Capitu. Publicado originalmente no Correio da Cidadania Escola sem Partido é Escola sem Conhecimento  

República Federativa do Dedo-Durismo

por Fernando do Valle O festival de grampos, delações, alcaguetagem explícita e traições não cessa e afundou Brasília em intricada rede de intrigas nos últimos meses. As paredes dos gabinetes do poder têm ouvidos. A sobrevivência é dada na medida em que o indiciado esteja disposto a entregar sócios e correligionários, “tem dedo de seta adoidado” como já avisava em samba o PHD da malandragem Bezerra da Silva. Entre os criminosos sem terno e advogado caro, o caguete não é respeitado, na hora em que a casa cai e vai em cana o responsa fica de bico calado e ganha pontos entre os comparsas. Em Brasília, essa regra não funciona entre os bandidos do colarinho branco no centro da República Federativa do Dedo-Durismo. “Dedo-duro”, por Bezerra da Silva: Preso há um ano, o empreiteiro Marcelo Odebrecht relutou em aceitar acordo de delação premiada. Em setembro do ano passado, Odebrecht afirmou na CPI da Petrobras na Câmara dos Deputados  que havia valores morais dos quais não abria mão: “quando lá em casa, as minhas meninas tinham discussão, tinham uma briga, eu dizia: ‘olha, quem fez isso?’ Eu diria o seguinte: eu talvez brigasse mais com quem dedurou do que com aquele que fez o fato”. Em março, uma lista com cerca de 300 políticos que recebiam dinheiro da construtora Odebrecht foi encontrada nos escritórios da empresa e a pressão venceu os tais valores morais de Marcelo Odebrecht e sua delação deve esquentar ainda mais o já quente clima político em Brasília. Não restam dúvidas de que as delações foram peça-chave para o esclarecimento de esquemas de corrupção que envolvem políticos, empresários e funcionários públicos, mas nenhum delator entregou parceiros de crime por incontrolável sentimento republicano ou motivado pelo desejo de sanear as práticas políticas, o interesse dos delatores é pelo abrandamento de suas penas ou até mesmo pelo perdão judicial, ou seja, para livrarem seus próprios pescoços. O salve-se quem puder escancarou práticas inconfessáveis do cotidiano político até então escondidas atrás de sete véus gerando revolta e desalento aos eleitores. Foi o caso do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado que gravou áudios reveladores com parte da cúpula do PMDB. Ficamos sabendo por exemplo no final de maio a real motivação do PMDB pelo golpeachment, o ex-ministro do Planejamento Romero Jucá confessou  que a destituição da presidenta Dilma selaria um pacto para “estancar a sangria” e salvaria políticos do PMDB e PSDB de prestarem contas perante à Justiça. Além de Jucá, Machado gravou conversas com ex-presidente José Sarney  e o presidente do Senado Renan Calheiros que revelou sua aflição com as delações e chegou a afirmar que são necessárias mudanças no modo que as delações premiadas têm sido feitas, segundo Calheiros,  “a sociedade compreenderia que a delação premiada [com o réu preso] é uma tortura”. Ele também contou que Aécio Neves, candidato derrotado à presidência em 2014, “está com medo”. Aécio foi delatado inúmeras vezes por investigados na Operação Lava Jato. Sérgio Machado foi indicado pelo PMDB para o comando da Transpetro, empresa subsidiária da Petrobras, pelo PMDB e relatou à Lava Jato pagamentos de propinas de R$ 155 milhões para 25 políticos de 7 legendas. O presidente interino Michel Temer foi acusado por Machado de ter pedido dinheiro para a campanha à Prefeitura de São Paulo do aliado político Gabriel Chalita em 2012. Ainda segundo o ex-presidente da Transpetro, o repasse foi feito pela construtora Queiroz Galvão ao PMDB e Temer sabia que a operação era ilícita.   A delação premiada Usada em várias partes do mundo como ferramenta para desmantelar quadrilhas criminosas, os resultados das delações premiadas têm sido usados como moeda de troca no jogo político brasileiro. Se o vazamento do grampo escancara práticas criminosas do adversário, o político do outro lado do muro é automaticamente culpado, se desvenda informações que prejudicam o próprio grupo político, a gravação é considerada ilegal e caluniosa. A cobertura da grande imprensa, cada vez mais partidarizada, também trabalha com dois pesos e duas medidas com enorme desfaçatez. Em março, a divulgação dos grampos das conversas de Lula com Dilma, Jaques Wagner e Eduardo Paes, mesmo sem grandes revelações nos diálogos, esquentou os ânimos dos partidários do impeachment da presidenta Dilma no Congresso. Leia texto “Os grampos de Sérgio Moro incendeiam o país”,  publicado em março   No passado, a delação chegou a ser usada para que os súditos denunciassem os crimes contra a Coroa Portuguesa e era prevista nas Ordenações Filipinas, base do ordenamento jurídico português que vigorou também em suas colônias entre 1603 e 1867. Historicamente, o mais conhecido delator foi Joaquim Silvério dos Reis que entregou em 1789 os companheiros confidentes, entre eles Tiradentes, em troca de liberdade e perdão de dívidas. Em 1990, a lei 8072 que trata de crimes hediondos como extorsão, estupro e corrupção instituiu a delação. Mais tarde, outras leis, como a 9613/98, que trata sobre lavagem de dinheiro, e a 9877/99, de proteção de testemunhas, passaram a usar o expediente. Em 2013, a lei 12850 detalhou o uso da delação na investigação de organizações criminosas. A lei de 2013 permitiu o avanço das investigações sobre o enorme esquema de corrupção na Petrobras. O início da operação Lava Jato ocorreu por acaso . Em julho de 2013, o delegado da Polícia Federal de Curitiba, Márcio Adriano Anselmo, investigava as operações do doleiro Carlos Habib Chater que possuía negócios com o ex-deputado de Londrina, José Janene (PP-PR), morto em 2010. Através de Chater, a PF chegou em outro doleiro, Raúl Henrique Srour, condenado na Operação Banestado em 2005, e outro doleiro já conhecido da polícia, Alberto Youssef, especializado em lavagem de dinheiro, que em acordo de colaboração com a justiça, havia se livrado de uma pena maior na Operação Banestado em 2004. Anselmo descobriu ali um esquema de empresas fantasmas e tenebrosas transações que foram o embrião da Operação Lava Jato, que pode ser considerada a maior investigação sobre corrupção já conduzida no Brasil. O Ministério Público Federal estima que R$ 2,1 bilhões foram desviados dos cofres da Petrobras. Através

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