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O carnaval da Tropicália

por Albenísio Fonseca A Tropicália é o movimento que não acabou, foi impedido de continuar. Por si só verdadeira carnavalização estética, surge com uma instalação de Hélio Oiticica, em 1967. No mesmo ano, a canção Tropicália, de Caetano Veloso. Só em 68 seria lançado o emblemático disco-manifesto. Aliás, com um erro crasso ao cravar o plural do simbólico emblema latino dos romanos “panis (em lugar de “panem”) et circenses”. Oiticica dizia que criou a Tropicália e que os demais criaram o Tropicalismo. Sob o céu anil, havia fortes influências da pop art e do flower power norte-americanos; do processo de industrialização brasileiro e do ambiente de repressão instaurado desde o golpe de 64. Bob Dylan, Beatles, Rolling Stones, Carmem Miranda, Chacrinha e a Jovem Guarda eram alguns dos ingredientes que compunham o caldeirão cultural na efervescente antropofagia tropicalista. O movimento se erige sobre quatro marcos inaugurais, todos transcorridos em 1967: a instalação Tropicália, manifestação ambiental, de Hélio Oiticica, no MAM do Rio de Janeiro, em abril; a estreia do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, em maio; a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada em setembro pelo Grupo Oficina, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, e as participações de Caetano Veloso e Gilberto Gil no III Festival da Record, em outubro, interpretando respectivamente Alegria, Alegria e Domingo no Parque, que instauravam uma nova linguagem e inseriam a guitarra elétrica na MPB. O choque do provincianismo com o moderno gerando a síntese dialética de uma nova forma de pensamento. A um só tempo, o corte e a sutura. Algo como a Semana de 22, entre 67 e 69, converteu-se na nova ótica brasileira da transformação de costumes, valores culturais e comportamentos, liderada pela juventude daquela geração. Nossa “geleia geral”, diriam Gil, Caetano, Waly, Torquato Neto e Capinan. Toda a rede universal de comunicação hoje consolidada já estava instalada de modo embrionário naquele momento histórico. O Tropicalismo se instaura em diálogos e interinfluências, atravessando a indústria cultural em áreas profissionalizadas, como o cinema, o teatro, a TV (vide o programa Divino Maravilhoso, na Tupi, em 68); semiprofissionais, como a literatura; e as marginais: cinema super-8, escultura, música erudita. Diante do establishment cultural erudito nacional e distinta da explícita canção de protesto, a produção musical tropicalista, face proeminente do movimento, sempre tensionando extremos, vai se relacionar com as antenas mais sensíveis da intelectualidade, os segmentos de vanguarda: Medaglia, Duprat, Cozzela, maestros da avançada música de concerto e o operístico Vicente Celestino; berimbau e guitarra; latinidade, poesia concreta e literatura de cordel; o fino e o cafona; cidade e sertão. No caleidoscópio montado pelo Tropicalismo, a cintilar também nas vozes de Gal Costa, Nara Leão ou Maria Bethânia, passamos a habitar uma nova dimensão simbólica da realidade brasileira. Sob o fascínio irreverente dos Mutantes, nos ícones da urbanidade e do parque industrial satirizados por Tom Zé, a atualização dos paradoxos que delimita(va)m nossa brasilidade, redesenhados por Rogério Duarte. Em suma, a nova consciência crítica gerada pela estética tropicalista veio proporcionar uma ampla liberação para a criação artística que, infelizmente, o artista brasileiro, em geral, não soube dar sequência. Vale lembrar, ainda, o quanto Gil e Caetano produziram marchas e frevos antológicos para a folia. Mais do que pelos militares, a Tropicália foi “derrotada” pelo conservadorismo e pelo subdesenvolvimento brasileiro. Sem possibilidade de cooptação política à esquerda ou direita, as prisões e exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso não impediriam, contudo, que o Tropicalismo ultrapassasse o próprio rótulo como possibilidade da cultura e da vida no Brasil.  Em 2012, a Escola de Samba Águia de Ouro desfilaria na pauliceia sob o samba-enredo “Tropicália da Paz e Amor: O Movimento que não acabou”. Trazia Gil, Caetano, a roqueira e tropicalista Rita Lee entre os destaques e Cauby Peixoto e Ângela Maria como rei e rainha da MPB. Que todos possam divertir-se a valer no País do Carnaval, ainda que, em Salvador, blocos como o Boca de Brasa – com personagens culturais redivivos – e o da Capoeira – um dos mais emblemáticos ícones da baianidade – tenham sido excluídos do apoio do estado e das programações oficiais. Agora, 50 anos depois, face à improbabilidade de horizontes claros em nosso triste trópico e no limite tênue do nosso luxo e miséria cultural, com a Tropicália convertida em tema de carnavalização da primeira capital do país, quiçá ainda seja possível resgatar a velha audácia e perpetuar a paixão pelo moderno e a pretensão futurista dos tropicalistas em plena virtuália do blá blá blá das redes sociais nessa transdigitada era da banda larga e comunicações instantâneas. A resistência de Gal Costa à ditadura civil-militar Canis et circenses Roger Waters apela pelo cancelamento de show de Gil e Caetano em Israel  

Sobre o “caos” no Espírito Santo

por Elaine Tavares A mídia comercial tem mostrado o “caos” no Espirito Santo por conta da greve dos policiais militares. Algumas coisas precisam bem esclarecidas sobre esse movimento. Em conversa com o cabo Noé, vice-presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiros Militares do Espírito Santo, colhemos as seguintes informações. 1 – Não é uma greve de policiais. O que acontece é que as esposas e familiares dos policiais estão trancando as portas do batalhões e não estão permitindo que eles saiam. 2- Os familiares decidiram fazer isso porque é vedado aos policiais fazer greve. 3 – Os familiares reivindicam um salário melhor aos policiais e também condições de trabalho. Hoje o salário médio é de 2.750 bruto, e é o pior salário do Brasil. No Espírito Santo eles estão sem ganho real há sete anos, e desde há três anos sequer têm reajuste da inflação. A situação é de penúria. 4 – Não bastasse a falta de salário, os policiais são obrigados a trabalhar enfrentando riscos cotidianos sem as condições para sua proteção. Os coletes a prova de bala estão vencidos, e os que estão na validade precisam ser usados em sistema de rodízio. Um veste a proteção e outro não. A sorte define quem vive. 5 – As perdas salarias chegam a 45%, mas a Associação dos Praças alega que um reajuste de 10% já poderia abrir uma negociação. Ainda assim o governador Paulo Hartung, que é do PMDB, se nega a negociar. 6 – A postura do governador é descrita como “imperial”. Segundo os policiais eles preferem morrer a ceder. 7 – Por outro lado, os policiais e suas famílias já estão morrendo e tampouco estão dispostos a seguir assim. 8 – Se hoje o estado vive um caos, com criminosos nas ruas, tiroteios, sequestros, roubos de carro, saques, a responsabilidade deve ser dada a quem de direito: o governador e sua política de arrochar os trabalhadores em vez de cobrar as dívidas do empresariado local. Como sempre, o argumento para manter o salário baixo e não garantir a segurança dos soldados é a falência financeira do estado. Como sempre, pagam os trabalhadores. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes. Greve contra o golpe  

De santos e de juízes

por Mauro Santayana (da Agência Carta Maior) A estúpida invasão do Parlamento, com a tomada do plenário da Câmara dos Deputados por um bando de imbecis – que davam vivas ao Juiz Sérgio Moro e pediam uma “intervenção” militar – não é um absurdo isolado no crescente cerco à Democracia e às instituições nacionais. A cerrada pressão corporativa do Judiciário e do Ministério Público sobre deputados e senadores para consolidar o controle de um grupo de plutocratas sobre a República, o Legislativo e o Executivo, e, direta e indiretamente, sobre o eleitorado e os cidadãos comuns, representa uma outra face da ascensão de um fenômeno perverso, antidemocrático e fascista – a Antipolítica. Não interessa se o legislativo que aí está aprovou,  majoritariamente, um golpe que tirou do poder um governo que, venhamos e convenhamos, havia se tornado de certa forma insustentável, por sua própria incapacidade em recusar uma agenda neoliberal recessiva – criada também para facilitar a sua derrocada – e de resistir a uma campanha tenaz, mentirosa e fascista que se desenvolvia claramente desde 2013 e que iria – só os imbecis e os ingênuos não acreditavam nisso – chegar, inexoravelmente, à derrubada da Presidente da República. O Congresso Nacional – e nele há também aqueles que tentaram resistir bravamente a essa farsa – não é perfeito. Mas ninguém chega ali sem voto. E o voto reflete em boa parte a essência, a opinião, a qualidade e o que determina a população brasileira. Tão ou mais responsáveis pela queda de Dilma, do que os deputados e senadores que votaram pelo seu impeachment, foram certos grupos do Ministério Público e do Judiciário, oriundos majoritariamente de uma classe média reacionária e conservadora, que investiram tenazmente na fabricação de uma longa série de factoides, arbitrariedades e escândalos, destinados a dizimar o PT nos tribunais e – em cumplicidade com uma mídia mendaz, parcial e seletiva – junto à opinião pública. Ou alguém acredita que, se não existisse a Operação Lava Jato, e seu deletério exemplo, com o evidente antipetismo do Juiz e de vários procuradores envolvidos com sua “força-tarefa” – mesmo com a coleção de equívocos táticos e políticos do governo anterior e de seu partido – teria se conseguido derrubar a Presidente da República? A “Lava Jato” não apenas destruiu o país, provocando 140 bilhões de reais de prejuízo e aprofundando os efeitos da política recessiva e da crise internacional – arrebentando com as maiores empresas brasileiras e seus milhares de trabalhadores, acionistas e fornecedores – para recolher menos de dois bilhões, na verdade, apenas algumas dezenas de milhões de reais, se formos considerar dinheiro efetivamente desviado e não de “leniência”, “multas” e “bloqueios” bilionários. Ela também representou a consolidação de uma Jurisprudência da Destruição que já vinha de antes, partidária e sabotadora, com a sucessiva paralisação, por centenas de vezes, de dezenas de grandes obras de infraestrutura e de projetos estratégicos de governos petistas, nos últimos anos, como as hidrelétricas de Jirau e Belo Monte, a Refinaria Abreu e Lima e a Transposição do São Francisco, por exemplo, que tiveram entre outras consequências diretas um extraordinário aumento no preço das obras hoje atribuído quase que exclusivamente a supostos casos de corrupção. E se apoiou no descrédito da democracia, por meio da manipulação da opinião pública,  estratégia essa que é a cabeça de ponte de um movimento que pretende, de fato, diminuir o poder de representantes eleitos, para entregá-lo a um estrato privilegiado de funcionários concursados que se veêm como impolutos Cavaleiros da Justiça, e que consideram, temerariamente, que devem tutelar a República, por meio de sucessivas manobras políticas, quando  não têm um reles voto e  estão proibidos, por lei, de meter-se nesse contexto. Se houvesse um mínimo de respeito à Constituição, o Movimento das 10 Medidas Contra a Corrupção teria sido coibido dede o início. Juízes, procuradores, desembargadores devem fazer cumprir as leis e não criar movimentos de massa, slogans e marcas e sair colhendo assinaturas para reformulá-las partidariamente – mesmo que não se trate de partido legalmente constituído – em seu próprio benefício profissional ou pessoal. A não ser que queiram abandonar suas togas e seus confortáveis gabinetes e se candidatar ao Legislativo, disputando, no próximo pleito, com os deputados e senadores aos quais pretendem dar lições éticas, o voto e a preferência do eleitorado. Se não fosse assim, os constituintes de 1988 teriam lhes franqueado o acesso à atividade política, quando o que fizeram, explicitamente, foi exatamente o contrário, como ocorre, aliás, na maioria dos países do mundo. Já imaginaram se as Forças Armadas fizessem um movimento em defesa de seus próprios interesses e do aumento de quinhão de poder, de facto, no conjunto da sociedade brasileira, através de um conjunto de “10 Medidas Pró-defesa”, com soldados da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, colhendo assinaturas em bares e restaurantes? Ou os bombeiros, ou os médicos, ou os fiscais, não interessando qual fosse o motivo, até mesmo porque de discursos demagógicos e de “boas” intenções o inferno está cheio? Poderíamos, tranquilamente, fechar o Congresso, as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, e mudar o nome deste país para República Corporativista Brasileira. É por isso que, tanto do ponto de vista político, quanto do jurídico, os magistrados e procuradores brasileiros deveriam evitar o perigoso caminho – que estão trilhando com a cumplicidade de parte da mídia, que também aposta na judicialização e na criminalização da política e no enfraquecimento da Democracia – de tentar aumentar de forma incessante o seu poder, o seu ego e sua arrogância, no trato com a população de modo geral e, especificamente, com outras instituições da República. Uma auditoria do Tribunal Superior do Trabalho acaba de constatar que todos os tribunais regionais descumpriram normas legais em relação a férias de juízes e desembargadores entre 2010 e 2014. Nos casos mais graves, segundo a Folha de São Paulo, cinco TRTs pagaram a 335 magistrados o total de R$ 23,7 milhões a título de indenização, ou seja, da “venda” teoricamente ilegal –  a Lei Orgânica da Magistratura Nacional não prevê a possibilidade

Este texto não é sobre Lula

por Fernando Bastos Neto Vocês sabem que Juscelino Kubitschek é um dos políticos mais prestigiados do Brasil. Faz algum sentido. Os anos JK são conhecidos como a “Era Bossa-Nova”. O Brasil parecia estar finalmente na direção do desenvolvimento e industrialização. Foi o tempo da construção de Brasília, mas também do Plano de Metas, dos cinquenta anos em cinco, de capitais estrangeiros sendo atraídos, de fábricas automotivas vindo pra cá, de investimentos em infraestrutura. Tudo isso pincelado pelo carisma mineiro de um presidente capaz de transitar entre comunistas e udenistas, dono um charme de contagiar a todos. Vejam só, já tivemos até série de televisão laudatória sobre Juscelino na Rede Globo, com José Wilker de papel principal. Maior prova de que JK é querido pelo establishment não há. No entanto, pouca gente se lembra de alguns episódios posteriores ao seu mandato de presidente, especialmente das reiteradas acusações de corrupção direcionadas a Juscelino Kubitschek. Para explicar esta história, convém retomar a eleição de 1960, que escolheu o sucessor de JK. A disputa estava centralizada entre Jânio Quadros e o Marechal Lott. Lott, candidato do PTB, de Getúlio e Jango, foi um reconhecido militar legalista (algo mais ou menos raro, dada a história do Brasil), mas claramente sem tino para a política. Clássica figura reconhecidamente séria, mas sem carisma. Jânio, do contrário, surgiu como um meteoro na política. Candidato pelo pequeno e quase inexpressivo PTN, recebeu o apoio da UDN. A União Democrática Nacional era o partido das donas de casa batedoras de panela, das classes médias urbanas, dos servidores públicos. Sua figura mais proeminente, Carlos Lacerda, poderia ser definida como uma espécie de Reinaldo Azevedo com mandato parlamentar. Outro detalhe importante sobre esse partido é que ele jamais havia ganhado uma única eleição para a presidência da república. Em 46, o Brigadeiro Eduardo Gomes perdeu para o general Dutra. O mesmo Brigadeiro seria derrotado por Getúlio, no ano de 1950. Já em 1955, Juscelino venceu Juarez Távora. Curiosidade: depois da terceira derrota seguida, a UDN tentou aplicar um golpe para evitar a posse de JK. Sim, é golpe o termo. Esse tipo de coisa era mais ou menos comum naquela época. Alegava a União Democrática que JK não havia vencido com a 50% + 1 dos votos, portanto não teria legitimidade para assumir o posto. O detalhe de que a legislação eleitoral da época não previa segundo turno, nem a necessidade de conquistar determinada porcentagem para ser empossado, nada disso fazia diferença. Tanto foi assim, que um General (à época) assumiu a posição da defesa da legalidade e deu um golpe preventivo (sim, gente, foi um golpe preventivo, a história do Brasil é cheia dessas loucuras) para garantir a posse de Kubitschek. JK venceu suas eleições, mas só pôde assumir porque um grupo de dentro das forças armadas decidiu garantir sua posse pela força das armas. O nome do líder deste grupo de militares era Henrique Teixeira Lott. Saiba mais sobre o golpe preventivo liderado por Lott. Voltemos às eleições de 1960. Traumatizada por ter perdido nas urnas tantas vezes, a UDN resolveu se arriscar e apostar numa figura obscura de outro partido, mas ascendente dentro do cenário político nacional: Jânio Quadros. Pela primeira vez, o moralismo de direita incorporava indícios que podem ser chamados de populistas. Com um discurso conservador e de forte combate à corrupção, Jânio venceu o apagado Lott com relativa facilidade. O papo da vassourinha simplesmente pegou. É verdade que não chegou aos 50% + 1 votos, no entanto desta vez a UDN não questionou a legitimidade do pleito. Eleito, Jânio Quadros tomou medidas heterodoxas. Proibiu o biquíni, inaugurou uma nova era da política externa brasileira, condecorou Che Guevara e tudo mais. Até que renunciou. Antes de renunciar, contudo, ele havia colocado em prática o discurso da vassourinha, criando inquéritos com o objetivo de investigar a gestão anterior. Não havia a teoria do domínio do fato, nem procuradores do MPF que curtem a página Revoltados Online, mas logo a investigação chegou em Juscelino. Ninguém precisa conhecer uma única letra da história brasileira para saber que houve roubalheira na construção de Brasília. JK estava na mira. Como na época não havia Gilmar Mendes no seu encalço, Juscelino Kubitschek logrou êxito numa gambiarra jurídica que lhe permitiu tornar-se Senador pelo estado de Goiás, ganhando, assim, imunidade parlamentar, se safando das investigações. A renúncia de Jânio jogou o país numa espiral de tensão enorme. A UDN, que finalmente havia vencido uma eleição, viu seu sonho virar um pesadelo: assumiu Jango, herdeiro do getulismo, aquele mesmo que os udenistas lutaram tanto para derrotar. Mais um golpe foi tentado: a posse de Jango só foi aceita por conta de mais uma campanha da legalidade, dessa vez liderada por Leonel Brizola, que se resolveu pela saída pacífica negociada: transformar o país num regime parlamentarista. Sim, desde aquela época esta é uma ideia fixa de parte da direita brasileira. Não durou muito, logo viria um plebiscito e a população optou pelo presidencialismo. Também não durou, porque o golpe de 64 não tardaria a chegar. Golpes no Brasil, como esse texto já mostrou, eram bastante corriqueiros. Normalmente, isto é, até 64, o procedimento de praxe era derrubar o governo, dar um reset no sistema — devolver o poder para os civis. Era essa a promessa, ao menos, do grupo ligado ao presidente empossado Castelo Branco. Seria coisa rápida. Tanto a UDN de Lacerda, quanto o PSD de Juscelino acreditaram na promessa e apoiaram o golpe. Ambos tinham pretensões para 65. Seria tipo uma disputa entre Pelé e Maradona da política brasileira, mas esse embate nos foi negligenciado pelos milicos que não ficaram alguns dias como de praxe, mas vinte e um fucking anos. Lacerda logo se tocou e voltou à oposição. JK, agora com o mandato cassado sob alegação de corrupção, era visto como potencial inimigo da ditadura militar. Passou a ser conduzido coercitivamente de maneira diária a prestar contas na polícia do exército. Os jornais enfatizavam a agonia de Juscelino, com ênfase nas acusações de corrupção. Imagina se

Venezuela, que ditadura?

por Elaine Tavares Ainda durante o governo de Hugo Chávez, a revista Veja, espaço de lixo jornalístico brasileiro escreveu o seguinte texto: “A Venezuela era, até o final do século XX, uma exceção na América Latina. Durante quatro décadas, entre 1958 e 1998, o país foi um exemplo de estabilidade política e de democracia no meio de um continente mergulhado em ditaduras militares. Seu relógio político obedecia a um fuso horário diferente do de seus vizinhos”. Para o escriba anônimo da Veja, depois de 1998 teve início, então, a “ditadura chavista”. Até ali era a paz. Mentira. A Venezuela antes de Chávez era um país dominado por meia dúzia de famílias que enriqueciam por conta do petróleo. A maioria da população vivia na mais extrema miséria. Não havia qualquer preocupação com um desenvolvimento do país, visto que o petróleo, sozinho, dava conta da existência da classe dominante. A industrialização era mínima e a produção agrícola inexistente. Com a ascensão de Hugo Chávez, em 1998, por eleição direta, voto popular, as coisas começaram a mudar. A taxa de desemprego passou de 14% em 1999, ano que Chávez assumiu, para cerca de 8% em 2012, segundo dados do próprio FMI (Fundo Monetário Internacional). O PIB, que em 1998 era de 61 bilhões de dólares passou para 332 bilhões em 2012 e o índice de pobreza que era de 49% da população em 1999, passou para 29%. O país que vivia ajoelhado diante dos Estados Unidos e dos demais países ricos começou a discutir soberania. A renda do petróleo que servia para enriquecer poucos passou a ser usada para benefício da maioria empobrecida. Teve início a prática da democracia participativa, na qual as pessoas organizam a vida e decidem sobre ela nos bairros, nas comunidades, nos espaços institucionais. A democracia viva e não apenas aquela falsa democracia que garante unicamente o direito do voto a cada quatro anos. O governo de Chávez assume também a ideia bolivariana de uma América Latina unida. O mesmo velho bordão que tanto já tinha feito tremer os ricos do início do século 19. A sombra da soberania popular de Simón Rodríguez, da unidade e integração da Pátria Grande de Bolívar, tudo isso fez soar o alarme nos países que dominam a cena capitalista.  Não bastasse essa viragem política ainda havia o investimento num desenvolvimento endógeno, indústria, agricultura, produção de bens e ciência. Vieram as missões populares de educação, de saúde, de moradia, de alimentação, de segurança. As gentes tomando seus destinos na mão, governando junto, intervindo nas políticas. “Heresia, heresia, heresia”, começaram a gritar os donos do poder central. Então, a Venezuela passou a ser enxovalhada e seu presidente mostrado como o diabo em pessoa. “Ditador, ditador, ditador”, esse era o grito de guerra que começava a ecoar capitaneado pelo braço armado da mídia imperial: a CNN, e reproduzido pelas demais filiais ideológicas. A ditadura a qual se referiam era essa. Um governo que ouvia o povo, um governo que levava o povo a participar de todas as instâncias da vida, um governo que distribuía a riqueza do petróleo antes concentrada. Isso é ditadura para os donos do poder. https://www.youtube.com/watch?v=V11pJ8b2KQA Hugo Chávez era homem de grande estatura intelectual e política, tinha um carisma incrível, coisa que acabou matizando o discurso de ódio dos países centrais. O rei da Espanha o mandou calar a boca, e recebeu resposta à altura, os Estados Unidos armaram – junto com a elite local – um golpe, e foram derrotados. A Europa toda compartilhou a gritaria de “ditadura, ditadura”, mas o discurso não colou. O fato é que Chávez se foi e os países centrais respiraram aliviados. Agora tudo poderia voltar a ser o “oásis” descrito pela revista Veja, de paz e tranquilidade para a meia dúzia de famílias que sempre chupou para si a riqueza do país. A população empobrecida seria banida do poder. Não foi assim. O bolivarianismo tinha fincado raízes na população. Quinze anos de alfabetização política, de participação efetiva, de movimento popular não se esfumaçaram com a morte de Chávez. A semente havia germinado. A população elegeu então Nicolás Maduro para dirigir o país. É claro que, não sendo Chávez, Maduro deu seu próprio ritmo ao processo democrático na Venezuela. Não tinha, nem tem, o carisma de Chávez, ou seu conhecimento sobre a política e a economia. Assumiu o governo em meio a um intenso ataque da direita – apoiada desde fora pelos países centrais. A eleição foi questionada o tempo todo e Maduro não teve um momento de paz. Começava um governo sob a sombra de Chávez e com todas as forças contrárias atuando fortemente. Iniciava aí mais um capítulo do crime de lesa humanidade que vem se perpetrando na Venezuela. Sem força política para derrotar Maduro e o bolivarianismo, a direita venezuelana passou a investir na violência sistemática, a ponto de suas lideranças irem para a televisão incitar as pessoas ao crime, ao assassinato, à destruição. Por conta disso Leopoldo Lopez, prefeito de Chacao, foi preso. Foi ele o incentivador da “guarimbas” (barricadas de rua) que resultaram na morte de mais de 40 pessoas. Pois para os EUA e os demais inimigos da Venezuela ele virou um “mártir da democracia”.  A mídia dos países centrais passou a apresentar Lopez como prisioneiro político e desde aí essa é a versão que foi abraçado por todos. A mentira repetida que vira verdade. Nessa semana um desses paus-mandados do império deu entrevista dizendo que a democracia está morta na Venezuela, e foi reproduzido por todos os meios de comunicação comerciais do mundo. A “ditadura” venezuelana que não quer libertar um “pobre rapaz”. Essa é a mentira que circula. A democracia para eles é a que serve aos interesses da minoria rica. O ilustre senhor da ONU não foi aos bairros, como o 23 de Janeiro, por exemplo, que concentra milhares de pessoas, muitas delas armadas, prontas para defender a revolução e os seus ganhos. A mando dos Estados Unidos, seu papel é fazer agitação e propaganda, pintando em cor-de-rosa

A palavra proibida

por Guilherme Scalzilli Elio Gaspari admitiu na Folha de São Paulo que há um golpe em curso. Mas “golpe”, veja bem, no sentido democrático, mero jogo sujo dos parlamentares malvados. Eis outro típico reboleio semântico de quem se envergonha de ter apoiado o impeachment. Doravante choverão análises parecidas, tardias e eufemísticas, em busca de um lugar confortável na posteridade. Foi assim com as reações às ilegalidades de Sérgio Moro e ao banditismo do governo interino. Será assim com a pizza da Lava Jato e a destruição política de Lula. Debaixo da retórica boazinha, porém, esses remendos escrupulosos preservam as suas falácias originais, como caroços opinativos inquebráveis que não podemos refutar. Moro é imparcial. Dilma mereceu. O impeachment segue a Constituição. Percebemos o cinismo dos apologistas daquilo-que-seria-golpe-se-golpe-fosse quando eles qualificam o fenômeno: é do “conluio de bandidos” para baixo. Ou seja, tem cheiro de golpe, cara de golpe, discurso de golpe, mas… golpe? Não, não é. Afinal, o que falta ao impeachment para merecer a alcunha maldita? Ruptura institucional? Violação das regras? Mas isso aconteceu em 1964? O STF não acatou a deposição de João Goulart e a eleição indireta de Castelo Branco? Não foi tudo dentro da tal “constitucionalidade”? A questão central aqui é que não se trata de diletantes desinformados das redes sociais. Gaspari, por exemplo, estudou profundamente a ditadura militar. E muitas das pessoas que repetem seus argumentos possuem sólida formação acadêmica, tanto que recorrem a teorias muito bem elaboradas para rechaçar o conluio do PT com as elites. Então vemos especialistas ignorando fatos históricos para endossar suas posições partidárias. E progressistas foucaultianos aplaudindo togados e meganhas como heróis nacionais. E a cúpula do Judiciário repetindo os notórios erros dos antepassados. Por isso acho meio pueril festejar o recuo estratégico de Gaspari e de outros analistas. A natureza do impeachment não depende dos seus juízos clarividentes e seletivos. O problema de apoiar um golpe é deles e do próprio STF. Usem a palavra que preferirem. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.

Ministério Público de São Paulo denuncia legista Harry Shibata por ocultar assassinato da ditadura

por Fernando do Valle O Ministério Público Federal em São Paulo ofereceu na última semana nova denúncia contra o legista aposentado Harry Shibata, acusado de forjar laudo necroscópico de Helber José Gomes Goulart, da ALN, morto pelo Doi-Codi em julho de 1973. Segundo a acusação, o médico deliberadamente ignorou visíveis lesões de tortura no pescoço e na cabeça do corpo do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), assassinado por agentes do Doi-Codi comandados por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em abril deste ano, o MPF de São Paulo havia denunciado Shibata por forjar outro laudo, desta vez a respeito da morte do militante político Yoshitane Fujimori em 1970. Passados quase 43 anos da ação militar que resultou na morte de Goulart, até hoje pairam dúvidas sobre o episódio. Segundo a versão do Doi-Codi, agentes daquele destacamento rondavam as imediações do Museu do Ipiranga quando encontraram a vítima em atitude suspeita. Goulart teria sacado o revólver e atirou contra os agentes, que revidaram, atingindo-o, resultando em sua morte. Romeu Tuma, chefe do Departamento do Departamento de Ordem Política e Social, anotou em requisição de exame necroscópico, ao IML que Helber foi morto às 16h de 16 de julho de 1973, mas a entrada de seu corpo no necrotério ocorreu 8h antes. Além disso, depoimentos de ex-presos políticos apontam que o militante da ALN havia sido preso antes e foi visto no Doi-Codi com a cabeça enfaixada, tendo, portanto, sido internado no Hospital Geral do Exército de São Paulo, no Cambuci. Além disso, estudos sobre o laudo necroscópico realizados a pedido da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e pelo Ministério Público Federal, no curso do procedimento que resultou na denúncia, concluíram que Goulart foi alvejado com tiros feitos de cima para baixo em sua direção, como se ele estivesse deitado ou ajoelhado. O militante também recebeu tiros no antebraço, sinal de que tentou, em vão, se defender. O laudo solicitado pelo MPF foi produzido pelo mesmo Instituto Médico Legal de São Paulo onde Shibata trabalhou por muitos anos, como um dos legistas de confiança da repressão. Ambos os laudos apontam equimoses na cabeça e no pescoço de Goulart, visíveis em fotos do cadáver, que foram ignoradas no laudo necroscópico subscrito por Shibata e Orlando José de Bastos Brandão (já falecido). O mineiro Helber José Gomes Goulart nasceu na cidade de Mariana em 19 de setembro de 1944 e era filho de um militante comunista. Ele começou a trabalhar aos 11 anos de idade e estudou até o segundo colegial, quando mudou-se para São Paulo em busca de melhores oportunidades. Ele começou a militância política cedo, junto com o pai, no PCB. Em 1964, por conta do golpe militar, passou a ser perseguido e respondeu a processo na Auditoria Militar de Juiz de Fora. Depois de militar na Corrente, chegou à ALN e, em 1971, quando a organização começava a se desmantelar, Goulart, já clandestino, é deslocado para São Paulo, onde foi assassinado. Enterrado no Cemitério de Perus, seu corpo só foi identificado 19 anos depois, após a descoberta da vala clandestina. A procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia, pede a condenação de Shibata pelo crime de falsificação de documento público, cuja pena é de 1 a 5 anos, com o agravante de que o crime foi praticado para ocultar crime praticado por outra pessoa e garantir a impunidade. Leia a íntegra da denúncia do Ministério Público. Com informações da Assessoria de Comunicação da Procuradoria da República no Estado de São Paulo. https://urutaurpg.com.br/siteluis/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/ Rubem Fonseca e o silêncio que não apaga o passado

Meu fio de esperança

por Frei Betto Sou vivido. Vi o Brasil passar por muitas crises. O suicídio de Vargas, em agosto de 1954, estragou meu aniversário de 10 anos. JK soube, em 1956, contornar a rebelião militar de Jacareacanga. A renúncia de Jânio, em 1961, me levou às ruas pela primeira vez, em defesa da democracia. O golpe militar de 1964 me arrancou da faculdade de Jornalismo para atirar-me nas masmorras do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). O AI-5 me desempregou do jornal e, meses depois, me conduziu a quatro anos de prisão. Autocrítica da esquerda   Meu sonho, ainda hoje, é o socialismo. Fora da Igreja há salvação. Mas não há salvação para a humanidade fora de um sistema no qual haja partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e onde os direitos humanos estejam acima dos privilégios do capital. Para um sonho se tornar realidade são necessárias mediações. Busquei-as na Ação Católica. Os bispos, pressionados pela ditadura, a desmantelaram. Apoiei organizações revolucionárias contra a ditadura. A repressão as derrotou. Tornei-me eleitor do PT. O partido se deixou contaminar pelo elitismo e a corrupção, em treze anos de governo não promoveu nenhuma reforma estrutural, e calou-se quanto ao socialismo. Hoje, voto PSOL. Meu fio de esperança se prende aos movimentos sociais. Não são perfeitos. Neles há também oportunistas e corruptos. Mas estes são exceções. Porque a base da maioria dos movimentos é a gente pobre que luta com dificuldade para sobreviver. Essa gente costuma ser visceralmente ética. Não acumula, partilha. Não se entrega, resiste. Não se deixa derrotar, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Não sei o que será do nosso Brasil nos anos vindouros. Sei apenas que fora dos movimentos sociais a nação não tem salvação. O PT tentou e se deu mal. Em uma sociedade tão marcadamente dividida em classes sociais, somente o vínculo orgânico com os pobres nos mantém com os pés no chão, a alma repleta de fome de justiça e a cabeça fiel à utopia socialista. A democracia é uma senhora muito ciosa de suas origens. Todas as vezes que tentam prostituí-la, sequestrá-la, corrompê-la, reage e desmascara seus algozes. Ela prefere sempre se abrigar em seu ninho: o protagonismo popular. O capitalismo tenta nos ludibriar, convencer-nos de que democracia é sinônimo de rotatividade eleitoral. Ora, a verdadeira democracia se apoia na economia, na partilha das riquezas; na ecologia, ao cuidar da proteção ambiental; na cultura, ao assegurar a todos o direito de criar e se expressar; e na política, ao dotar todos os cidadãos e cidadãs de poder para monitorar os rumos do Estado e, portanto, da sociedade. Nenhuma esquerda ideológica se sustenta por muito tempo sem este respaldo fisiológico: o contato direto com os movimentos nos quais os pobres se organizam e lutam por seus direitos.  Publicado originalmente no Blog da Cidadania.

A fábrica de ideologia

por Elaine Tavares A Globo mostrou ontem, mais uma vez, o que é ser uma fábrica de ideologia. Coloca como herói alguém que trabalha acima da lei, insufla o golpe, escancara sua posição. Nada de novo para nós que fazemos a crítica cotidiana. A mídia comercial é o braço armado do sistema. Há quem diga que não é bem assim, que não é tanto poder sobre as pessoas. Mas é. Negar isso é fechar os olhos para a realidade. A onda fascistóide que varre o país desde há tempos só cresce, e muito desse crescimento vem da atuação da mídia. Não digo que as pessoas sejam tábulas rasas, que qualquer informação passada pela televisão se encrava e domina. Não. Isso seria estúpido e equivocado. Mas, Theodor Adorno, um dos filósofos da escola de Frankfurt já deu a pista nos anos 50 sobre como essa fábrica de ideologia funciona e como acaba influindo na consciência coletiva. No seu estudo sobre a personalidade autoritária, Adorno mostra que existem na sociedade os fascistas em potencial. Essas pessoas seriam aquelas que já estariam abertas às tendências antidemocráticas da sociedade e, com a instigação sistemática, fatalmente se tornariam autoritárias e passíveis de explicitação do ódio. Esse trabalho foi feito por Adorno para tentar explicar algumas tendências autoritárias na sociedade estadunidense logo após a segunda grande guerra, e ele baseava suas conclusões na experiência vivida pelo nazismo – pouco tempo atrás, que acabou levando ao fanatismo um país inteiro. Ele mostra que as tendências fascistas não estão ligadas ao desconhecimento, à ignorância ou a falta de informação. Se fosse assim não teríamos tantos intelectuais caminhando por essas veredas. A tendência fascista, para ele, é algo que está na consciência e, se bem trabalhada, pode aflorar até mesmo nas chamadas “pessoas de bem”. O fato é que a classe dominante usa os meios de comunicação para insuflar o ódio a tudo aquilo que apareça como um entrave ao seu domínio. Mentiras e preconceitos, repetidos e repetidos, provocam a insurgência do fascista em potencial, aquele que no íntimo do seu ser precisa de um líder, um patrão, um chefe, alguém autoritário e mandão para definir os caminhos. Ele mesmo não se sente seguro em definir seu próprio rumo. E é aí que a televisão – fábrica de ideologia – entra. Como o espaço mais propício para a fermentação do ódio e para a construção de uma sociedade autoritária. Não é sem razão que os meios de comunicação comerciais estejam sempre a massacrar os negros que vivem nas favelas, os pobres, os índios, os trabalhadores que se revoltam, as gentes que se rebelam, os de “abajo”. Todas essas parcelas da sociedade são demonizadas diuturnamente. Milhares de trabalhadores públicos em greve fazendo passeata em Brasília não entram no plantão da Globo, mas meia dúzia de reacionários gritando em frente ao Palácio da Alvorada são elevados ao patamar de “heróis da pátria”. E o que é pior, tudo isso acaba sendo potencializado nas redes sociais, que reproduzem os mesmos meios, as mesmas ideias, à exaustão. Na histeria dos fascistas em potencial já não cabem mais a lei, as regras definidas para viver em sociedade, nada. Só o que vale é fala e a indicação do líder. Com ele vão ao inferno e podem até matar a própria mãe. Dura realidade. Porque um líder que se vale do ódio pode voltar-se contra os seus próprios comandados a qualquer momento, basta que apresentem uma fagulha de pensamento crítico. Registros disso podemos encontrar aos milhares na história da humanidade. Na arte, um filme que mostra bem essa construção da sociedade autoritária é “O senhor das moscas”. Vale a pena ver e pensar um pouco sobre o que vivemos agora mesmo no Brasil e na América Latina. Ontem assistimos a mais um capítulo das investidas da classe dominante para abocanhar o poder de governar de direito. Porque de fato nunca esteve fora das decisões. Apenas suportou a aliança com o Partido dos Trabalhadores porque havia uma conjuntura continental que favorecia a um avanço da ideia de socialdemocracia, de avanço de políticas públicas, de políticas compensatórias. Mas, agora que por toda a América Latina a mão dura do capital vem recuperando seu poder, já não é mais preciso esconder-se na pele de cordeiro. O lobo volta arreganhar os dentes sem vergonha de ser quem é. E, nesse processo de reagendar novas formas de ser governo, nada melhor que espalhar o germe do autoritarismo que está latente em boa parte das gentes. Para isso tem a Globo, a Record, a Band, a Folha e toda a sorte de seguidores. A mão dura, quando é para ser usada em favor dos pobres, não serve. Aí, quem a usa é acusado de louco, ditador e outros quetais, como foram alcunhados Fidel, Che, Chávez. Hoje, vimos nas ruas, a elite e a classe média – em sua maioria – babando, pedindo o regime militar. A favor de quem? Dos pobres é que não. Querem o autoritarismo para garantir privilégios. Mal sabem que quando se acorda o monstro, ele pode pisar em qualquer um. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.

América Latina e seus dilemas

por Elaine Tavares Já vai longe o tempo em que as notícias chegadas dos países irmãos da América Latina enchiam a vida de esperanças. Cooperação, soberania, equidade, mudanças, os ventos cambiantes soprando desde a Venezuela e se espalhando pelo continente. Nada muito revolucionário, mas pequenas e significativas transformações que começavam a cimentar um caminho diferente para uma população sempre subjugada dentro de um capitalismo dependente, no qual só sobrevivem os que mais roubam e exploram. Com Chávez à frente foram criados novos espaços de integração latino-americana como a Unasul, a Celac, o Caricom, bem como um Banco do Sul e uma emissora de televisão que buscava igualmente integrar o continente pela cultura: a Telesul. Durante mais de uma década, esse lugar geográfico denominado América Latina finalmente conseguiu olhar-se e descobrir-se parte de uma mesma proposta, a mesma com a qual um dia sonharam Petión, Bolívar  e Artigas, uma América unida, grande e soberana.   Mas, apesar desses avanços, os Estados Unidos, que acreditam ter como destino manifesto a posse sobre a riqueza e a vida de todos os que vivem abaixo do rio Bravo nunca desistiram de barrar esse sonho. Por isso, em 2002, o governo de Washington jogou pesado no apoio ao golpe contra Chávez. Só que a bravata do empresariado local aliada aos EUA acabou debelada pelo povo nas ruas e pelo exército bolivariano. Foi uma derrota fragorosa que obrigou o governo estadunidense a pensar formas alternativas de destruição do chavismo e da ideia de integração. E, de qualquer forma, mostrava claramente que o tempo dos “golpes” não se acabara. Eles sempre poderiam voltar, se fosse do desejo do governo imperial. Assim, dois anos depois, em 2004, os Estados Unidos desestabilizavam a região do Caribe com a deposição do presidente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide. A partir desse golpe, o país foi invadido pelas tropas da ONU, incluindo aí soldados de países como o Brasil e a Bolívia, que, em tese, deveriam estar alinhados com a Pátria Grande e não com o Império. Já foi mais uma jogada de mestre dos Estados Unidos, pois além de tirar o Haiti da rota da esquerda, criaram desconforto e desconfiança entre os governos latino-americanos. Depois, também no combate contra o avanço das ideias bolivarianas no Caribe, os Estados Unidos fomentaram o golpe em Honduras, no qual os militares locais sequestraram o presidente Manuel Zelaya, deportando-o para Costa Rica. Foi o retorno explícito de uma prática que a América Latina pensava já ter sido vencida. E, apesar de toda a gritaria da comunidade internacional Zelaya não voltou ao cargo e a constituição do país foi rasgada. Os militares golpistas realizaram eleições que foram consideradas ilegais, mas o presidente eleito no pleito imoral acabou sendo reconhecido e a vida seguiu. É que apesar dos percalços e das perdas a corrente bolivariana seguia arrastando dirigentes governamentais, movimentos e sindicatos. Transformações na saúde, na educação, nas matrizes energéticas, tudo tomava novo ritmo. Países como a Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Argentina, Nicarágua, com governos considerados progressistas, iam – cada um no seu ritmo e com suas especificidades – mudando leis, nacionalizando riquezas, distribuindo renda. É claro que tudo isso não se deu sem contradições. A Venezuela não conseguia sair da matriz petrolífera, o Brasil se rendia ao agronegócio, o Equador excluía os indígenas e se aproximava das multinacionais do petróleo e da mineração, o Uruguai cedia aos transgênicos, a Argentina não atendia os trabalhadores. A batalha se dava também internamente em cada país. Então, em 2012, a fábrica de golpes apresenta um novo formato. E ele aparece no Paraguai, onde o presidente Fernando Lugo tentava – ainda que timidamente – dar combate ao latifúndio. Por conta de um conflito entre policiais e camponeses na região de Curuguaty, o qual terminou com 22 mortes, o legislativo nacional apresenta um pedido de impedimento de Lugo, acusando-o de omisso, e num processo relâmpago, eivado de ilegalidades, no dia 22 de junho, o presidente constitucional é deposto pelo Senado paraguaio, numa votação que contou 39 votos a favor e 4 contra. De novo, a gritaria geral dos países latino-americanos e de outras partes do mundo não mudou a realidade. O golpe foi respaldado. Caía mais um governo articulado na ala dos progressistas. No ano seguinte, em março de 2013, a onda bolivariana que embalara mais de uma década de transformações na América Latina, sofre mais um golpe. Morre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que era o principal condutor desse processo. Com ele, desaparece muito da força carismática que carregava multidões e encantava governos. E, a partir daí, abre-se um flanco para que – tal e qual nas guerras de independência – os governos até então alinhados aos sonhos de integração passem a atuar de forma mais individualizada. Chávez, o que puxava as orelhas, o que chamava para a boa direção, já não estava, e cada um tratou de cuidar de si. Mais um ponto para a águia, os EUA, que seguia não apenas à espreita, pronta para o bote, como ajudando no processo – inclusive financeiramente – de revitalização das entidades e organizações conservadoras nos países latino-americanos. Em 2014, os ataques se concentraram na Venezuela, onde tentaram de todas as formas derrubar o governo de Nicolás Maduro. Ajudada pelos erros do novo presidente, a elite local – aliada dos EUA – produziu uma poderosa guerra econômica na qual os venezuelanos se viram sem produtos para consumir, com uma inflação galopante e com o dinheiro desvalorizado. O contexto de caos e carestias levou ao crescimento das forças conservadoras que acabaram vencendo as eleições legislativas em 2015, tirando a maioria do governo. Em 2015 também o Brasil foi sacudido por forte crise política que já se manifestava desde 2013, e que foi crescendo ao ponto de se tornar uma espécie de cruzada contra o PT. Apesar de o governo de Dilma Roussef jamais ter sido um obstáculo para os conservadores e para a elite local, essas forças atuaram fortemente no sentido de derrubá-la do poder. E, como numa

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