Zona Curva

Cultura

O jornalista e escritor Fausto Wolff escreveu: “cultura é arma de defesa pessoal”, esse é o guia dos textos aqui publicados.

O rosto no cinema de Ingmar Bergman por Gilles Deleuze

“O quanto se é tentado a se deixar prender aí, a se embalar aí, a se agarrar a um rosto…” Gilles Deleuze e Felix Guattari Mil Platôs, vol.3, p. 56. O que os closes de rostos podem nos mostrar nos filmes de Ingmar Bergman? Pensemos uma articulação entre o rosto e a noção de Corpo sem Órgãos, desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari, a partir de escritos de Antonin Artaud. Alguns elementos do cinema do diretor sueco se apresentam como palco privilegiado para pensar o papel do rosto e do close up na cultura contemporânea. Cultura que centraliza no rosto a potência do falso. Evocando tanto no corpo, como no processo de individuação e na subjetividade, uma sensação de aprisionamento – que chamamos liberdade. “Existem três máscaras: a que pensamos que somos, a que realmente somos, e aquela que temos em comum” Jacques Lecoq A Vida Como Obra de Arte Podemos dizer que o rosto é a única parte do corpo que se afirma e que ajuda a decifrar o Ser e suas ficções. Entretanto, o close no cinema criou uma aura em torno do rosto. O rosto vende. O primeiro plano do rosto parece ser a diferença entre o teatro e o cinema. Toda a questão das máscaras com suas representações de duplos pretenderiam apresentar ou representar-fixar, afirmar um caráter ou um devir a partir da concentração no close do rosto. O rosto é inumano, o close apenas mostra essa característica, não acrescenta nada. Com esta frase, rapidamente concluímos o que pensam Deleuze e Guattari. Na opinião de Deleuze, Ingmar Bergman levou o rosto na direção do vazio. Em Persona (1966), duas mulheres se fundem pelo rosto. Misturam-se… “O cinema de Bergman pode encontrar sua finalidade no apagar dos rostos: ele os terá deixado viver o tempo de cumprir sua estranha resolução, mesmo vergonhosa ou odiosa”. (2) (…). “Em Persona é inútil se perguntar se são duas pessoas que se pareciam antes ou que passam a se parecer, ou, ao contrário, uma única pessoa que se duplica. Não é nada disso. O primeiro plano apenas impeliu o rosto até essas regiões onde o princípio de individuação deixa de reinar. Eles não se confundem porque se parecem, mas porque perderam a individuação, bem como a socialização e a comunicação. É a operação do primeiro plano. O primeiro plano não duplica um indivíduo, assim como não reúne dois indivíduos – ele suspende a individuação”(…)” O primeiro plano é ao mesmo tempo a face e seu apagar.” . (3) Em O Sétimo Selo (1956, imagem abaixo), o cavaleiro que volta das cruzadas onde lutou pela cristandade. Começa, entretanto, a duvidar da existência de Deus, pois tudo é destruição. Defronta-se com a Morte, que veio buscá-lo, e propõe uma partida de xadrez para adiar a efetivação de sua morte. Questiona Deus, procura Deus. Procura o rosto de Deus, já não consegue ver que Deus fez seu rosto a sua imagem e semelhança… Talvez essa a maior destruição de todas. Busca a salvação em Deus quando ela está em fugir dele. A tensão se dá entre rostificação e traços de rosticidade. O cavaleiro parece buscar a rostificação, a territorialização (homogeneização universalizante) do rosto; não suporta a desterritorialização (heterogeneização singularizante) do rosto pelos traços de rosticidade… Ele não suporta se liberar de Deus, da ordem; anseia por uma volta ao estado de fantasma, um duplo decaído de si mesmo, negando a vida enquanto fluxo no acaso. “Quero confessar com sinceridade, mas meu coração está vazio. O vazio é um espelho que reflete em meu rosto”.(…)”Quero que Deus estenda as mãos para mim… que mostre seu rosto, que fale comigo !”(4) Jean-Luc Godard, o pierrô? O cineasta sueco Ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918 e morreu em 30 de julho de 2007. Sendo cópia, ele agirá por repetição reativa de Deus e não enquanto repetição ativa de si mesmo. Articulando aqui o conceito nietzschiano de eterno retorno pelo ponto de vista deleuziano, repetir Deus equivale a tornar-se ressentido, um homem pequeno… “O eterno retorno do homem pequeno, mesquinho, reativo, não faz apenas do pensamento do eterno retorno qualquer coisa de insuportável; faz do eterno retorno em si mesmo qualquer coisa de impossível, introduz a contradição no eterno retorno”. (5) Em Gritos e Sussurros (1972), após uma seqüência de situações, o personagem que protagoniza a ação é apresentado em close sobre fundo escuro por alguns segundos – as vezes apenas uma metade do rosto é iluminada. Figuração de uma divisão interna, os personagens não conseguem ultrapassar o jogo da contradição. Não se trata também de ser capaz de unir as duas metades de si – o que ainda seria trabalhar com a contradição. No jogo do eterno retorno, o que retorna não cessa de retornar. Não haveria um momento em que encaixariam suas metades e seriam felizes para sempre. No jogo do eterno retorno, esses rostos pela metade sugerem o retorno do ressentimento. Sugerem a não percepção de que a felicidade está na repetição ativa, não de duas metades, mas da multiplicidade que nos constitui enquanto seres do devir (explodindo o pensamento da contradição). Nesta repetição, retorna a alegria. Retornamos como diferença. Outro momento de Gritos e Sussurros mostra as irmãs se relacionando depois de muitos reencontros abortados (abaixo). Neste ponto Bergman corta o som do diálogo e o substitui pela música de um violoncelo. Elas estão de frente uma para a outra e de perfil para a câmera. Em vez de dois rostos, pensemos num rosto rasgado ao meio. O olho de cada uma sendo parte de um mesmo rosto que agora está de frente para a câmera – da mesma forma, a boca e o nariz. Como num retrato de mulher pintado por Picasso, o rosto não vem já organizado, pronto. Ao contrário, ele vem como é, desorganicizado (pois ele não é organismo) e suplicando para que não o organizem. Talvez, se conseguirmos suportar não organizar o espaço (como tendemos a fazer sempre), possamos captar os elementos do rosto de outra forma. Olhos, narizes, bocas, testas, bochechas e sobrancelhas, enquanto elementos que engendram a sensação de um rosto – mais do que servir de elementos de quebra-cabeças a serem ordenados, organizados, organicizados.

Grândola Vila Morena, a canção que embalou a Revolução dos Cravos

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. Neste vídeo, falamos da história da música Grandôla Vila Morena do português Zeca Afonso. ASSISTA:       Grândola Vila Morena foi escrita por Zeca Afonso em 1964 e lançada no álbum “Cantigas de maio” em 1971. Grândola tornou-se símbolo da Revolução dos Cravos que libertou Portugal da ditadura em 25 de abril de 1974. O regime de exceção em Portugal durou 41 anos, de 1933 a 1974. Durante o período, Portugal viveu boa parte desse período nas mãos de António de Oliveira Salazar, que morreu em 1970. Antes de viver alguns anos em Moçambique, o cantor e compositor Zeca Afonso já havia sido perseguido pela temida PIDE, polícia política do governo português, e duas de suas músicas foram censuradas: “Menino do bairro negro” e “Os Vampiros”. Na última, Zeca cantava: “Eles comem tudo e não deixam nada”, recado direto ao governo.     A música foi a senha para o início do levante quando foi tocada logo após a meia noite na Rádio Renascença e foi ouvida pelas tropas que lideraram a revolução em diversos quartéis.   Zeca Afonso morreu em 23 de fevereiro de 1987, mas sua canção é sempre lembrada em protestos políticos em Portugal e outras partes do mundo. Outras versões da música:   Nara Leão:   A banda punk paulistana 365:   Garotos Podres:   Banda punk Juventude maldita: Grândola Vila Morena entoada por espanhóis:   Os Autoramas:   Grândola ao vivo:   Amália Rodrigues: Letra completa da música: Grândola, vila morena,Terra da fraternidade,O povo é quem mais ordenaDentro de ti, ó cidade. Dentro de ti, ó cidade,O povo é quem mais ordena,Terra da fraternidade,Grândola, vila morena. Em cada esquina um amigo,Em cada rosto igualdade,Grândola, vila morena,Terra da fraternidade. Terra da fraternidade,Grândola, vila morena,Em cada rosto igualdade,O povo’é quem mais ordena. À sombra duma azinheira,Que já não sabia a idade,Jurei ter por companheira,Grândola’a tua vontade. Grândola’a tua vontadeJurei ter por companheira,À sombra duma azinheira,Que já não sabia a idade. As várias versões da música Bella Ciao   Fascistas, no pasarán

A cultura e o planejamento da cidade

por Almandrade A produção cultural e o planejamento urbano que presenciamos e consumimos refletem a época de políticos, burocratas e empresários à frente dos destinos da cidade. Se o planejamento foi levado à condição de aspirina para resolver um mal incurável (a desordem urbana), a cultura foi transformada em divertimento descartável para uma população urbana que corre desesperada atrás de um momento de ócio. A revolução industrial criou uma obsessão pelo progresso, mas, em relação ao mundo do pensamento, o homem pouco avançou, ao contrário, reduziu sua capacidade de reflexão, criando um tipo de sociedade que privilegia o consumo e despreza as ideias. Paradoxalmente, o aumento da informação resultou na diminuição do repertório. A cidade moderna, administrada pela economia e por legislações que nos são impostas, é um supermercado com um estoque de produtos e tecnologias que precisa ser comercializado para gerar emprego, renda e desenvolvimento econômico. Não é mais o espaço da solidariedade, mas um campo de concentração de empregados e desempregados, de guetos, de proprietários isolados, com mínimas possibilidades de trocas de experiências entre indivíduos de grupos diferentes. É a cultura dos condomínios fechados, das praças privatizadas, do paraíso dos shoppings. Até a arte deixou de ser um “exercício de liberdade” como imaginava o crítico Mário Pedrosa e passou a ser julgada como um produto ou espetáculo do mercado cultural. A prática de um conhecimento, quando subordinada aos interesses que negam o princípio desse conhecimento e o bem comum, é também a negação da cidadania. A arquitetura, a arte, o desenho da cidade e dos objetos deixaram de ser dispositivos de acomodação e satisfação do homem com o meio ambiente onde vive; e passaram a ser o exercício burocrático de desenhar ou estetizar o território, de adaptar a cidade para a razão perversa de uma sociedade que nega os valores e a ética em nome do crescimento econômico e da concentração de renda que marcam o cotidiano da vida moderna. Na produção da cidade, a atividade intelectual foi excluída e substituída por uma relação de trocas e favores. Nesse ambiente urbano, com qualidade de vida discutível e um estado de regressão cultural, a festa, ou melhor, o espetáculo, é sempre o alvo das denominadas políticas culturais que desconhecem o processo do fazer cultural e as questões mais evidentes, como a diversidade, a conservação e a transformação das linguagens artísticas e suas leituras. O que os administradores da cultura esquecem algumas vezes é que as artes têm suas próprias materialidades, não são campos de pouso para outras políticas, nem mesmo as ditas culturais que ignoram problemas acerca da tradição, do moderno e do contemporâneo, além da origem, da história dessas linguagens e da lógica de suas revoluções. Enquanto artistas, arquitetos, intelectuais, produtores de bens artísticos, mesmo excluídos do processo de decisão, temos o compromisso de resgatar a reflexão sobre as práticas culturais e a imagem da cidade. Temos uma responsabilidade, neste momento, que é tomar uma decisão enquanto é possível para o futuro de nossas cidades, antes que a economia o determine para nós. Lutemos contra uma cidade sem poesia, sem memória e sem história, um abismo de simulacros e referências artificiais. Uma cidade tem sentido quando tem uma história e uma identidade. Não podemos imaginar o futuro sem descortinar a memória e contemplar o patrimônio nela guardado. A cultura na qual estamos mergulhados é responsável por essa cidade que estamos edificando, da especulação imobiliária, da disputa do metro quadrado, como se o espaço urbano fosse apenas uma mercadoria e não o lugar da convivência e da liberdade. Isto pode significar o fim da concepção de cidade que determinou sua origem. A universidade, uma instituição por excelência da cidade, vem se afastando de seus princípios fundamentais para atender às demandas do mercado de trabalho em detrimento da especulação do pensamento. Sua função não era formar mão-de-obra especializada, mas estimular a reflexão, muitas vezes sem mercado de trabalho, sem a qual a vida cultural de uma cidade entra em declínio. A cidade surgiu como o lugar do encontro com o outro, do diálogo. Essa cultura das comunidades restritas, do gozo sem desejo, do jogo de interesses privados, onde só os semelhantes interagem, fez com que ninguém se sentisse comprometido com a preservação do espaço físico, do meio ambiente, dos valores, da história, dos bens coletivos. A competição, em lugar da cooperação, reduziu o sujeito urbano a força de trabalho e consumidor de produtos, e inventou uma cidade que não fala mais de nossos afetos e paixões. Mas se o sonho ainda não acabou, temos imaginação e raciocínio, vamos alimentar a vontade de reinventar a cidade e suas instituições para recuperar o humano, a comunicação, a solidariedade e o encontro das diferenças. Texto do livro “Escritos sobre a arte” de Almandrade. O fim da arte (como meio de conhecimento)  

O fim da arte (como meio de conhecimento)

por Almandrade Não temos a capacidade de destilar em palavras as experiências visuais que fazem o belo repousar naquilo que é apreendido pelo olhar. Uma obra de arte é tudo que ela contém: forma, textura, cor, linhas, conceitos, relações etc. É aquilo que se vê, e o que se diz não corresponde exatamente ao que se vê. Não representa nada como imagem de outra coisa. E para ler um trabalho de arte é necessário se partir de um modelo (referências, informações…). Existem códigos a priori (aqueles utilizados pelo artista) e códigos a posteriori (aqueles utilizados pelo espectador). A virtude da arte é afirmar um conhecimento, propondo instrumentos que seduzem a inteligência. A invenção de uma linguagem é o resultado de um exercício paciente de contemplar outras linguagens. Como todo discurso, é resultado de outros discursos. Exige-se um método. A arte é o que está além dos limites de tudo o que se considera cultura; não pode se restringir a um exótico experimento ou aparência da superfície de um trabalho, que fica para trás, como uma coisa vazia no primeiro confronto com o olhar que pensa. A arte, entendida como meio de conhecimento, hoje em dia, vem cedendo lugar a uma experiência ligada ao lazer e à diversão, que envolve outros profissionais como responsáveis pela sua legitimação: o curador, o empresário patrocinador e organizador de eventos, marchands, profissionais de publicidade, administradores culturais e captadores de recursos. Com as leis de incentivo à cultura e a presença marcante da iniciativa privada, paradoxalmente, a arte chegou a um limite, o fim da obra, do trabalho ligado a um saber. E o artista, nem artesão e nem intelectual, sem dominar qualquer conhecimento, está cada vez mais sujeito ao poder do outro. As grandes mostras são grandes empreendimentos para atender à indústria do entretenimento (mais empresarial e menos cultural), que movimentam uma quantidade significativa de recursos e envolve um número assustador de atravessadores. As contradições modernidade/tradição, contemporâneo/moderno neste início de século cede lugar a uma outra contradição: artistas que pertencem ao métier e artistas estranhos ao métier, inventados por empresários da cultura, cujos trabalhos se prestam para ilustrar uma tese ou teoria imaginária de um suposto intelectual da arte e garantir o retorno do que foi investido pelo patrocinador e pelo comerciante de arte. Uma mercadoria fácil de investir, sem risco de perda, basta uma boa campanha publicitária. O artista pode ser substituído por um ou por outro, a obra é o menos importante. Aliás, é o que a indústria do marketing tem feito com as mostras dos grandes mestres como Rodin, Manet etc, pouco importa as obras desses artistas e sim o nome e o patrocinador. A publicidade leva consumidores/espectadores como quem leva a um shopping center. A quantidade de público garante o sucesso. O público é como o turista apressado, carente de lazer cultural que visita os centros históricos com o mesmo apetite de quem entra numa lanchonete para uma alimentação rápida. Na Sociedade do Espetáculo, conforme batizou Guy Debord, regida pela ética do mercado, o artista sem curador, sem marchand, sem patrocinador, é simplesmente ignorado pelas instituições culturais, raramente é recebido pelo burocrata que dirige a instituição. Seus projetos são deixados de lado. Também pudera, essas instituições, sem recursos próprios, têm suas programações determinadas pelos patrocinadores. Numa sociedade dominada pelo império do marketing, a realidade e a verdade são mensagens veiculadas pela publicidade que disputa um público cada vez maior e menos exigente. A vida é vivida na especulação da mídia, na pressa da informação. E neste meio, a arte é uma diversão que se realiza em torno de um escândalo convencional, deixando de lado a possibilidade do pensamento. O fantasma do “novo”, que norteou a modernidade, foi deslocado para o artista que está começando, pelo menos novo em idade, o artista/atleta, a caça de novos talentos e de experiências de outros campos sociais. Totens religiosos, a casa do louco, a rebeldia do adolescente… Tudo é arte, sem exigir de quem faz o conhecimento necessário. Todo curador quer revelar um jovem talento, como se a arte dispensasse a experiência. Um “novo”, sinônimo de jovem ou de uma outra coisa que desviada para o meio de arte, funciona como uma coisa “nova”. Um novo sempre igual, a arte é que não interessa. Praticamente trinta anos depois do aparecimento da chamada arte contemporânea no Brasil, recalcada nos anos 70 pelas próprias instituições culturais, um outro contemporâneo surgido nos anos 90 passou a fazer parte do cotidiano dos salões, bienais, do mercado de arte, das grandes mostras oficiais e de iniciativa privada. Uma contemporaneidade sintomática. Estamos vivendo um momento em que qualquer experiência cultural (religiosa, sociológica, psicológica) é incorporada ao campo da arte pelo reconhecimento de um outro profissional que detém algum poder sobre a cultura (tudo que não se sabe direito o que é, é arte contemporânea). Como tudo de “novo” na arte já foi feito, o inconsciente moderno presente na arte contemporânea implora um “novo” e nesta busca insaciável do “novo”, experiências de outros campos culturais são inseridos no meio de arte como uma novidade. Deixando a arte de ser um saber específico para ser um divertimento ou um acessório cultural. Neste contexto, o regional, o exótico produzido fora dos grandes centros entra na história da arte contemporânea. Nos anos 80, foi o retorno da pintura, o reencontro do artista com a emoção e o prazer de pintar. Um prazer e uma emoção solicitados pelo mercado em reação a um suposto hermetismo das linguagens conceituais que marcaram a década de 70. Acabou fazendo da arte contemporânea um fazer subjetivo, acessório psicológico ou sociológico. Troca-se de suporte nos anos 90 com o predomínio da tridimensionalidade: escultura, objeto, instalação, performance etc., mas a arte não retomou a razão. Na barbárie da informação e da globalização, estamos assistindo ao descrédito das instituições culturais e da dissolução dos critérios de reconhecimento de um trabalho de arte. Tudo é tão apressado que acaba no dia seguinte, os artistas vão sendo substituídos com o passar da moda, ficam os

Duas revoluções na arte ocidental

por Almandrade 1 – Les Demoiselles D’Avignon de Pablo Picasso (1907) – 110 ANOS Uma das transformações mais radicais na arte ocidental do século XX, tem como paradigma o quadro LES DEMOISELLES D’AVIGNON de Pablo Picasso, concluído em 1907. Era uma espécie de manifesto ou plano piloto do espaço multifacetado cubista. Braque  se assustou quando viu o quadro, mas logo em seguida foi influenciado por essa pintura que havia lhe causado indignação. Juntos, Braque e Picasso realizaram obras relevantes e decisivas para deslanchar o mais importante movimento da história da Arte Moderna: o Cubismo. Com uma diferença, Braque se manteve à parte do que veio depois, encerra sua notável contribuição com o Cubismo. Picasso se manteve atento às turbulências, à instabilidade e à velocidade do século da máquina e se fez um símbolo da modernidade. Os principais gestos renovadores da arte moderna saíram do cubismo, como as geografias construtivas de Mondrian e Malevich, o Futurismo, o Dadá e o Surrealismo. A partir da lição de Cézanne, interpretar a natureza segundo o cilindro, o cone e a esfera, um novo problema foi formulado pelos cubistas. Rejeitar a representação do mundo (a mimesis), decompor analiticamente o espaço renascentista, descentrar a percepção, demolir o claro/escuro, encerrar a ilusão de profundidade e afirmar o plano como verdade do espaço moderno. Era o fim de uma tradição da pintura ocidental que desde Giotto até Coubert, que determinava como tarefa primeira do pintor criar uma ilusão de espaço na superfície do plano. LES DEMOISELLES D’AVIGNON foi a primeira invenção moderna que abriu caminho para transgredir convenções e tradições visuais naturalistas do ocidente. Picasso subverteu por completo as regras de representar a figura humana e os objetos, desconstruiu o corpo e a separação entre figura e fundo, a anatomia foi subordinada à geometria e a luminosidade sem compromissos com a natureza, totalmente livre. A figura humana, que era para Rafael, principal elemento da representação, passou a ser um objeto a mais na paisagem, sem expressividade. A arte deixou de ser cópia ou ilustração do que é entendido como real. O que importava era o espaço construído com um olhar inquieto que pretendia desnudar as aparências para expor suas estruturas internas. Picasso se inspirou nas Banhistas de Cézanne. A pintura apresenta cinco figuras femininas submetidas a estilizações geométricas, corpos angulosos e desproporcionais, fragmentados, com máscaras africanas nos rostos para abolir de vez os últimos resíduos da representação renascentista. Uma pintura simultânea, com justaposição de perspectivas, uma solução encontrada por Picasso para mostrar os múltiplos pontos de vistas sobre uma mesma coisa, de frente e de costas ao mesmo tempo, que remete a certas preocupações científicas da época, o problema da representação quadridimensional, objeto de estudo do matemático francês Henri Poincaré, considerado um dos precursores da Relatividade. Mudou a posição do espectador frente à tela, esta deixou de ser uma janela para o mundo e assumiu sua condição de superfície bidimensional, passou a ser uma realidade em si. Um investimento contra a perspectiva linear para devolver ao artista seu lugar no mundo, como desejava Cézanne, e não mais o espectador à distância da paisagem e das coisas. LES DEMOISELLES D’AVIGNON foi uma revolução na história do olhar do século XX, um dos marcos iniciadores da nova verdade da arte moderna, apreendida na ordenação geométrica e não mais na anatomia. 2 – A Fonte de Marcel Duchamp (1917) – 100 ANOS Com a Pop Arte, Minimalismo e a Arte Conceitual nos anos de 1950 e 60 encerravam-se as vanguardas artísticas e eram formuladas novas questões em direção ao que foi designado depois da “Arte Contemporânea”. Por trás dessa revolução estava um sujeito discreto, um jogador de xadrez, ou melhor, um artista pensador. Marcel Duchamp é uma referência indiscutível para a arte contemporânea, embora nem tudo que aparece como arte contemporânea tem a ver com ele. Às vezes citado, porém pouco entendido. Até parece que tudo ficou mais fácil. Para ele não, tinha consciência que a facilidade era uma armadilha. O deslocamento de qualquer coisa para o lugar da arte é um gesto pensado. Para muitos, e ainda hoje, tratava-se de uma provocação e uma ironia, mas para Duchamp o humor e o riso eram componentes de uma elaboração mental para enfrentar a arte e a vida. Seus experimentos de vanguarda tiveram início em 1913, inventou o Ready Made (objetos prontos), peças industrializadas escolhidas por acaso pelo artista extraídas de seus contextos funcionais e inseridas no meio de arte legitimadas como obras de arte. Uma mistura de picardia e reflexão. O riso era a liberdade que guiava o artista dentro dos limites da razão. Muito mais do que um provocador, era um artista culto, interessado em literatura, que privilegiava a elaboração mental em seus inventos. Ele chegou a participar do Dadá que tinha destaque no cenário artístico da época, era amigo dos surrealistas. A intenção dessas vanguardas era escandalizar o meio de arte. Os escândalos eram o combustível da vanguarda, mas no caso de Duchamp, pela sua corrente intelectual o questionamento ia mais além, a Fonte colocava de pernas para o ar a condição da criação artística e o sistema da arte, anunciava mais de quatro décadas antes a crise das vanguardas que foi desencadeada a partir dos anos 50. Ele alterou a forma de pensar a arte, criou o debate entre arte e conceito. 2017 é o centenário do mais conhecido e discutido ready made, não foi o primeiro inventado, mas o primeiro a se tornar público, enviado para uma exposição de arte, assinado com o pseudônimo R. Mutt e com o título “Fonte”. Era um mictório de louça utilizado em sanitário masculino. Estava inaugurado um novo procedimento de fazer arte que dispensava do artista o trabalho manual de fazer uma imagem ou um objeto, ele deixou de fazer arte e passou a determinar o que é arte se apropriando de objetos e imagens do cotidiano. O urinol de Duchamp representa nas suas experiências de ready made um marco divisor na história da arte, foi inventado um novo paradigma e deu um xeque mate na modernidade. A Fonte e os

A arte em risco

por Frei Betto Qual o limite da expressão artística? A pergunta volta à baila após a repressão à liberdade de manifestação estética promovida pelo MBL (Movimento Brasil Livre) no Santander Cultural, em Porto Alegre, com desdobramentos em outros museus do país. A arte é transgressora por natureza. Faz-nos pensar. É o espelho que reflete o nosso inconsciente. Narciso pode quebrá-lo por se achar feio. A feiura, contudo, não está no espelho… A arte molda a nossa sensibilidade. Diz respeito à emoção. Quando a ela se sobrepõe a razão, em especial a razão cínica, que a sufoca com interesses políticos e moralismo religioso, perde a nossa humanidade e emerge a brutalidade. As tragédias gregas nos legaram a arte teatral e são referência básica da psicanálise. Por retratarem incestos, feminicídios e homossexualidade, devem ser proibidas nas escolas e queimadas em praça pública? A cerâmica Oinoche, da Grécia (430-420 a.C.), com suas figuras eróticas, deve ser destruída em nome dos bons costumes? Devemos apagar as pinturas rupestres e as esculturas paleolíticas da civilização Moche, que habitou o norte do Peru entre 100 a.C. e o ano 800? As joias em ouro e prata e cerâmicas pré-colombianas, nas quais cenas de sexo foram estilizadas, hoje espalhadas pelos museus da América Latina, devem ser lançadas ao fogo? E as vulvas estilizadas do gótico e das colunas do Palácio da Alvorada, derrubadas a marretadas? Michelangelo pintou nus em o “Juízo Final”, na Capela Sistina. A hipocrisia da Inquisição obrigou o pintor Daniel de Volterra a cobrir todos eles. Felizmente o papa João Paulo II mandou restaurar a arte original. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Duas revoluções na arte ocidental https://urutaurpg.com.br/siteluis/marcel-duchamp-e-suas-antiobras-de-arte/   A irrealidade da arte contemporânea  

A irrealidade da arte contemporânea

por Almandrade “A crise não afeta apenas a arte contemporânea, mas também a produção de novas obras de arte: se a arte não continuar, tudo aquilo que resta da arte do passado e que constitui ainda hoje uma parte notável do ambiente material da vida, perderá todo o valor e acabará por ser abandonado e destruído” Giulio Carlo Argan Todo trabalho cultural requer um mínimo de compromisso com uma determinada forma ou sistema de saber. O objeto artístico é resultado de uma pesquisa especializada para interrogar a própria natureza da arte. É inútil o trabalho do olhar debruçado na incerteza de uma definição de arte, perdido na impossibilidade de uma verdade definitiva. Estranha, a obra de arte é aquilo que é reconhecido como manifestação de um saber. Uma aventura imprevisível, um jogo sem fim, com regras sendo inventadas a todo momento, sem ganhador nem perdedor. A arte está sempre nos propondo mais problemas que soluções. Uma relação de tensão e desconfiança passou a reger a arte contemporânea, pela sua condição de ser provocativa e recusar a contemplação passiva. Com a modernidade e suas vanguardas, principalmente Marcel Duchamp, a arte passou a ser qualquer coisa deslocada para o circuito da arte. Um objeto/lugar de um pensamento ou de uma ideia, independente do verniz textual e da autorização de um curador. O artista era um pensador, tinha uma atitude crítica. A produção do belo era a transformação de uma matéria-prima em produto simbólico, segundo a razão e a sensibilidade de um artista que dominava um saber, porque a arte não era um acidente diante da razão. Nos anos 70, no império da arte conceitual, fazer qualquer coisa arte era dominar uma teoria, se posicionar de forma consciente no universo da arte, da sociedade e da cultura de uma maneira geral. O processo de inventar o objeto estético deteriorou-se com a facilidade e a rotina de um fazer mecânico que se repete sem o hábito da reflexão. Duchamp, quando inventou o readymade tinha consciência da armadilha da facilidade: “Logo percebi o perigo de repetir indiscriminadamente esta forma de expressão e decidi limitar a produção de readymades a uns poucos por ano”. O tempo da arte parece condenado com o descrédito dos paradigmas que norteiam a arte contemporânea. O artista precisa conhecer o seu ofício, é indispensável ter referências, na arte acadêmica o artista dominava um conhecimento que era o artesanato, a técnica, o saber das mãos. As chamadas novas linguagens e os novos suportes utilizados sem a precisão do raciocínio, são inovações duvidosas, muitas vezes, aquém dos suportes tradicionais. Num cômodo deslize, um estilo fácil dominou a contemporaneidade, como se a arte fosse um clichê, uma moda, ou um evento para o entretenimento de determinado público. A obra de arte passou a ser secundária. E quem decide é o curador, o marchand, o cronista social ou o produtor cultural. A hegemonia do mercado foi acompanhada do aparecimento do curador em lugar do crítico, do produtor cultural e depois as leis de incentivo a cultura. O objeto deslocado do contexto de origem, por determinação de um artista, é sustentado pela “teoria” imaginária de um curador. Dessa forma a arte como produto de um conhecimento específico deixa de existir. Por outro lado, esse suporte teórico é incapaz de fazer uma leitura crítica desse sucateado trabalho de arte e situá-lo no seu devido lugar cultural. Um fluxo descontrolado de produtos artísticos deixa de ser uma surpresa. A imagem da arte não é um fragmento do mundo sensível destinado a ornamentar uma experiência mundana; mas um esquema de ordenamento do espaço plástico, a partir de um modelo abstrato de pensamento. Essa qualquer coisa chamada arte, que se utiliza de fáceis e limitados procedimentos, faz da arte contemporânea um estilo simulador de complexidades, cada vez mais incentivada pelos salões, pelo mercado e pela crítica inventada pela indústria cultural. A arte contemporânea, recalcada nos anos 70, ficou na moda, faz parte do cotidiano dos atuais salões de arte. O belo é, para os novos especialistas da arte, a negação do pensamento, uma brincadeira da sociedade do espetáculo. A arte foi confinada a um campo restrito de experimentação, que tem como referência a tradição da facilidade. Os salões estão de cara nova, mas continuam com o mesmo modelo de seleção e premiação, o mesmo processo burocrático de outros tempos, que reforça a ideia de cultura como uma superstição, e não algo real. No momento em que a diluição e a facilidade são as regras do fazer artístico, a reflexão cessa, a arte deixa de ser saber e passa a ser acessório de um lazer cultural. A ausência de estilo converteu-se num estilo inculto e inseriu o contemporâneo na periferia da culturcarla.silva0001@gmail.coma, protegida pela publicidade do olhar do espetáculo. A arte em risco Duas revoluções na arte ocidental  

Tarkovski e o planeta Água

por Roberto Acioli de Oliveira Poderíamos dizer que o cineasta russo Andrei Tarkovski dirigiu dois filmes de ficção científica, Solaris (Solyaris, 1972) e Stalker (1979). Uma adaptação livre do livro homônimo escrito pelo polonês Stanisław Lem, veremos que Solaris não tem nenhuma relação com a versão criada em 2002 nos Estados Unidos. Alguns disseram que o Solaris de Tarkovski foi uma resposta a 2001, Uma Odisséia no Espaço (2001, A Space Odyssey, direção do norte-americano Stanley Kubrick, 1968). Isso é um equívoco. De fato, o universo tecnológico da ficção científica é totalmente secundário em Solaris e Stalker. “Eu não gosto de sua ficção científica típica, eu  não  a compreendo, eu não acredito nela. O fato é que, quando eu estava trabalhando em Solaris, preocupava-me  com o  mesmo assunto de [Andrei] Rublev: o ser humano. Estes dois filmes estão separados apenas pelo tempo onde a ação está acontecendo” (1). Sinopse: Você se Conhece? Chris Kelvin é psicólogo, ele foi chamado para desvendar estranhas visões que os tripulantes de uma estação orbital andam tendo – e que pelo menos um deles insiste que não é demência. O grupo está na órbita de um planeta chamado Solaris, totalmente coberto por um oceano. Antes de viajar, Chris é informado da hipótese do Dr. Messenger, ele acredita que o oceano é um cérebro, mas ainda não sabe do que ele é capaz. Ao chegar à estação, Chris logo percebe que as coisas não estão bem. Pouco tempo depois, é sua própria esposa Hary, morta há dez anos, que se materializa diante de seus olhos. Chris resolve colocá-la num foguete, mandando-a para o espaço. Mas ele a reencontra quando volta para seu quarto. O Dr. Snout, um dos tripulantes, procura tranqüilizar Chris dizendo que ela é apenas alguém do passado dele. Pior seria, argumenta Snout, se o oceano de Solaris materializasse algo que só existe na imaginação – fazendo referência a nossos pesadelos. Snout explica que tudo leva a crer que o oceano captou de seus cérebros algo como pequenas ilhas de memória. “Não há horror do qual o homem não seja capaz” Dostoievski Chris conclui que outra Hary surgirá a cada tentativa de destruir a anterior. Os seres criados pelo oceano são imortais, podem ser mortos, mas sempre haverá uma ressurreição. Por outro lado, eles podem ser bastante complexos. Na verdade, o filme gira em torno também de uma crise de identidade de Hary. Ela não sabe quem é, mas percebe que é idêntica a falecida esposa de Chris. Até que pergunta a Chris: e você, se conhece? Ele responde que todos os humanos se conhecem, indicando que Hary não é humana. Nesta resposta ele mostra também uma concepção ingênua da humanidade. Durante essa estranha crise de identidade de um clone, Hary até tenta o suicídio inalando oxigênio líquido, acreditando que assim pode morrer congelada. Snout comenta com Chris que as coisas devem piorar, pois quanto mais ela fica com ele, mais ela se torna humana. Em seguida, assistimos com Chris, essa impressionante cena da ressurreição de Hary. Snout aconselha Chris a esquecê-la, o doutor insiste com o psicólogo que Hary só existe ali na estação orbital, sugerindo que ele “não leve para a cama um problema científico”. Por alguns instantes, durante a seqüência da sala de espelhos, Chris confunde Hary com sua mãe. Durante esse delírio de Chris, acompanhamos uma longa conversa entre mãe e filho. Ao acordar, Snout o comunica que na sua ausência Hary conseguiu se aniquilar de uma vez por todas. Relata também que começaram a se formar estranhas ilhas no oceano de Solaris. Na próxima seqüência, vemos Chris na Terra, caminhando no campo ao redor da casa de seu pai, a mesma que conhecemos no início do filme. Descobrimos logo depois que ele não está na Terra, mas numa das ilhas no oceano de Solaris. Tarkovski e o Karma As lembranças dos tripulantes, boas e ruins, tornam-se reais. É a ação do mar que cobre Solaris. Chris Kelvin, o investigador, torna-se parte do enigma. Sua esposa, que se suicidou há dez anos, se materializa. Algo de que Chris é culpado, porém é tarde demais para corrigir, porque Hary já morreu. O coração sabe que ele não a amou o suficiente, que a magoou mortalmente, então ela partiu para a não-existência. Mas ela não partiu! No fundo, está cada vez mais próxima dele. Cedo ou tarde, Chris irá confrontar essa realidade (2). Ao se debruçar sobre os conflitos morais produzidos em conseqüência das descobertas científicas, o filme de Tarkovski se remete a uma nova moralidade, resultante das experiências dolorosas enraizadas no âmago daquilo que nos acostumamos a chamar de “o preço do progresso”. Para Chris Kelvin, esse preço significa ter de encarar sua própria dor na consciência, que por fim se materializou na sua frente: Hary. Kelvin não modifica seu comportamento, mantendo-se como sempre foi. Essa atitude é a fonte de um dilema trágico para ele (3). Tarkovski era profundo conhecedor da bíblia, mas também se interessou pela problemática do Karma. Que vida viveríamos se tivéssemos a chance de voltar em circunstâncias diferentes? Kelvin teve outra chance, mas subconscientemente reencontrou no espaço sideral aquilo que o torturava, a mulher que negligenciou a ponto de deixar ela própria se perder. Tarkovski sempre se interessou pela alma humana, por aquilo que o homem é capaz. Ele costumava citar Dostoievski: “Não há horror do qual o homem não seja capaz” (4).   “Você ama o que pode perder.  A si mesmo, uma mulher, sua pátria. Até hoje, a humanidade, o mundo, ficou fora do alcance do amor”  Chris Kelvin no ápice de sua  confusão/iluminação mental. Mulher Sonhada Natalia Bondarchuk fala da caracterização de Hary, sua personagem (5). Natalia lembra que Tarkovski chamou sua atenção por ela estar atuando exageradamente, como uma espécie de heroína soviética. Hary não era nada disso, ela não era ninguém, só uma matriz, um molde. Hary compreende que não é humana, que não passa de uma imagem. Natalia fez o que o cineasta sugeriu, mas tempos depois contou a ele porque inicialmente ela havia tentado criar uma personagem teatral demais para Tarkovski. Ela explicou que havia pensado em construir Hary como o “peixe fora d’água”

Quando Sophia Loren entrou na guerra dos seios

por Roberto Acioli de Oliveira Sophia Loren – A indústria cinematográfica italiana se reergueu rapidamente após o término da Segunda Guerra Mundial. Para além do movimento neo-realista no cinema de Roberto Rossellini e alguns outros realizadores (que utilizavam não-atores, pessoas desconhecidas do povo), cresceu a demanda por “novos rostos” que representassem a Itália no teatro, cinema e televisão. A busca por mulheres jovens e “bem torneadas” está na base dos concursos de beleza que ressurgiram a partir de 1946 (no período fascista se estimulavam as competições fotográficas em revistas) com o nome de Miss Itália (em 1947 seriam introduzidos os maiôs nos desfiles), dando origem à moda das maggiorate fisiche – “fisicamente bem dotadas”, aquelas cujos atributos físicos como seios grandes poderiam abrir-lhes as portas do estrelato. Embora grande parte delas não fosse atriz (pelo menos no início da carreira), não existe aqui nenhuma relação com a prática neo-realista. A não ser pelo fato de que muitas delas ficaram famosas atuando no “Neo-Realismo rosa”, filmes “água com açúcar” que articulavam a pobreza e os temas sociais com a presença de atrizes (especialmente as maggiorate) e atores conhecidos e/ou estrelas das telas. Na época houve alguma crítica a essa sede da indústria por atrizes gostosas, especialmente quando se concediam premiações por atuações consideradas medíocres – a atriz Monica Vitti começou sua carreira como dubladora e emprestou sua voz para muitas maggiorate. Gina Lollobrigida, Silvana Mangano, Eleonora Rossi-Drago e Silvana Papanini, eram alguns dos nomes famosos de estrelas (personalidades das telas…) que não sabiam atuar. Ao contrário delas, Sofia Villani Scicolone não teve tanta sorte (2). “Em contraste com estrelas de Hollywood, na genealogia do estrelato de Loren a “mulher rebelde” se contrapõe ao Amante Latino, ultrapassando o fetichismo  puro.  Castradora com os homens, essa feminilidade não se deixa “domesticar” completamente (1)” Leia texto do mesmo autor sobre o ator italiano Marcello Mastroianni Scicolone nasceu em Roma no ano de 1934, mas cresceu na casa dos parentes da mãe em Pozzuoli, perto de Nápoles, retornando à Roma em 1950 como uma aspirante a atriz. Como seus pais nunca se casaram, Sofia teria problemas com a Igreja Católica no futuro, pois essa situação fazia dela uma filha ilegítima. Scicolone trocaria de nome para Sofia Lazzaro logo em seus primeiros trabalhos posando para fotonovelas e em seu primeiro papel no cinema em Il Voto (direção Mario Bonnard, 1950). Alguns filmes depois, ela foi escalada para Africa Sotto i Mari (direção Giovanni Roccardi, 1953) com outro nome: Sophia Loren. Mas sua ascensão não foi nada rápida. Seu sucesso foi limitado nos concursos de beleza devido a um visual que não se enquadrava nas expectativas daquilo que na época se considerava a beleza italiana típica. Diziam que sua pele era muito escura, sua boca muito grande e que ela era muito alta. Além do mais, sua figura sugeria um clima de paixões proibidas, considerado pouco apropriado para uma rainha da beleza. Foi num desses concursos que o produtor Carlo Ponti a conheceu, arrumou alguns testes para ela, mas nenhum papel principal. Eles se casariam brevemente e Loren arrumaria outro problema com a Igreja, já que Ponti era casado e na Itália não havia divórcio. Sophia trabalhou em fotonovelas entre 1950 e 1953, quando mudou seu nome para Loren e atuou em muitos filmes num espaço curto de tempo. Nessa época seus trabalhos se concentravam em filmes do Neo-Realismo rosa, um precursor da comédia italiana, na qual Loren se destacaria. “A partir de Arroz Amargo, com Silvana Mangano, os produtores compreenderão qual será o papel da estrela. No início dos anos 60 do século passado, Loren era a atriz italiana de maior sucesso (3)”  Lollobrigida e Hollywood   A participação de Loren em Pizza a Fiado (episódio de O Ouro de Nápoles, direção Vittorio De Sica 1954) garantiu-lhe sucesso e consolida sua associação com a imagem de uma estrela napolitana “bem dotada” – de acordo com Pauline Small, durante algum tempo ocorreu uma “batalha de bustos” em torno da popularidade de Loren e Lollobrigida no ciclo Pão e Amor. Esta e outras comédias marcaram a atriz como uma mulher do povo, de qualidades físicas não tradicionais e uma identidade caipira que a diferenciava de outras aspirantes ao estrelato – ela circulava naturalmente entre as duas correntes da comédia italiana, a rural e a urbana contemporânea. No ano seguinte Loren substitui Lollobrigida em Pão, Amor e… (também conhecida como Escandalo a Sorrento, Dino Risi, 1955), na terceira parte do ciclo Pão e Amor. O padrão das carreiras de Loren Lollobrigida foi por muito tempo análogo. As duas apareceram em fotonovelas e filmes de ópera, e Loren substituiu Lollobrigida no famoso ciclo. Há controvérsias a respeito dos motivos que a levaram a não participar da última seqüência, mas existe a hipótese de que Lollobrigida estava interessada em dar uma guinada em sua carreira, na direção de papéis dramáticos. Neste mesmo ano, Loren embarca para Hollywood, notas na imprensa comparavam as medidas de Loren com as de outras italianas (Mangano e Lollobrigida) e estrelas norte-americanas (Marilyn Monroe e Jane Mansfield) (5). “O aspecto mais interessante sobre Sophia Loren é  a   forma   como   sua   persona fundiu aspetos da indústria do cinema e da cultura de  lugares tão distintos, Itália e Hollywood” Pauline Small (4) Embora fosse desconhecida do público norte-americano, a chegada de Loren à Hollywood foi precedida de muita publicidade. Exatamente como no caso de Lollobrigida, que seria identificada como o “rosto da Itália” – sua carreira em Hollywood nunca se materializou. No final dos anos 50, seu lugar já havia sido ocupado por atrizes como Loren e Brigitte Bardot. O exemplo de Lollobrigida é semelhante ao de uma série de estrelas italianas cuja experiência hollywoodiana não vingou – Alida Valli, Pier Angeli, Valentina Cortese, Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni; Anna Magnani, que ganhou um Oscar por sua atuação em A Rosa Tatuada (The Rose Tatoo, direção Daniel Mann, 1955), afirmou não pertencer a Hollywood. De acordo com Pauline Small, a carreira de Loren em Hollywood perdeu com a insistência dos produtores na

O museu e a arte contemporânea

por Almandrade Na arte contemporânea não existem limites estabelecidos para a invenção da obra, embora nem tudo em nome da liberdade, sem critérios e sem o risco de referências, a transgressão sem saber de que, divulgado como arte, é arte. Com o deslocamento dos suportes tradicionais, a exemplo da pintura e da escultura para outras opções estéticas ou experiências artísticas em processo, com o uso de novas tecnologias disponíveis ou não, mas principalmente com um novo conceito do que vem a ser uma obra de arte, hoje em dia, coloca-se em xeque o museu tradicional. Determinadas linguagens de natureza diversificadas da atualidade solicitam a reformulação de demandas e estratégias, um outro modelo museológico. O museu é o recipiente de conservar uma coleção e preservar uma herança estética e cultural de um tempo que passou e do presente para significar o possível futuro. Ele ocupa um lugar de destaque entre os diferentes elementos que compõem o sistema da arte. Assim como o hospício e a clínica, é provável ver nele um espaço de confinamento, um espaço sagrado, intocável e asséptico de exposição de objetos, que exige do espectador um ritual de contemplação, quase em silêncio, das chamadas obras de arte. Não é um lugar neutro, tem história e implicações ideológicas. Na primeira metade do século XX, o museu de arte era o depósito de repouso do moderno, questionado no início desse século pelo precursor das poéticas contemporâneas, Marcel Duchamp e seu novo paradigma, bem humorado, para a arte: não mais uma coisa criada pelo artista, mas a coisa que o sujeito reconhecido como artista escolhe e decide para ser a obra de arte. Saiba mais sobre Marcel Duchamp.  O museu como lugar passivo foi desarticulado com o Minimalismo na década de 1960 e logo em seguida a Arte Conceitual entrou em cena questionando de forma crítica e decisiva as instituições culturais, em especial o museu, o templo da sacralização da arte. O embate foi travado entre o museu e as novas propostas artísticas, efêmeras, privilegiando a ideia contra a materialidade que se armazena na instituição e alimenta o mercado de arte com mercadorias. A arte, desde então, passou a ser uma usina geradora de críticas, provocações e incômodos. Os mal-entendidos entre a arte e a instituição museal foram inevitáveis e imprevisíveis. O caráter problematizador dessa produção de arte praticamente rejeitou o estatuto da obra de arte como produto, isto contrariou interesses do mercado e o desejo de classificar e acomodar da instituição museológica. Para a arte contemporânea, o museu com sua arquitetura característica, com função de alojar uma diversidade de procedimentos, é um laboratório de ensaio do que pode ser uma obra de arte, um campo de experimentação. O museu é indispensável, é o ponto de partida e a estação de chegada. É ele que legitima o que se designa experiência artística. E o papel do museu, mais do que armazenar obras, é ser um espaço de pensamento crítico e educativo, frequentado por um público ativo e não mero observador do que está em exposição. De certa forma, a arte produzida hoje expõe feridas da cultura e do sistema da arte. E o imaginário museal tem uma importância na formação do olhar capaz de pensar sobre a arte, do olhar que deixou de contemplar passivamente para experimentar e vivenciar. A arte de hoje não nos diz nada como a arte do passado, ela convida o espectador para refletir sobre o que é uma obra de arte e suas relações com o sistema institucional. Nesse caso, o museu é o lugar privilegiado para o exercício do pensamento, até porque, as obras efêmeras são transferidas ou resgatadas para dentro do discurso e da instituição museológica pelos documentos, registros e reproduções. O sagrado e o profano na arte de Stephan Doitschinoff

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