Zona Curva

Cultura

O jornalista e escritor Fausto Wolff escreveu: “cultura é arma de defesa pessoal”, esse é o guia dos textos aqui publicados.

Vida e morte de Pasolini

Pasolini -A polêmica morte do cineasta Pier Paolo Pasolini é alvo de especulação até hoje. No dia 2 de novembro de 1975, na praia de Ostia, segundo a polícia, Pasolini foi assassinado pelo jovem Pino Pelosi. Cineasta, jornalista, escritor e poeta, Pasolini filmou, entre muitos outros, Mamma Roma (1962), Saló (1975) e Teorema (1968). Homossexual assumido, Pasolini tinha o hábito de namorar jovens atraentes da periferia romana. O depoimento de Pelosi foi recheado de contradições e vários membros da Justiça italiana já declararam a vontade de reabrir o caso. Teorias de complô político e de participação de mais pessoas no assassinato ainda despertam dúvidas na opinião pública italiana.   Devido ao seu gosto particular por escândalos, e com a fama advinda de seus filmes, Pasolini sofreu diversos tipos de perseguições e processos pela justiça italiana. Tudo era motivo para processá-lo. Sua vida e seus filmes perturbavam a ordem da conservadora sociedade italiana dos anos 60, trazendo sempre questões novas e escondidas sob o véu da hipocrisia. Imagino como fez falta Pasolini no combate à figura dantesca de Silvio Berlusconi. Veja a última entrevista de Pasolini (dois dias antes de morrer):  LEIA TAMBÉM “Quando Fellini sonhou com Pasolini” Pasolini by Ferrara Recentemente, “Pasolini”, do diretor norte-americano Abel Ferrara (Vício Frenetico (1992) e Cidade do Medo (1984)) foi exibido nas salas brasileiras. Ferrara concentra sua narrativa no último dia de vida de Pasolini. O ator Willem Dafoe interpreta o intelectual italiano em sua quarta parceria com Ferrara. Dois filmes já abordaram a morte de Pasolini e apresentaram versões distintas. Para o diretor italiano Marco Tulio Giordana, em seu filme Pasolini – um delito italiano, a morte foi consequência de um grupo político que encomendou seu assassinato. O filme aponta graves erros no processo como provas destruídas, ocultação de evidências e testemunhas não ouvidas. Já para Nerolio, de Aurelio Grimaldi, a morte não passou de crime sexual. Leia análise sobre o filme “Evangelho segundo São Mateus”, de Pasolini. Pasolini e seu combate à sociedade de consumo Em tempos como o de hoje em que a identidade do homem passa necessariamente pelo o que consome, Pasolini é mais atual do que nunca. Para ele, o verdadeiro fascismo era representado pela sociedade de consumo. Ele acreditava que o consumismo, poder desencadeador de toda a agressividade industrial, torna aceitável a exploração e a pobreza.  “Detesto o que é relativo ao ‘consumo’, eu o abomino no sentido físico do termo (…). A antipatia que sinto em meu foro íntimo é tão insuportável que não consigo fixar os olhos por mais que alguns instantes numa tela de televisão. É um fato físico, me dá náusea. Aliás, toda a cultura de consumo me é intolerável, sem apelação” Pasolini previa na época um futuro não muito promissor para a década de 70. O poder industrial transnacional que engloba sistemas econômico-sociais diferentes numa lógica sacrílega foi uma de suas grandes preocupações. Colaborador de importantes publicações italianas, Pasolini começou tratando dos mais diversos assuntos no periódico Vie Nuove entre 60 e 65. Entre agosto de 68 e janeiro de 70, Pasolini escreveu no popular jornal Tempo (em 69, sua tiragem chegou a alcançar 400 mil exemplares), que ele próprio definiu como “uma frente de pequenas batalhas cotidianas”. No últimos anos de sua vida, colaborou com o conhecido Coriere della Sera. Seus ensaios jornalísticos sempre ajudaram a sedimentar a imagem de polemista e crítico que até hoje prevalece. Em seus textos, Pasolini desenvolveu uma argumentação concentrada e estimulante.  Na catarse coletiva com a missão de conquista do homem à lua, Pasolini era voz dissonante:  “antes de mais nada, aborrece-me o nome Apolo, ridículo e retórico resíduo humanista — pesadamente hipócrita — servindo de marca para um objeto produzido pela mais avançada civilização tecnológica; experimento uma estranha antipatia pelos três astronautas, tipos de homens médios e perfeitos, exemplos de como se deve ser, inestéticos mas funcionais, privados de paixão e fantasia, mas impiedosamente práticos e obedientes — absolutamente carentes de qualquer capacidade crítica e autocrítica, verdadeiros homens do poder”. Com pontos de referência fora da situação italiana e “companheiro de viagem”, como se definia, do PCI (Partido Comunista Italiano), Pasolini viveu sob o signo de uma visão imóvel: a burguesia industrial capitalista como “doença” que corrompe inexoravelmente todas as formas de civilização. Partidário de uma leitura desesperada da realidade, Pasolini sempre se destacou com visões muito particulares em sua época, como, por exemplo, sua opinião sobre o chamado Terceiro Mundo. Para ele, o bem-estar como mito subverte o valor tradicional nos países subdesenvolvidos, assim como as novidades da técnica e da informação cancelam todo o passado local. Filho de pai militar e mãe professor, Pasolini publicou aos 20 anos seu primeiro livro, Poesias em Casarsa. Após crescer sobre a massacrante atmosfera do fascismo, graduou-se em Letras. Alguns anos mais tarde, foi morar em Roma onde passa dois anos desempregado em um bairro proletário. Preocupado com a figura do intelectual na sociedade, Pasolini  pregava que o verdadeiro discurso intelectual não devia nunca adaptar-se e sempre levava as forças mais avançadas ao exame, à reflexão, à polêmica, envolvendo massas de leitores. Em Teorema (1968), Pasolini analisa a família burguesa e seus valores. No filme, a estabilidade hipócrita é quebrada com a chegada de um visitante jovem e atraente que fará com que as insatisfações sejam deslevados à medida que o jovem vai se relacionando com cada um deles. A descoberta e a revelação dos desejos sufocados revolucionam a vida familiar. Fonte usada: Pier Paolo Pasolini, de Maria Betania Amoroso, Editora Cosac & Naify. Texto atualizado em 2 de março de 2016. Quando Fellini sonhou com Pasolini

Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade

MANIFESTO ANTROPOFÁGICO – O Manifesto Antropofaágico ou antropófago foi publicado no primeiro exemplar da Revista de Antropofagia, em 1928. O Manifesto seguiu-se ao Manifesto do Pau-Brasil, de 1924. No manifesto de 1924, Oswald já enfatizava a necessidade de criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro, com absorção crítica do que vinha sendo produzido de inovador na cultura europeia na época. Figura ímpar da cultura brasuca e integrante de destaque da Semana de 22, sua ideia de antropofagia cultural influenciou vanguardas e intelectuais na segunda metade do século passado. Oswald morreu na sua amada cidade de São Paulo aos 64 anos O manifesto Antropógafo foi lido por Oswald pela primeira vez na casa de seu amigo Mário de Andrade. Nele, Oswald propõe que somente será possível a criação de uma arte genuinamente brasileira quando o nosso povo mestiço apropria-se (deglute) a arte europeia e produz uma arte completamente nova.  LEIA TAMBÉM “O renascimento do Jango antropofágico”  Leia dois trechos do manifesto: MANIFESTO ANTROPÓFAGO (ou antropofágico) Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi, that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. …   Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.  OSWALD DE ANDRADE em Piratininga, ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.” (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.) Centro Cultural Fiesp recebe mostra sobre o Modernismo Brasileiro Oswald de Andrade telefona para cinco brasileiros

Dia do poeta

  Ontem (dia 20 de outubro), foi celebrado o Dia dos Poetas. Leia poema de nosso colaborador, o poeta Marco Piantan, em homenagem ao dia:   Obrigado a todos os poetas Que dividiram seus infortúnios e alegrias comigo Que me fizeram companhia quando estava sozinho E nas noites mais sombrias Não me deixaram desistir de sonhar   Em suas almas torturadas pude me ver Surpreendido por encontrar Meu próprio pensamento Na cabeça de estranhos Assim reconheci a irmandade de todos os seres humanos Que sozinhos dividiam as mesmas dores O mesmo anseio por amores A mesma paixão por liberdade O mesmo amor pela humanidade   Esses que sabem tirar dos sofrimentos A beleza de suas verdades   Que nunca deixam em paz Os carrascos do amor Que não se importam com as chantagens do destino Para criar as visões de seus paraísos   Esses que perdidos num mundo sujo Não deixam de encontrar a beleza Para que ninguém se esqueça Que no fundo o que vai sobrar da vida Nos corações dos nossos irmãos São os sonhos das poesias

Martírio no claustro

Outro dia, vi alegres freirinhas vendendo pães caseiros pelo bairro e imaginei quem escolhe tornar-se freira hoje em dia. Algumas possibilidades: tímidas interioranas, adolescentes manipuladas por mães e avós religiosas ou moças pobres e/ou idealistas. Mesmo as mais convictas noviças teriam suas certezas abaladas se lessem o clássico A Religiosa, do dramaturgo e romancista Denis Diderot, lançado em 1796, após sua morte. Estamos no século 21 e talvez as coisas tenham mudado um pouco nos conventos mas o martírio sofrido no claustro pela personagem principal, Suzanne Simonin, abala a fé da mais fervorosa das beatas. O livro relata a história de Suzanne, filha bastarda de uma família aristocrática, e obrigada a se recolher ao convento. O seu calvário tem um pouco de tudo: abandono familiar, bullying por parte das outras freiras, perseguição pela madre superiora e assédio lésbico. O romance colocou a mão na ferida dos abusos praticados nos conventos franceses da época. As duas Religiosas Quarenta e sete anos depois da adaptação do livro ao cinema pelo diretor francês Jacques Rivette, em 1966, um dos artífices da Nouvelle Vague, o diretor, também francês, Guillaume Nicloux aceitou o desafio de realizar uma nova adaptação cinematográfica do romance. Inevitável a comparação entre os dois filmes. Enquanto Rivette centra seu longa mais na crueldade da Igreja e na hipocrisia social da época que transformam Suzanne em uma verdadeira prisioneira, Nicloux filma as agruras de Suzanne de maneira mais palatável. Talvez uma certa condescendência do filme de Nicloux com a Igreja venha do fato de sua confissão de que quase tornou-se padre. “Salvou-me o rock-n’-roll, em vez de padre, virei punk”, confessou o diretor ao crítico Luiz Carlos Merten, no jornal O Estado de São Paulo na última sexta (dia 6). Na nova versão, Suzanne é vivida pela atriz Pauline Étienne. Sua expressão de moça desamparada cai como uma luva para o papel e nos desperta desmedida compaixão. Já o trabalho da magistral Anna Karina, que viveu Suzanne no filme de 66, são outros quinhentos: de inalcançável sofisticação psicológica. O filme de Nicloux conta com um trunfo: a bela interpretação de Isabelle Huppert da madre superiora do segundo convento de Suzanne e que tenta iniciar a protagonista no caminho da homossexualidade. A atriz de 60 anos e extenso currículo no cinema francês e europeu dá vida a uma madre atormentada pelos dilemas de seus desejos lésbicos. No filme de Rivette, assistimos de forma explícita a cumplicidade da Igreja na época com as absurdas regras sociais do status quo vigente. A Igreja corroborava com a opressão de uma aristocracia que teria sua cabeça cortada na Revolução Francesa, em 1789. Truffaut costumava dizer que a Nouvelle Vague “só aconteceu por causa do empenho de Rivette”. Um dos diretores menos conhecidos do movimento cinematográfico francês, Rivette arranca uma atuação arrebatadora da atriz preferida de Godard, a dinamarquesa Anna Karina. Em seu lançamento na França, a igreja tentou barrar a exibição do filme, o que aguçou a curiosidade do público e garantiu seu relativo sucesso. Rivette foi tema de mostra em São Paulo no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), entre o final de junho e começo de julho. O livro de Diderot é baseado na história de Margueritte Delamarre, cujo pai a confinou em um convento quando tinha apenas três anos. Mesmo tendo apelado à Justiça contra seus votos forçados, em 1752, ela perdeu o processo e permaneceu enclausurada até a morte. Assista ao filme completo com legendas em espanhol: Ambos os filmes estão disponíveis em DVD. Trecho do romance de Diderot “situai um homem numa floresta, ele tornar-se-á feroz; em um claustro, onde a ideia da necessidade junta-se à da servidão, é pior ainda; de uma floresta se pode sair, mas não de um claustro; é-se livre na floresta, é-se escravo no claustro. É preciso talvez com mais vigor de alma para resistir à solidão do que à miséria; a miséria envilece, a clausura deprava. Valerá mais viver na abjeção do que na loucura? É o que não ousarei decidir; mas cumpre evitar a uma e a outra” https://www.zonacurva.com.br/o-evangelho-segundo-pasolini/

Hilda Hilst: a obscena senhora silêncio

A busca de uma trincheira em que se viva literatura. Além de seus livros, sempre me fascinou a atitude de Hilda Hilst, que, aos 33 anos, abandonou Sampa e rumou para sua Casa do Sol, há 10 quilômetros de Campinas, um verdadeiro refúgio para a criação artística como profissão de fé. Hilda viveu lá por décadas rodeada por 30 cachorros e gatos e recebendo a visita de amigos como o escritor Caio Fernando Abreu (que até morou por lá um período), o grande crítico Leo Gilson Ribeiro, a escritora Lygia Fagundes Telles, entre outros. Recentemente, o imóvel foi tombado, conforme informa o site da prefeitura de Campinas. “Hoje, a “Casa do Sol” atua como difusor de produções culturais, hospedagem de estudantes bolsistas que desenvolvam projetos cuilturais e guarda o acervo pessoal de Hilda Hilst”, informa o site. O curta A obscena senhora silêncio (2010), de Alexandre Gwaz e Leandra Lambert, mostra um pouco do cotidiano na Casa do Sol, os contatos de Hilda com discos voadores (é isso mesmo) e figuras imaginárias. Tudo embalado em uma atmosfera sombria ao som de Debussy e Satie. Hilst morreu em 2004 antes de completar 74 anos. Conhecida pela sua produção poética, Hilst também publicou crônicas no jornal campineiro Correio Popular. Numa delas, Hilst mostra seu ativismo único sobre o escândalo da hora (estávamos em 1993): o deputado Inocêncio de Oliveira e suas maracutaias. No texto, ela convoca “várias senhoras da terceira idade, eu inclusive…” à criação do EGE (Esquadrão Geriátrico de Extermínio), em que munidas de bengalas com estiletes na ponta besuntadas de curare, veneno usado pelos indígenas nas pontas de flechas, espetariam no “distinto buraco malcheiroso desse vilões” (políticos). Toda mulher é meio Leila Diniz* Na mesma crônica, Hilst dispara o seguinte poema, publicado originalmente em seu livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, de 1974: de cima do palanque de cima da alta poltrona estofada de cima da rampa olhar de cima LÍDERES, o povo Não é paisagem Nem mansa geografia Para a voragem Do vosso olho POVO. POLVO UM DIA. O povo não é o rio De mínimas águas Sempre iguais Mais fundo, mais além E por onde navegais Uma nova canção De um novo mundo E sem sorrir Vos digo: O povo não é Esse pretenso ovo Que fingis alisar, Essa superfície Que jamais castiga Vossos dedos furtivos POVO. POLVO. LÚCIDA VIGÍLIA. UM DIA. (extraído do livro Cascos & Carícias, Nanquim Editorial, 1998, página 36)

A classe mérdea

“Empanturrado ontem e bebum, no coquetel, escarneci e, de voz empastada, eu disse classe mérdea. Com este embrulho no estômago, pesadão e ressacado, pertenço a que classe senão a ela? … Mas da classe média você não vai escapar, seu. A armadilha é inteiriça, arapuca blindada, depois que você caiu. Tem anos e anos de aperfeiçoamento, sofisticação, tecnologia, ah o cartão de crédito, o cheque especial, o financiamento do telefone, da casa própria e do resto da merdalhada que for moda e, meu, sem ela você não vive. Não respira, é ninguém. Ou melhor, é nada: você já virou coisa no sistema. E não pessoa. Dane-se!” João Antônio em Abraçado ao meu rancor (1986) – páginas 82 e 84 (Editora Cosac & Naify). Dez desabafos do escritor João Antônio

Di-Glauber na web

Di-Glauber – “Juntos, bebemos champagne, mescal, uísque, e Paraty, juntos, sorrimos e cantamos no México e em Paris…” Os versos frenéticos de Glauber Rocha fazem parte de sua insólita homenagem ao amigo e pintor, Di Cavalcanti. Di-Glauber foi rodado no velório do pintor em 26 de outubro de 1976 no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro. Lançado em 1977, o curta-metragem foi interditado por Elizabeth Cavalcanti, filha adotiva do pintor, em 1981, que alegou danos morais. Em tese de mestrado defendida na ECA-USP (Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo), o advogado José Mauro Gnaspini questiona a proibição. Segundo ele, a filha de Di moveu ação contra a Embrafilme, detentora dos direitos comerciais. “O cineasta não poderia transferir o seu direito a ninguém, só ele tinha condições de defender o seu filme. O direito do autor é inalienável”, explica Gnaspini. Leia mais no jornal da USP em http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp659/pag13.htm À sua maneira, Glauber exalta as qualidades do artista plástico carioca, o chamando de mestre e irmão. Em viagem onírica, Glauber encara a morte de Di como celebração à arte. A imagem de Di Cavalcanti no caixão exala um pouco de morbidez e talvez tenha motivado o processo da filha do pintor. Antônio Pitanga sambando, trilha sonora com Pixinguinha e “Nega do Cabelo Duro”, Di-Glauber é o prenúncio da busca da vanguarda absoluta por Glauber que desemboca na piração de Idade da Terra (1980), seu último filme. A Estetyka do Sonho de Glauber Rocha

O terrorismo poético de Hakim Bey

  “Avatares do caos agem como espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos & sentidos Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola & da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias”. Hakim Bey (extraído do livro Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares, página 12, Editora Conrad).   Hakim Bey, pseudônimo do historiador e poeta Peter Lamborn Wilson, defende em vários livros a guerrilha simbólica e midiática contra as corporações e os meios de comunicação hegemônicos. O revolucionário Bey cunhou a expressão terrorismo poético. Atos desse ‘terrorismo do bem’ seriam, por exemplo, arte-xerox sob o limpador de pára-brisas de carros estacionados, slogans escritos com letras gigantes nas paredes de playgrounds. Ideias que servem de inspiração até hoje para artistas de rua e atos de protesto de movimentos como Occupy. Wilson nasceu em Baltimore, Estados Unidos, em 1945, e estudou na tradicional Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Após uma longa viagem à Ásia e Oriente Médio, fixou residência no Irã (pré-revolução islâmica), onde estudou sufismo, corrente mística do islamismo. Bey se considera anarquista ontológico, modo de anarquismo (criado por ele) apocalíptico e místico. Autor de diversos livros, Bey-Wilson teve dois de seus principais livros Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares e TAZ, zona autônoma temporária, editados no Brasil pela Conrad. A TAZ é descrita no livro de mesmo nome como “utópica no sentido que imagina uma intensificação da vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetração do Maravilhoso na vida”. Para o escritor, a internet, ou melhor, a contra-net (termo para indicar o uso clandestino e rebelde da web) serve para conectar as várias TAZs. Não muito comentado nos dias de hoje, Bey fez a cabeça de estudantes e líderes do movimento antiglobalização, hackers e ativistas nos anos 80 e 90. Luther Blissett de olho na grande mídia brasuca

Comédia romântica tarja preta (“O lado bom da vida”)

História contada à exaustão, o roteiro de O Lado bom da vida (Silver Linings Playbook) baseia-se em dois corações sofridos em busca de redenção. O título em português com cara de livro de autoajuda esconde um filme com pretensões de manual das relações amorosas contemporâneas, regado a antidepressivos e remédios controlados. Se, por um lado, a intenção resultou em uma surpreendente indicação ao Oscar de melhor filme e mais 7, inclusive de melhor ator (Bradley Cooper) e atriz (Jennifer Lawrence). De outro, o filme utiliza clichês de comédias românticas como ‘o amor sempre vence’, ‘a paixão pode arrebatar a qualquer um’ e por aí vai. O protagonista Pat (Cooper) sofre de transtorno bipolar e surta ao flagrar a traição de sua mulher. Após 8 meses internado em uma clínica, volta a viver na casa dos pais. Em jantar na casa de um amigo, Pat conhece Tiffany (Lawrence). A identificação do casal se dá em um engraçado bate-papo sobre o efeito de remédios psiquiátricos. Tiffany também passou por maus bocados com a morte do marido policial e foi demitida ao transar com 11 colegas de trabalho. O filme foi feito sob medida para a nova estrela jovem, Jennifer Lawrence, dona de uma beleza nerd. Os dois passam a se encontrar para dançar, paixão de Tiffany, e o resto você já sabe. Alguns achados cômicos do filme acontecem ao retratar o desajuste social e emocional do casal. Rir da loucura alheia é sempre bom. Se identificar com ela sem culpa, melhor ainda. Mas, parece que, com transtorno bipolar não se brinca. Robert de Niro, que interpreta o pai de Pat, o típico gringo e apostador inveterado de football, emocionou-se em um programa de televisão ao falar do filho do diretor, David Russell, que sofre do transtorno. [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=IxJKp7Qgcls&feature=player_embedded#!]  

A saga da vanguarda poética paulistana

A busca pelo companheirismo sempre foi a urgência de muitos criadores e fez surgir movimentos artísticos e literários. A efervescência de determinada época, as coincidências e as amizades levam artistas ao convívio entre iguais e incrementa e, por vezes, até modifica o trabalho solitário de cada um deles. As reuniões no apartamento da escritora Gertrude Stein na rue de Fleurus, na rive Gauche em Paris na década de 20 reunia talentos do calibre de Picasso, Apollinaire e Jean Cocteau. A revista Cahiers du Cinéma na década de 60, também em Paris, juntava em sua redação diretores de cinema como Godard e Truffaut. Sem paralelos e exageros, isso aconteceu na Sampa entre as décadas de 60 e 80. No meio do regime repressivo brasileiro, São Paulo abrigava a vanguarda em várias searas artísticas. Na música com Arrigo Barnabé, Ira!, Itamar Assumpção, Titãs e Joelho de Porco. No teatro, com José Celso Martinez e Antunes. Nos quadrinhos, Angeli com seu Chiclete com Banana. E, na literatura, a turma dos ‘beats paulistanos’:  Roberto Piva, Cláudio Willer, Roberto Bicelli, Antonio Fernando de Francheschi, entre outros. Em belo trabalho de pesquisa (40 entrevistas entre 2007 e 2010), o livro Os Dentes da Memória, de Camila Hungria e Renata D’Elia, narra em formato de longa entrevista as histórias da vanguarda poética paulistana. Os excessos, os causos e os arroubos do grupo são contados principalmente com base nos relatos dos dois principais poetas dessa geração: Roberto Piva e Cláudio Willer. O intenso Roberto Piva exercia uma espécie de liderança anárquica no grupo. Verborrágico, vivia segundo seu lema: “eu digo que o verdadeiro poeta é marginal”. Cláudio Willer, mais centrado (dentro do possível), adota tom mais lúcido em suas lembranças. Willer foi o tradutor da obra que realmente fez a cabeça dessa geração, Cantos de Maldoror, o genial livro do enigmático poeta Lautréamont. Apesar da profunda admiração dos poetas do período pelos escritores beats norte-americanos, o uruguaio Lautréamont  traduziu como poucos a atmosfera dos sixties: “recebi a vida como uma ferida, e proibi ao suicídio que curasse a cicatriz.” O clima desses artistas pode ser experimentado pela leitura do manifesto Bules, bilis e bolas: “Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento. A vida não pode sucumbir ao torniquete da Consciência. A Vida explode sempre no mais além. Abaixo as Faculdades e que triunfem os maconheiros. É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa Alma Fecal. Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude. Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso? Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a Liberdade.” No papel de agregador do desregrado movimento figura o editor Massao Ohno. Sua pequena editora publicou muitos primeiros livros de alguns escritores e poetas. Como ele próprio explica: “não se tratava de uma editora que modificasse as normas vigentes. Havia somente a necessidade de criar uma nova maneira de divulgar trabalhos pioneiros. Assim surgiu a Coleção dos Novíssimos, para publicar gente que desse um perfil próprio à sua época.”  Saiba mais sobre o editor Massao Ohno. Em plena ditadura militar, Roberto Piva polemizava com os poetas identificados como de esquerda e os poetas concretos. Piva também chegou a defender o anarco-monarquismo e, nos anos 90, a declarar apoio ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Sem papas na língua, Piva comete heresias imperdoáveis aos esquerdistas empedernidos:: ” a esquerda foi mais repressiva que os militares. Eles tinham a hegemonia da intelectualidade…. flertei com todas as correntes que eram contrárias à ditadura. Mas você não precisava ser marxista para ir contra a ditadura.” O escritor João Silvério Trevisan resume bem o pensamento político de Piva: “o Piva se desdiz com certa frequência. Mais isso não quer dizer que ele seja incoerente. Sua maior coerência é justamente ter sido fiel à não separação entre poesia e vida. Essas falas e opiniões extremas são parte de uma irresponsabilidade criativa poética que ele próprio considera importante em si mesmo”. Willer ainda complementa sobre as contradições políticas do amigo: “em matéria de política. Piva sempre foi de uma oscilação notável.” Sempre mais comedido, Cláudio Willer se embrenhou na política cultural e exerceu cargos públicos a partir dos anos 80 como assessor do Ministério da Cultura e outros, além de ter ocupado por 4 mandatos a presidência da União Brasileira dos Escritores. Em 2010, a vida segundo Eros de Piva encontra Tânato em péssimas condições:  “aos 72 anos, tremendo e com alguma dificuldade para ler, estava cada vez mais difícil complementar o orçamento. Sem convênio médico, Piva contava com o SUS e com a ajuda de amigos para bancar seu tratamento”. Lembrei do triste fim de um dos maiores críticos literários desse país, Leo Gilson Ribeiro (que acompanhei bem de perto) e também precisou da ajuda de amigos nos seus últimos meses. A falta de grana maltrata até o fim quem se dedica de alma aberta à literatura no Brasil.  Visão de São Paulo à noite (trecho) (poema antropófago sob narcótico)   Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas acende velas no meu crânio há místicos falando bobagens ao coração das viúvas e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes chupando-se como raízes Maldoror em taças de maré alta na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida  a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo a lua não se apóia em nada eu não me apóio em nada sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas teorias simples fervem minha mente enlouquecida… O homem-livro Massao Ohno