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A democracia em risco

Democracia – Não nos iludamos de novo: nossa frágil democracia continua em risco. Recordo do governo João Goulart e suas propostas de reformas de base, ao início da década de 1960. As Ligas Camponeses levantavam os nordestinos. Os sindicatos defendiam com ardor os direitos adquiridos no período Vargas. A UNE era temida por seu poder de mobilização da juventude. Era óbvia a inquietação da elite brasileira. Passou a conspirar articulada no IBAD, no IPES e outras organizações, até eclodir nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Contudo, o Partido Comunista Brasileiro tranquilizava os que sentiam cheiro de quartelada – acreditava-se que Jango se apoiava num esquema militar nacionalista. E, no entanto, em março de 1964 veio o golpe militar. Jango foi derrubado, a Constituição, rasgada; as instituições democráticas, silenciadas; e Castelo Branco empossado sem que os golpistas disparassem um único tiro. Onde andavam “as massas” comprometidas com a defesa da democracia? Conheço bem o estamento militar. Sou de família castrense pelo lado paterno. Bisavô almirante, avô coronel, dois tios generais e pai juiz do tribunal militar (felizmente se aposentou à raiz do golpe). Essa gente vive em um mundo à parte. Sai de casa, mas não da caserna. Frequenta os mesmos clubes (militares), os mesmos restaurantes, as mesmas igrejas. Muitos se julgam superiores aos civis, embora nada produzam. Têm por paradigma as Forças Armadas nos EUA e, por ideologia, um ferrenho anticomunismo. Por isso, não respeitam o limite da Constituição, que lhes atribui a responsabilidade de defender a pátria de inimigos externos. Preocupam-se mais com os “inimigos internos”, os comunistas. Embora a União Soviética tenha se desintegrado; o Muro de Berlim, desabado; a China, capitalizada; tudo que soa como pensamento crítico é suspeito de comunismo. Isso porque nas fileiras militares reina a mais despótica disciplina, não se admite senso crítico, e a autoridade encarna a verdade. O Brasil cometeu o erro de não apurar os crimes da ditadura militar e punir com rigor os culpados de torturas, sequestros, desaparecimentos, assassinatos e atentados terroristas, ao contrário do que fizeram nossos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile. Assistam ao filme “Argentina,1985”, estrelado por Ricardo Darín e dirigido por Santiago Mitre. Ali está o que deveríamos ter feito. O resultado dessa grave omissão, carimbada de “anistia recíproca”, é essa impunidade e imunidade que desaguou no deletério governo Bolsonaro. Não concordo com a opinião de que só nos últimos anos a direita brasileira “saiu do armário”. Sem regredir ao período colonial, com mais de três séculos de escravatura e a dizimação de indígenas e da população paraguaia numa guerra injusta, há que recordar a ditadura de Vargas, o Estado Novo, o Integralismo, a TFP e o golpe de 1964. O altissonante silêncio dos militares perante os atos terroristas perpetrados por golpistas a 8 de janeiro deve nos fazer refletir. Cumplicidade não se consuma apenas pela ação; também por omissão. Mas não faltaram ações, como os acampamentos acobertados pelos comandos militares em torno dos quartéis e a atitude do coronel da guarda presidencial que abriu as portas do Planalto aos vândalos e ainda recriminou os policiais militares que pretendiam contê-los. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, reza o aforismo que escuto desde a infância. Nós, defensores da democracia, não podemos baixar a guarda. O bolsonarismo disseminou uma cultura necrófila inflada de ódio que não dará trégua à democracia e ao governo Lula. Nossa reação não deve ser responder com as mesmas moedas ou resguardar-nos no medo. Cabe-nos a tarefa de fortalecer a democracia, em especial os movimentos populares e sindicais, as pautas identitárias, a defesa da Constituição e das instituições, impedindo que as viúvas da ditadura tentem ressuscitá-la. O passado ainda não passou. A memória jamais haverá de sepultá-lo. Só quem pode fazê-lo é a Justiça. Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota Breve crítica da democracia louvada Sobre a democracia e o voto Não há meia democracia Frei Betto: “É uma ilusão e um engano achar que a ditadura foi melhor”

Centenário de Zé Kéti

“Podem me prender / Podem me bater Podem, até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião …Se não tem água, eu furo um poço Se não tem carne, eu compro um osso” (Zé Kéti em Opinião)   Zé Kéti é um dos mais autênticos representantes de uma genealogia de sambistas que deram à música popular brasileira, pela sublime sofisticação poética e melódica (aliada à sua representatividade social), o mais radiante destaque no cenário mundial. José Flores de Jesus nasceu em 16 de setembro de 1921, no suburbano bairro de Inhaúma, Rio de Janeiro, cercado pelo complexo do Alemão, Del Castilho, Cachambi, Pilares, embalado pelo encantamento dos seus versos de sambas e choros de uma família musical por excelência. Filho de Josué Vale de Jesus, cavaquinista e marinheiro que participou com o Almirante Negro, João Cândido, da histórica Revolta da Chibata e neto de João Dionísio de Santana, grande flautista e pianista, tinha a casa frequentemente aberta às rodas de choros, com as ilustríssimas presenças de músicos como Cândido das Neves e do mestre Pixinguinha. Como se nota, desde muito cedo, Zé Kéti desperta para a dura realidade social dos subúrbios e favelas, da luta de classe e da segregação racial e violências, que formará uma consciência política e capacidade de indignação que nutrirá a sua vida repleta de composições e lutas libertárias. Menino muito tímido, com a morte do pai em 1924, foi criado pelo avô e pela mãe, Dona Leonor, doméstica que costumava levá-lo para as festas populares e bailes de gafieira. O garoto de tão pacato, logo virou o apelido de Zé Quieto, depois modificado para Zé Quéti e no definitivo apodo artístico de Zé Kéti: um príncipe pelo refinamento, engajamento e requinte nas composições. Em 1934, teve seu primeiro contato com a chamada música do morro quando foi levado pelo sambista e compositor da Estação Primeira de Mangueira Geraldo Cunha para assistir aos ensaios da escola de samba, agremiação a qual sempre manteve uma forte presença e relação de afinidade. Passou a residir em Bangu, Piedade, Maria Clara e, a partir de 1939, em Bento Ribeiro, onde teve o encontro com a sua Escola de Samba Portela, integrando a Ala de Compositores, que logo se tornaria a fonte, depositária e impulsionadora de um movimento conceitual que ajudou a romper certo romantismo e ingenuidade do samba para recolocá-lo nos exatos parâmetros da realidade  social  e cultural brasileira. Passa a frequentar o Café Nice, reduto de grandes músicos, onde estabeleceu uma série de contatos que seriam fundamentais para sua carreira.  Gravou pela primeira vez em 1946, mas o sucesso veio somente em 1952 com “Amar é bom” e “Amor Passageiro”, na voz de Linda Batista. No início dos anos 1950, compõe um dos seus maiores sucessos: “A voz do morro”, gravada em 1955 pelo cantor Jorge Goulart, com arranjo magnífico de Radamés Gnattali. No mesmo ano, a composição é tema do filme Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, considerado um dos marcos inaugurais do moderno cinema brasileiro e precursor do cinema novo. Além da música tema, outras canções compõem a maravilhosa trilha sonora como “Leviana”, “Rio, Zona Norte”, “Malvadeza Durão” e “Foi Ela”. Onesio Meirelles, grande escritor e sambista, conta que conheceu Zé Kéti em 1962, durante a gravação do filme Gimba, Presidente dos Valentes, no Morro da Mangueira, filme com Milton Moraes, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, com roteiro de Flávio Rangel e Gianfrancesco Guarnieri. Zé Kéti além de compor a música tema “Gimba chegou”, atua cantando “Feio, não é bonito” ao som do violão de Baden Powell e gaita de Omar Izar. Também participou de outras produções cinematográficas como O Boca de Ouro (1962), de Nelson Pereira dos Santos; A Falecida (1965), de Leon Hirszman; e A Grande Cidade (1966), de Carlos Diegues. Em 1963, surge no Rio de Janeiro o restaurante Zicartola, reduto de samba, espaço de encontro de músicos e artistas, inaugurado por Cartola e sua esposa Zica. Das conversas entre os seus ilustres frequentadores, surge a ideia de realização de uma apresentação musical. O resultado é o espetáculo musical Opinião, de autoria de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, nomeada a partir do samba homônimo de Zé Kéti. Com direção de Augusto Boal, estreia em 1964 com estrondoso sucesso no Teatro de Arena, em Copacabana, com participação de João do Vale, Ruy Guerra, Carlos Lyra, Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Nara Leão (posteriormente substituída por Maria Bethânia). Nesse espetáculo, marco na história da música popular brasileira, Zé Kéti lança “Diz que fui por aí”, “Acender as velas” e “Opinião”. Embalado pelo sucesso da peça e valendo-se dos contatos que estabelece no restaurante do Zicartola, Zé Kéti organiza a coletânea A Voz do Morro, reunindo os melhores intérpretes e sambas do morro, com a participação Nescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho e Oscar Bigode (da Portela), Zé Cruz e Nelson Sargento (da Mangueira), Élton Medeiros (da Aprendizes de Lucas) e Paulinho da Viola. Futuramente, gravaria também o disco Roda de Samba, lançado em 1965, acrescido da participação de Nelson Sargento. Zé Kéti sempre teve uma importante ligação com o cinema novo, bossa nova, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE) e outros movimentos políticos ligados às lutas democráticas. Com parceria de Carlos Lyra compôs o “Samba da Legalidade” pela posse do presidente da República, João Goulart, ameaçada de um golpe político-militar, gravado por Nara Leão somente em 1965. Zé Keti morreu em 14 de novembro de 1999, aos 78 anos, vítima de parada cardíaca. Cerca de 150 pessoas compareceram ao velório do grande compositor na capela Santa de Cássia, no cemitério de Inhaúma. Durante o velório o seu esquife foi coberto com a bandeira azul e branca da sua querida Escola de Samba Portela. Acompanharam o enterro amigos e compositores da velha-guarda, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, os compositores Zé Renato, Jards Macalé, Nelson Sargento, Walter Alfaiate e Noca da Portela. Foi sepultado ao som da composição “A Voz do Morro”: “Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo sim senhor…”. 10 músicas contra a ditadura militar (2)

Povos originários: segue a batalha contra o marco temporal

#MarcoTemporalNão – Mais de seis mil indígenas sentados em frente ao telão em Brasília esperavam por um fechamento da questão do marco temporal, a proposta esdrúxula de definir o ano de 1988 como ano “um” da ocupação indígena. Isso significa que, aprovada essa ideia, só poderão ser demarcadas as terras que os povos originários estivessem ocupando nesse ano específico. Ora, não precisa ser muito inteligente para saber que o Brasil inteiro é território indígena. Eles aqui estavam quando Cabral chegou e aqui seguem resistindo depois de mais de 500 anos de massacres e tentativas de extermínio. Muitas etnias, ao longo dos séculos, precisaram mover-se no território, justamente para escapar da morte. Então, não faz qualquer sentido definir uma data do século XX para estabelecer direitos. Na verdade, o sentido que parece não existir, existe, e é poderoso: simplesmente o desejo de ampliar a fronteira do agronegócio e da mineração num país que virou exportador de matérias primas. As terras indígenas, que perfazem 12% do território, interessam por sua riqueza, biodiversidade e fertilidade. Por isso, a turma produtora de “commodities” quer botar a mão nelas. Para essa gente, os povos originários são um atrapalho e precisam ser incorporados ao “mercado de trabalho”, indo disputar espaço nas cidades. Para eles, pouco importam as pesquisas que comprovam serem as terras indígenas as mais preservadas do país, assim como não importa saber de sua cultura ou modo de vida que não encontram equivalência no modo capitalista de produção. O trabalho e a vida numa comunidade originária não existem para auferir lucro ou para exploração. Faz parte da cosmovivência de cada etnia. É outra forma de viver e agir no mundo. “Ah, mas tem indígenas que vendem madeira. Tem indígenas que plantam em escala”… Sim, tem. Mas é uma parcela ínfima que, muitas vezes sem saída, acaba se incorporando ao modo de produção capitalista. Afinal, as tentações são muitas, assim como a fome e o perverso tutelo. Ainda assim, isso não se aplica à maioria. O governo Bolsonaro, por exemplo, é pródigo em dar visibilidade a uma determinada comunidade que lucra com a agricultura. Caso absolutamente isolado. A regra geral são comunidades que se organizam conforme seu costume ancestral e, mesmo que incorporadas ao mundo, conseguem seguir suas tradições de cultivo, arte, harmonia e modo de organizar a vida. E é essa maioria que resiste na sua terra original, ou luta para ver demarcado seu território. A tese do marco temporal, se aprovada, pode reverter demarcações já definidas e inviabilizar outras tantas que estão em andamento, impedindo que as etnias possam pleitear viver no seu espaço tradicional. A demonstração de organização dos povos originários nesses dias de luta em Brasília tem sido extraordinária. Um acampamento de mais de seis mil pessoas no imenso vazio urbano, que são as esplanadas da capital, é uma imagem para ficar na memória por décadas. São mais de 170 etnias, com suas cores, seus cantos, suas danças, suas cerimônias tradicionais, incansáveis, imparáveis. Elas estão nessa batalha desde o primeiro dia de governo Bolsonaro, já que foram os primeiros a serem atacados com a destruição da Funai e com uma série de ataques contra sua forma de vida. Por isso, desde janeiro de 2019 vêm travando incontáveis peleias, expressas em marchas, acampamentos e atos públicos. Agora, nessa semana de espera pelo resultado do julgamento da ação relativa à comunidade Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-LaKlãnõ (SC), que foi proposta pelo governo de Santa Catarina, as comunidades se organizaram e foram à capital protestar e esperar pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Estão lá há dias, cozinhados por um julgamento que se faz aos pedaços. Um voto é dado num dia, outro, meses depois, tudo muito bem articulado para cansar e desanimar. E tudo isso em meio a um turbilhão de notícias que aludem a um possível golpe das polícias militares contra o STF, cujos ministros são acusados pelos apoiadores do governo de “ditadores, terroristas e petistas”. São dias de muita pressão, com a mídia de massa ignorando o acampamento indígena e dando destaque para os anúncios da quartelada que, segundo prega o presidente, trará a “liberdade” de volta. No que diz respeito ao marco temporal, o presidente Bolsonaro tem se manifestado veementemente dizendo que se o STF for contra, estará causando o “maior caos” no país. O tabuleiro da política está se mexendo, muitas vezes sem que saibamos realmente o que está causando o movimento das peças ou os acordos que se fazem nos bastidores. O STF jogou para os próximos dias a continuidade do julgamento, causando ainda mais descontentamento, tanto para as comunidades que querem ver o caso resolvido, como para o governo, que também quer se livrar da multidão indígena em Brasília antes do dia sete de setembro, quando está marcado o dia do ataque ao STF. É assim que uma decisão sobre o marco temporal, às portas do dia da “independência”, pode colocar lenha na caldeira, tanto para um lado, como para outro. No que diz respeito aos povos originários, a luta continua, o acampamento continua, a batalha pela vida continua. Como eles mesmos dizem, os governos passam, e eles têm sobrevivido século após século. Não será mais um adiamento que vai desanimar. Eles voltam a cantar, dançar e afiar as flechas. Pelos direitos dos povos originários Mulheres indígenas lutam pelo futuro em Brasília Terras indígenas são estratégicas contra mudanças climáticas, defende deputada Joenia Wapichana Ministério da Agricultura regulará demarcação de terras indígenas Povos indígenas reagem aos ataques do novo governo Povos indígenas em luta contra as mudanças na Constituição  

Nelson Rodrigues: o reacionário da boca pra fora

Nos textos que publicava na imprensa durante a ditadura, eram impagáveis as suas caricaturas contra ídolos da esquerda brasileira, até o dia em que prenderam o seu filho Nelsinho como terrorista. Nelson Rodrigues, conhecido como “o dramaturgo carioca”, é o recifense que os cariocas querem naturalizar. Não digo isso por gosto da frase ou provocação. A justificativa para o deslocamento da identidade é o seu teatro, que retrataria a sociedade do Rio de Janeiro. Acredito que isso geraria uma boa discussão na Bodega de Véio, no Recife. Mas vamos a um ou dois argumentos. O recifense Nelson Rodrigues, desde o nascimento em 23 de agosto de 1912, uma sexta-feira, atravessou muitas vidas, rostos e as mais diversas contradições. Entre muitas, falam sempre de Nelson como um escritor do Rio pelos temas e pela formação. De passagem, olhemos a referência mais ressaltada de Nelson Rodrigues: a obra teatral. Ora, o seu teatro exigiria um estudo além da frase exterior no palco, além da paisagem, do “óbvio ululante”, como ele diria. Penso que o seu teatro vem de certo e tenebroso Pernambuco. Aqueles delírios patológicos dos personagens, aqueles conflitos profundos que sobem à cena, fazem parte da repressão sexual da casa-grande de Pernambuco. Das sinhazinhas e senhores escravocratas vêm aqueles incestos, paixões impossíveis dentro do lar mais suburbano. Aqueles devaneios à margem da sala de visitas não são bem a escolha de um escritor carioca à procura da originalidade. Vêm antes de uma herança espiritual de senhores de engenho que se espraiou pela gente do Recife. De um ponto de vista factual e do ser, a opressão dos engenhos acompanhou a família pernambucana de Nelson Rodrigues até o Rio de Janeiro, como ele próprio confessou numa entrevista ao psicanalista e escritor Hélio Pellegrino: “Eu tenho uma experiência, aliás, já citei isso. A minha primeira experiência erótica é anterior à minha memória. Eu não me lembro de nada e este fato só foi referido muito posteriormente. Um dia apareceu lá em casa uma santa senhora, vizinha, mãe de uma menina de uns quatro anos, para dizer que qualquer filho de minha mãe poderia entrar na casa dela, menos eu. O negócio teve um tal toque de inocência e de pureza que eu não me lembro de nada. De vez em quando faço um esforço, começo a escavar na memória e não tenho a menor noção do que eu teria feito para justificar a ira da santa senhora. O meu ambiente familiar era, sob este aspecto erótico, de um grande rigor. Eu disse o meu primeiro palavrão aos doze anos de idade”. Isso posto, mal posto, já se vê, porque somos breves, passemos a seu reacionarismo. Depois do golpe de 64, em muitas oportunidades defendeu amigos comunistas, inclusive João Saldanha. Mas nos textos que publicava na imprensa durante a ditadura, eram impagáveis as suas caricaturas contra ídolos da esquerda brasileira. Sobre Mao Tsé-Tung, ele escreveu que o grande chinês não poderia nadar, porque tinha uma barriga insubmersível. Sobre Dom Hélder Câmara, dizia que o extraordinário arcebispo se defendia na batina, mas queria mesmo era vê-lo na praia de Ipanema com short de bolinhas. Sobre Antônio Callado, repetia ao infinito que o romancista e jornalista era o único inglês do mundo real. E haja gozações contra os estudantes que militavam contra a ditadura. Mas isso foi até o dia em que prenderam o seu filho, Nelsinho, como militante que foi torturado, o que era hábito dos militares na época. Mais adiante, o genial teatrólogo e cronista se integrou à luta pela Anistia. Na obra, o teatro Nelson Rodrigues, o mais importante da sua permanência, destrói o reacionarismo declarado pelo autor. Nada nele fala aos valores proclamados pela santa família brasileira, moral, costumes, rigor da religião, tão ao gosto da direita nacional. Pelo contrário, os incestos e traumas familiares pululam nas tragédias. Em “Beijo no Asfalto”, um homem beija a boca de outro e nisso se faz o maior escândalo na imprensa marrom retratada na peça. Mas prefiro ir agora às sua crônicas revolucionárias sobre o futebol brasileiro. Retiro alguns trechos da homenagem a ele no Dicionário Amoroso do Recife. Para mim, Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor e excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, mas sem as quedas demagógicas de baixar o nível para falar aos trabalhadores, que nem servem ao povo nem à literatura, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva. Se pensam que me engano, olhem e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson Rodrigues escreveu sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do Mundo de 1958. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a sensibilidade, a genial arte de um escritor, descobriu e revelou um fenômeno: “Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo como uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável:

O Brasil em tempos de Olimpíadas e chantagens

Olimpíadas – Os dias têm sido assim. De dia, a CPI da Covid no Congresso Nacional, um teatro de emoções simuladas, mentiras e atuações dramáticas que parecem ir para lugar nenhum. De noite, as Olimpíadas, onde atletas mal pagos, sem patrocínio e sem espaço para treinamento disputam os esportes individuais, alguns até arrebatando medalhas, o que faz a mídia entreguista vibrar e enaltecer o “esforço” pessoal. Correndo por fora, temos o presidente da nação, criando a cada minuto um novo factoide, ameaçando e chantageando o país, prometendo um golpe, sem que nenhuma instituição do chamado “mundo democrático” faça qualquer coisa. São dias fatigantes e desesperadores. Não se pode dizer que não há reação. Há. Mas ela é pequena e pontual. Nesse momento, se expressa apenas nas particularidades, em lutas corporativas, onde a perda de direitos caminha a galope. Os trabalhadores tentam entabular lutas, mas têm sido patrolados sem dó. E, quanto mais perdem, mais apáticos ficam. Porque não enxergam saídas. No mundo das redes, segue a mesma tática de fazer graça com as chamadas “maluquices” do presidente. E enquanto as pessoas ficam inventando “memes” e compartilhando postagens, no mundo da vida, os gerentes do governo vão passando o rodo. Em tudo. Já queimaram a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal. Já queimaram museu e cinemateca, na tentativa de destruir a memória, incentivam a morte dos lutadores sociais, aprovam projetos que permitem o roubo de terras de indígenas, quilombolas e ribeirinhos, já passaram as reformas mais importantes para o capital, faltando agora a reforma administrativa que mergulhará o serviço público em mais um amplo processo de desmantelamento. A mais nova investida presidencial está na proposta de tirar poderes do Tribunal Superior Eleitoral durante o processo de eleições, que ele quer que seja com o voto impresso, para garantir o curral eleitoral. E o factoide do dia é mais uma ameaça ao ministro do Superior Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, dizendo que “seu dia vai chegar”. Tudo noticiado pelos jornais e redes de TV como coisas normais, sem questionamento. Enquanto isso, a  Covid 19 segue cobrando mais de mil mortes por dia ao mesmo tempo em que a vacinação segue a passos de tartaruga. Isso que a variante Delta ainda nem chegou. Vivemos a trágica realidade na qual todos os dias o presidente do país anuncia que vai dar um golpe, sem que absolutamente nada aconteça. Tudo segue “normal”, ainda que o desemprego mantenha o recorde de 14,7%, com quase 15 milhões de desempregados, mais os seis milhões de desalentados, que nem buscam mais por emprego. Ou seja, 21 milhões de pessoas sem renda. O gás está em 100 reais e a gasolina logo chegará aos 10 reais, sem protestos. Os salários dos trabalhadores estão congelados enquanto o grupo de amigos que está no poder  – incluindo aí uma leva de militares – tem os salários triplicados. Não bastasse isso, conforme denúncia da revista Fórum, 100 generais vinculados ao governo receberam recentemente a patente de Marechal, extinta desde 1967, que volta à vida para privilegiar alguns. Uma farra. Os bolsonaristas gritam aos quatro ventos que a corrupção no Brasil acabou, mesmo com a CPI da Covid a revelar todos os dias casos escabrosos relacionados ao uso da pandemia para ganhar dinheiro. O presidente impôs 100 anos de silêncio sobre a presença de seus filhos  – que são vereador, deputado federal e senador – no Palácio do Planalto e também colocou sob sigilo seus gastos no cartão corporativo. Tudo que diz respeito a ele é segredo, até seu cartão de vacina. Ele certamente se vacinou, mas quer manter a fachada de “não-vacinado macho” para a sua claque que obviamente se mantém firme contra a vacinação. E assim vai indo a nave Brasil, que ao contrário do que todo mundo diz, não está desgovernada. Ela tem direção certa. Conforme o prometido em campanha, o presidente segue destruindo tudo o que estava aí, servindo ao grande capital, fazendo as reformas esperadas pelos empresários nacionais e internacionais, atendendo ao latifúndio e às mineradoras. Importante que se diga que não está sozinho nessa empreitada. Com ele está a maioria esmagadora dos deputados e senadores que conformam o Congresso Nacional  bem como os ministros do STF. Os três poderes caminham juntos em ordem unida e devem ser responsabilizados pelos danos. Essa não é jornada de um psicopata. É um plano bem urdido da classe dominante, escolhendo a rota mais perversa que pode encontrar o modo capitalista de produção para atender ao seu insaciável apetite. Resta saber até quando vamos suportar… Emoções olímpicas  

Glenn Greenwald, o norte-americano brasileiríssimo

Na homenagem ao jornalista Glenn Greenwald e equipe do The Intercept Brasil realizada na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), tive o prazer de conversar com ele e fazer o seguinte comentário, que, aliás, agradeceu imensamente. Falei que  governo norte-americano sempre mandou para o Brasil os maiores canalhas e golpistas que fizeram as maiores sabotagens contra o povo brasileiro nos últimos 70 anos. Afirmei que Greenwald era o único americano que estava trabalhando pelo Brasil e desmascarando as atrocidades da quadrilha dos golpistas através das denúncias das conversas gravadas entre o juiz e o promotor do caso ‘Vaza Jato’. Disse-lhe que umas das primeiras sabotagens foi quando os EUA enviaram o publicitário Ivan Hasslocher que fundou a agência Promotion, em 1959, com o objetivo de iniciar o golpe nas eleições de 1962. Com ajuda de bancos internacionais,  gastou cinco milhões de dólares para eleger, deputados estaduais, federais, senadores e governadores. Era o início para começar a derrubar o presidente João Goulart em 1964. Outro elemento foi o embaixador Lincoln Gordon, um dos articuladores do golpe gastando também cinco milhões de dólares,  com ajuda do coronel Vernon Walters, que depois foi vice-diretor da CIA. Walters foi o intermediário do presidente Ronald Reagan para entregar 50 milhões de dólares ao papa João Paulo II para ajudar na desestabilização do Leste Europeu e na criação do sindicato Solidariedade na Polônia e acabar com o comunismo na União Soviética. Walters e o papa polonês tiveram encontros semestralmente entre 1981 a 88. A CIA mandava relatórios para o Vaticano sobre os padres latinos ligados ao movimento da Teologia da Libertação. Outra figura sinistra apareceu quando o ex-governador de Minas Gerais, o banqueiro Magalhães Pinto, convidou o agente da FBI Dan Mitrione para ensinar torturas aos soldados da PM para combater os movimentos de esquerda no estado mineiro. Nas suas aulas práticas, ele utilizava presos, mendigos e indigentes. Dan Mitrione teve nome de rua em Belo Horizonte, mas depois o nome da rua foi rebatizada em homenagem à memória do estudante  José Carlos da Mata Machado, da Ação Popular, que foi assassinado aos 27 anos no DOI-Codi, em Recife, na ditadura militar, em 1973. Mitrione ensinou torturas nos países latinos aliados da Operação Condor.  Teve a sua maldita alma encomendada pelos guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional  (Tupamaros) do Uruguai, em 10 de agosto de 1970. Até o nosso cinema teve um agente que trabalhou durante 50 anos para destruir as produções de filmes no Brasil, desde a Companhia Vera Cruz, em São Bernardo do Campo-SP. Trata-se de Harry Stone que veio para o Rio de Janeiro como representante da Motion Pictures nos anos 50. O cineasta Glauber Rocha chamava-o de agente da CIA. Na inauguração do MAC  (Museu de Arte Contemporânea) de Niterói, tive o prazer de dizer ao Harry Stone que odiava americanos, os seus filmes, que não frequentava cinemas há vários anos. Mas eu tinha o prazer de assistir somente os filmes que mostravam a derrota dos norte-americanos na Guerra do Vietnã. Ele ficou vermelho como um peru e sumiu. Falei para Glenn Greenwald sobre a retribuição que ele, Edward Snowden e Julian Assange fizeram para a humanidade com as suas denúncias desmascarando as atrocidades cometidas pelos governos dos Estados Unidos em vários países. Parabéns Glenn Greenwald, o norte-americano brasileiríssimo! http://www.zonacurva.com.br/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/

A Lava Jato produziu o governo Bolsonaro

Os antigos defensores da Lava Jato, que festejaram quando a prisão de Lula impediu sua vitória eleitoral, reagem com perplexidade às estultices do governo Jair Bolsonaro. Ignorando a óbvia relação causal dos fenômenos, fingem que o jabuti subiu na árvore sozinho, como se a tragédia anunciada fosse um mero acidente de percurso na Cruzada Anticorrupção. É fácil notar que a Lava jato enriquece delatores, advogados e multinacionais estrangeiras. Já considerá-la benéfica para o povo que a financia depende do repertório de valores de cada um. Se derrotar o lulismo compensa quaisquer sacrifícios, colapsos e prejuízos, maravilha, deu certo. Se nada justifica eleger milicianos e dementes obscurantistas, a conta não fecha. O meio-termo, usado por muitos para fugir do dilema, disfarça a escolha pela primeira opção. Um dos apelos do imaginário fascista reside justamente em prender (e matar) bandidos. Não é outra a origem do discurso de que a corrupção supera negativamente a desigualdade social, a incompetência administrativa e o racismo institucionalizado. Ou o próprio fascismo. E precificar os lados da balança não ajuda a equilibrá-la. Quantas fortunas recuperadas pagam a destruição da universidade pública, da cultura, dos direitos individuais? Quantos larápios aposentados ou irrelevantes compensam a inelegibilidade de um candidato favorito a presidente da República, o único capaz de impedir a escalada reacionária? A agenda saneadora jamais precisaria da Lava Jato e do resultado eleitoral que ela gestou. As condenações de burocratas e políticos metidos em esquemas antigos e notórios seriam resolvidas há décadas, sem rótulos espalhafatosos, desde que policiais, procuradores e juízes cumprissem suas prerrogativas básicas. Todos esses casos dispensariam os arbítrios aplicados a Lula em nome da impunidade alheia. Só a excepcionalidade atingiria o petista. Nisso a Lava Jato, porque ideológica, foi eficaz: partidarizou a constitucionalidade, tornando o antipetismo um alento moral para a naturalização do arbítrio. Nada mais explica o silêncio das cortes superiores diante dos métodos aplicados a Lula, cheios de vícios primários, que teriam derretido qualquer processo “comum”. O fato de não criar precedentes, mas exceções pontuais irrepetíveis, mostra o caráter deliberado e sistemático dessa covardia. Basta resumir a trajetória de Sérgio Moro para sabermos que não houve mera coincidência entre as suas atividades e a ascensão fascista. O juiz vazou grampos ilegais para derrubar um governo, condenou por “crime indeterminado” o candidato do mesmo partido, manteve-o incomunicável na disputa eleitoral, ajudou a campanha do seu maior adversário e se tornou ministro da chapa vencedora. A de Bolsonaro, que lhe prometeu uma vaga no STF. lava Esse pragmatismo oportunista só faz sentido como estratégia de poder. Não há justificativa técnica para encenações midiáticas e vazamentos de dados sigilosos. E é ilustrativo o gosto contraditório pela publicidade numa operação que resguarda seus próprios segredos tão bem, inclusive negando às defesas o acesso a documentos dos inquéritos. A evidência final de que a Lava Jato pariu o monstro está na afinidade ética de ambos. O recurso de Moro ao espetáculo obscurantista e a manobras clandestinas sempre que algo ameaça seus interesses é típico do governo que o abriga. As pressões de militares sobre o STF na campanha e a desobediência às ordens de soltura de Lula têm a mesma essência. Refém da desgraça bolsonariana, incapaz de sobreviver a uma CPI bem feita, a Lava Jato virou parte do sistema viciado que prometia destruir. É impossível separar cruzados judiciais e administrativos, pois o elo populista que os une também lhes confere sua única fantasia de legitimidade. Eles dependem do mesmo contingente raivoso e vingativo. A normalização do país exige, portanto, que todos os articuladores do golpe que tirou Lula da disputa presidencial respondam juntos pelo desastre resultante. Permitir que os indignados tardios reciclem a agenda salvacionista, quiçá em torno do próprio Moro, seria um aval para novas aventuras tenebrosas da “gente de bem” que o idolatra. Os arrependidos de hoje sabiam, desde o início, aquilo que a Lava Jato preparava. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. O golpe preventivo contra Lula

O Brasil, os caminhoneiros e a política

por Elaine Tavares Quando em 2013 a direita foi às ruas houve uma surpresa geral. Havia muito tempo que esse campo não travava batalhas no campo aberto. Sua tática, desde o golpe de 1964, era a das salas acarpetadas, dos acordinhos espúrios, da pressão via dinheiro. Mas, tampouco o país tivera na direção alguém identificado  com os trabalhadores. Lula e depois Dilma vinham de um partido de trabalhadores e ainda que seguissem a cartilha liberal, o nome “trabalhadores” na sigla que os representava parecia perigoso demais. O período de vacas gordas na economia passara e a realidade de país dependente assomava outra vez. À classe dominante já não interessava mais o PT no governo e ela decidia que queria de volta o poder político. Naqueles dias de 2013, a faísca que se acendera com a batalha contra o aumento da tarifa de ônibus deu vazão a uma série de outras demandas. E, de repente, as ruas, que eram território da esquerda e dos trabalhadores, passaram a se vestir de um verde-amarelo reacionário, com a classe média e até algumas socialites realizando passeatas e manifestações. O grito de Fora PT começou a aparecer e no meio da luta pelo transporte público surgiu a pauta da PEC-37 que tomou conta do país, com as pessoas defendendo seu arquivamento sem sequer saber o que ela significava. E nas ruas travou-se a batalha contra os partidos políticos, os sindicatos e os movimentos sociais. Ali já se pronunciava a semente do que estaria por vir. O arquivamento da PEC 37 deixava o Ministério Público com poderes de investigação tal qual a polícia e a operação Lava-Jato que nasceria mais tarde mostraria o quanto servira aquele arquivamento.   Naqueles dias as forças de esquerda também ficaram em estado de perplexidade, mas resistiram e enfrentaram os raivosos verde-amarelinhos em todos os campos. E quando tudo acabou, acreditava-se que aquele episódio não se repetiria. Mas, não foi assim. O nascimento de uma série de movimentos de direita e sua ação nas redes sociais deu volume aos gritos de “fora PT” e a situação econômica foi abrindo brechas na sociedade que não queria mais perder o que pensava que havia conquistado: a segurança financeira. O segundo mandato de Dilma que começava com promessas de manutenção dos programas sociais e de vida boa para todos fez água e ela decidiu aplicar um ajuste que cortava na carne da maioria. Virou inimiga, e com razão. A operação Lava-Jato e o jogo das delações premiadas começaram a mostrar um quadro de corrupção dentro da Petrobras, a maior estatal brasileira. Políticos do PT foram caindo um a um, até que chegou à presidenta. Como um rastilho de pólvora a pauta do combate à corrupção foi se espalhando capilarmente, com o engajamento ferrenho das mídias comerciais. Dilma estava com a cabeça a prêmio e, de novo, as forças da direita conseguiram empurrar para as ruas milhões de pessoas pedindo o impedimento da presidenta. Não havia crime, não havia provas, mas havia um frisson alucinante que exigia a punição, a queda, o desaparecimento do PT. E Dilma foi derrubada por conta das pedaladas fiscais, coisa que todo governante praticava. Tanto que logo depois da assunção de Temer, as pedaladas foram legalizadas pelo Congresso. Com Dilma fora do caminho, o vice, Temer, assumiu e a próxima jogada no tabuleiro da política brasileira que era derrubar Lula, apagá-lo da história, tirá-lo de cena como um reles ladrão, capaz de vender-se por um apartamentinho furreca. E tudo foi feito conforme o script. Lula foi envolvido nos esquemas de corrupção e hoje está preso em Curitiba por conta de uma acusação que envolve o recebimento de um apartamento como propina. Enquanto essa novela palaciana se desenrolava, os movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos seguiam com suas mesmas velhas práticas, sem perceber que algo havia mudado radicalmente nas entranhas do país. As redes sociais, misturadas de forma capilar na vida das gentes, viraram tanques de guerra a disparar notícias falsas e a constituir um consenso generalizado sobre a esquerda brasileira. Qualquer luta de trabalhadores virava coisa de “comunista” e até mesmo o PT foi acusado como tal. “Minha bandeira jamais será vermelha”, gritavam os verde-amarelos, possuídos pela sanha anti-comunista. E as ruas iam se mesclando de gente que misturava esse ódio ao comunismo a própria perda de vantagens econômicas, visto que a economia ia se desmilinguindo. Com Temer no comando, o país foi sendo entregue em todas as áreas: riquezas naturais, estatais, soberania. Um campo dos trabalhadores abraçou a batalha pela defesa do Lula. E, em todo o processo, que foi da acusação à prisão, a vida se desenrolou por ali. Mesmo depois da prisão, que já leva quase 50 dias, esse grupo seguiu atuando no sentido de batalhar pela liberdade do líder. As demais pautas ficaram em segundo plano e mesmo a Reforma Trabalhista, que tirou direitos fundamentais dos trabalhadores não encontrou combate. Poucas foram as ações contra a reforma e ela passou no Congresso sem maiores atropelos. As centrais outrora combativas chegaram a suspender greves gerais marcadas, desmobilizando e enfraquecendo a luta dos trabalhadores. A direita, que vinha se reorganizando desde 2013, com a construção de novos mecanismos de batalha, não deixou que o vácuo na política demorasse. Atuou com competência e venceu a batalha das ideias, tendo nas mãos os meios de comunicação e as redes sociais. Assim, a luta contra os “comunistas” continuou ganhando fôlego e incitando muitos grupos a exigirem até a intervenção militar. Assim, enquanto o país ia sendo entregue e a economia despencava, ia se criando o caldo de descontentamento totalmente vinculado ao campo da esquerda. Tudo de ruim que Temer provocava era culpa do PT. E ainda que houvesse sim responsabilidades do PT, o negócio não era tão simples assim. Na última semana um movimento de caminhoneiros contra o preço do diesel surpreendeu outra vez o campo da esquerda. Das entranhas do país, pelas estradas carcomidas e perigosas que constituem a malha rodoviária do gigante brasileiro, homens e mulheres decidiram parar

A união da esquerda progressista em prol de um projeto nacional de desenvolvimento

O agravamento da crise política demanda a aliança entre PDT, PT PCdoB e PPL em busca de saídas reais para o imbróglio em que o país está afundado por Cássio Moreira Os golpes, sejam eles civis, militares ou parlamentares tem o efeito de tornar evidente o embate entre projetos. Os de 1964 e o de 2016 serviram para mostrar como projetos radicalmente antipopulares só podem ser implantados de forma não democrática. O de 1964 foi um marco para visualizar de forma clara dois projetos para o país que divergem centralmente em torno da questão da independência econômica do Brasil. O nacional desenvolvimentismo foi a estratégia adotada pelos governos de Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964). Nacional por que via na dependência econômica (comercial, tecnológica e financeira) os principais entraves ao desenvolvimento. Para isso seria necessário o desenvolvimento do capital nacional de forma a romper com a dominação estrangeira e promover uma forte indústria nacional.   “As nações expansionistas viram que o domínio sobre os povos de outra raça, outra língua, outra religião e outros costumes, é odioso e desperta o orgulho pela pátria, gera nacionalismo e incita os ânimos à revolta e às reivindicações da liberdade. A experiência ensina assim aos povos fortes outros caminhos que os leva, sem aqueles inconvenientes, à mesma finalidade: é o caminho da dominação econômica, que prescinde do ataque frente à soberania política. Esse o perigo que nos cumpre evitar. Os fortes passaram então a apossar-se das riquezas econômicas dos povos fracos, reduzindo-os à impotência e, pois, à submissão política” (Artur Bernardes). Como forma de reação ao nacional-desenvolvimentismo surgiu um modelo híbrido chamado de dependente-associado, que não negava a participação ativa do Estado, porém atribuía outro papel ao capital estrangeiro. Papel esse, fundamental, de parceria e promoção dos investimentos em setores mais intensivos em capital. O fortalecimento dessa corrente se deu com a criação da Instrução 113 da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) pelos economistas Eugênio Gudin (diretor da empresa multinacional norte-americana Amforp – American Foreign Power) e Otávio G. Bulhões, dirigente da Sumoc. A instrução não foi revogada pelo governo JK e sim, apenas, pelo de João Goulart com a Instrução 242. O modelo dependente-associado de certa forma “cooptou” o capital nacional associando-o com os interesses do capital estrangeiro, sob a tutela e parceria do Estado Nacional. Essa aliança propiciaria a atração de capitais e a modernização do parque industrial por meio de aporte tecnológico. De fato, no governo JK e, em especial, pós-golpe de 1964 houve uma modernização da economia, porém as velhas estruturas sociais e a dependência externa não foram alteradas.  O resultado seria um aumento da dependência tecnológica e estrutural, dada a importância crescente das empresas multinacionais no fornecimento de componentes industriais e bens e serviços, e uma dependência financeira com o brutal endividamento externo, acirrado com a elevação da taxa de juro norte-americana em 1979. A ideologia trabalhista em prol do desenvolvimento nacional O golpe parlamentar de 2016 foi outro marco para visualizar de forma clara novamente dois projetos em disputa: o social-desenvolvimentismo e o projeto neoliberal. Novamente, o fator mais divergente é a independência econômica do Brasil. Em 2002, com a eleição de Luiz Inácio “Lula” da Silva, o Brasil, após um experimento de manutenção da política econômica (tripé macroeconômico) anterior nos primeiros anos do governo Lula (2003-2005), passou a reordenar a atuação do Estado na coordenação dessa política econômica em prol de uma espécie de um novo desenvolvimentismo marcado pelo social, o que foi chamado de social-desenvolvimentismo por alguns autores. Este seria a manutenção do crescimento da renda e do emprego com a adoção de uma política social ativa de inclusão social. Essa nova tentativa de desenvolvimentismo, entretanto, pecou em não deixar como variável principal, para sua sustentação ao longo prazo, a fomentação de uma ideologia nacional do desenvolvimento. A falta desse caráter nacional na implementação no projeto de inclusão social dos governos Lula (PT) ficou visível na utilização das cores da bandeira do Brasil nos protestos contra o governo Dilma.  Esse governo, mesmo usando os dois pilares do projeto Varguista (nacional-desenvolvimentista) – a Petrobras (política de compra nacional) e o BNDES (desenvolvimento de grandes multinacionais brasileiras) – acabou não deixando claro para a população a existência de um projeto nacional para o país. Embora, tenha criado uma estatal do Pré-Sal, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os programas Luz para Todos e Minha Casa Minha Vida, a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, a Política de Desenvolvimento Produtivo, entre outros, não foram suficientes para caracterizar um projeto nacional integrado, no máximo um projeto de inclusão social. Que de certa forma retoma, apenas em parte, o projeto nacional-desenvolvimentista dos governos trabalhistas de Vargas e Goulart num contexto de globalização. Mas não atacou a raiz do problema que é a dependência econômica (comercial, produtiva, financeira e tecnológica) por meio de reformas estruturais (as chamadas Reformas de Base do governo Goulart). Esse esboço de projeto social (com um pequeno viés nacional) entretanto, foi interrompido com a mudança da política econômica do segundo governo Dilma e a ascensão ao poder do seu vice, Michel Temer, que adotou as bases do programa econômico da oposição manifestado no documento “Uma Ponte para o Futuro”. Atualmente, vemos a volta da ideologia neoliberal sendo implementada numa alta velocidade, talvez em virtude da pouca legitimidade e durabilidade de um governo cujo projeto não foi legitimado nas urnas. Sua ilegitimidade e impopularidade explica a pressa em implementá-lo. Contudo, desde a desconstrução do governo Dilma (a partir das manifestações de junho de 2013), a população tem absorvido, por meio de uma campanha de propaganda sistemática do oligopólio dos meios de comunicação, alguns valores neoliberais, derrotando, no senso comum da população, as ideias trabalhistas (designadas pejorativamente de “comunistas”). Portanto, a única alternativa de esquerda viável nesse contexto no Brasil é o ideário trabalhista como resposta ao neoliberalismo. O trabalhismo, enquanto doutrina política, não é um conceito estático, e sim adaptado ao seu contexto histórico. Geralmente é por meio das ideologias políticas e econômicas que nos é

Agronegócio avança sobre a Amazônia

por Elaine Tavares O Brasil vive uma grave crise política, mas para os deputados no Congresso Nacional, nada está acontecendo. Surdos a toda mobilização popular que questiona a legitimidade do governo Temer e acusa mais de 300 parlamentares de corrupção, os legisladores seguem com a farra de benesses para os seus financiadores. A conhecida “bancada do boi”, na qual estão os representantes do agronegócio é a que mais avança, garantindo cada vez mais a concentração de terra e privilégios para os latifundiários. Não bastasse essa goleada no poder legislativo, os ruralistas ainda seguem matando pessoas nos fundões do Brasil sem que ninguém seja tocado. A chamada acumulação primitiva, tão bem explicada por Marx, segue a passos largos no Brasil. O objetivo é garantir terras ricas para os ricos, eliminando qualquer entrave, sejam os indígenas ou os agricultores sem-terra. Para isso, vale tudo. Nessa quarta-feira, quando mais de 150 mil pessoas tomavam Brasília para pedir o “Fora Temer” e lutar contra as contrarreformas trabalhista e previdenciária, os deputados, encastelados no Congresso, e aproveitando que os colegas de oposição se retiraram em protesto contra o massacre aos trabalhadores que acontecia lá fora, votaram na maior cara de pau Medida Provisória do governo ilegítimo (a MP 759), que regulariza as terras da União ocupadas na Amazônia Legal e estabelece  novos procedimentos para regularização fundiária urbana no Brasil. Entre esses procedimentos está a possibilidade de empresas estrangeiras tomarem conta do território, sem limites de tamanho. A MP passou na forma de um Projeto de Lei  rearranjado pelo senador Romero Jucá (PMDB/RR), o mesmo que o Brasil todo conhece como aquele que apontou como deveria ser o golpe no Brasil, e que está também mergulhado em denúncias de corrupção. Na proposta aprovada agora será possível regularizar áreas maiores que um módulo fiscal e até 2.500 hectares, uma exigência dos latifundiários e dos grandes grileiros de terra. Também permite que ocupantes até 2008 possam fazer a regularização. Antes isso só era possível para os que estavam na área até 2004. Ou seja, a nova lei legaliza a última expansão realizada pelos ladrões de terra, que na sua maioria são grandes fazendeiros que a ferro e fogo, garantiram o aumento da fronteira agrícola para dentro da floresta que é o pulmão do mundo. E com a possibilidade de compra por parte das empresas estrangeiras, a Amazônia poderá ser apropriada pelas transnacionais que usarão a seu bel prazer toda a riqueza da região, inclusive uma infinidade de plantas que servem a indústria farmacêutica. Ou seja, o país perde soberania sobre sua própria riqueza. É o corolário do entreguismo.   O que está em jogo A Amazônia Legal não é um descampado vazio de gente que os fazendeiros podem ir ocupando a seu bel prazer. Ela é um espaço de riquezas infindáveis, equilíbrio do clima mundial e também morada de uma infinidade de povos originários. E é justamente sua riqueza que é sua desgraça, pois os capitalistas, no processo incontrolável de acumulação de capital, querem tomar cada pedaço, não medindo esforços para isso. Tanto que no mesmo dia em que conseguiam aprovar a MP, jagunços a mando de fazendeiros no Pará, assassinavam 10 trabalhadores sem terra. A região amazônica é um laboratório de vida natural com mais de 50 mil quilômetros de rios navegáveis. Só o Amazonas tem mais de mil afluentes. Ali vivem cerca de 80% das variedades de vida do planeta, sendo a maior floresta tropical do mundo. A Amazônia brasileira se apresenta em nove estados do país e desde o processo de invasão tem sido objeto de rapinagem e destruição.  Primeiro com a mineração de ouro no século 18 e depois com o extrativismo da borracha. Não sem razão, a região foi o palco de grandes batalhas, como a Revolta dos Cabanos, entre 1823 e 1839, na qual índios, negros e trabalhadores empobrecidos se levantaram em armas contra o Estado.  Mais de 30 mil pessoas foram mortas pelas forças estatais, na mais sangrenta guerra civil do Brasil. Na investida sobre a Amazônia durante o ciclo da borracha a região foi tomada por levas gigantescas de trabalhadores nordestinos que, sem condições de vida no nordeste, por conta da seca, iam para o norte em busca de vida melhor. Entre 1870 e 1910 mais de 500 mil nordestinos migraram para a região servindo de força de trabalho. A estrada de ferro Madeira-Mamoré construída na primeira década do século 20 deixou um saldo de 30 mil mortos, tamanha era a precariedade das condições de vida. E foi na década de 30 que a entrega das terras para os estrangeiros também começou, com  o empresário estadunidense Henry Ford se apropriando de terras junto às margens do rio Tapajós para a extração da borracha. O governo militar, que assumiu depois do golpe de 64, foi quem promoveu mais um forte processo de acumulação capitalista na região com uma estratégica política de colonização da região, chegando a criar uma agência de fomento para financiar aqueles que queriam investir na Amazônia, a famosa SUDAM, espaço de grandes processos de corrupção e desvio de dinheiro, envolvendo figuras conhecidas como Jader Barbalho e Roseana Sarney, mas que seguem suas vidas sem punição alguma. Foi justamente nesse período que se abriram as fronteiras da floresta ao capital. Conforme estudos de Fiorelo Picoli, no livro “O Capital e a devastação da Amazônia”, entre 1960 e 1970 apenas 35,3% das terras pertenciam a estabelecimentos com menos de 100 hectares. Já a partir de 1975 a concentração tinha dado um salto, com 99,8 das áreas sendo propriedades de mais de 100 hectares, com 75% tendo mais de mil hectares. Ou seja, foi o período em que os fazendeiros mais amealharam terra na região. Esse foi também um tempo em que centenas de milhares de indígenas foram assassinados ou desalojados de seus territórios. Tudo era válido para que o Brasil “progredisse”. O estado chegou a criar uma base militar no sul do Pará, justamente para apoiar a grilagem de terra pelos grandes fazendeiros, atuando contra os posseiros empobrecidos e contra

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