Zona Curva

Cultura

O jornalista e escritor Fausto Wolff escreveu: “cultura é arma de defesa pessoal”, esse é o guia dos textos aqui publicados.

Dez desabafos do escritor João Antônio

Escritor João Antônio – O jornalista Mylton Severiano foi grande amigo do escritor João Antônio. Durante anos, os dois se corresponderam. Com base em seus arquivos e lembranças, Myltainho, como era conhecido o jornalista que morreu em maio do ano passado, publicou em 2005 o livro “A Paixão de João Antônio”. O livro é um verdadeiro mergulho na alma do genial João Antônio, compre-o, vale a pena. De lá, separei dez petardos do escritor:   “A situação dos meus livros é vexatória, escrota e perversa. Imita o País: deixou Noel morreu tuberculoso, matou Lima Barreto aos 41 anos, fez Mário de Andrade, nosso maior trabalhador intelectual do século, passar tais humilhações que ele bebeu e fumou até estourar antes do tempo, liquidou Glauber Rocha… Assassinatos culturais dos governos inculturais” (1993).   “Literatura? Mas, minha querida senhora, a literatura não existe. O que há é a vida, de que a política e arte participam” (1977).   “Investimentos brutais na educação, saúde e saneamento. Noções e renoções de cidadania. Este é o grande país do planeta. Não podemos admitir que calhordas nos desgovernem e nos roubem. Patriotismo já. Sem nacionalismos, sem machezas, sem radicalismos. Educação, ética, brasilidade sem xenofobias: com senso. E amor. Onde entra o amor, as leis são dispensáveis. Dignidade — louvores à dignidade, à ética. Sou utópico? Não, sou realista. Temos um povo bom, cordato, criativo e sempre a fim de colaborar” (1993). O escritor João Antônio nasceu em São Paulo em 27 de janeiro de 1937 no mais paulistano dos bairros: o Bixiga. Ele morreu no Rio de Janeiro em 31 de outubro de 1996. “Rubem Fonseca está rico, meu velho. É um policial mui vitorioso. Rachel de Queiroz está na Academia Brasileira de Letras. Gumercindo Rocha Dórea continua vivo e vivaço cá no Rio editando seus apaniguados ou apadrinhados de direita. Todos são dedo-duros, alcaguetes, fascistas. E daí? Não há informação neste país porque o jornalismo não cava informações. As maiores devassas sobre o nosso golpismo político têm sido feitas por intelectuais estrangeiros. Isso não causa espécie?” (1981).   “Olha, quero paz para escrever. Esse negócio de jornalismo está me deixando louco. E o único jeito de eu escrever vai ser num hospício”.   “Aqui me roubam, me usam, me desrespeitam e até se impacientam com a minha independência, pois, não pertenço a curriolas de nenhuma natureza, não aceito emprego público nem particular, xingo a direita de burra e sanguinolenta, xingo a esquerda de bêbada e intolerante, de festeira e faladeira, de omissa e impopular” (1979).   “São Mané Garrincha, o Generoso, a Alegria da Gente, aquele que, passando por débil mental, entendeu, sem retóricas e sem palavras vãs, a nossa carência gigantesca de alegria coletiva. Santo, puro santo: o Brasil em pessoa. Ele se doava todo. Pelé, a gente admira; Garrincha, a gente ama” (1994). “Ando brigando com a cachaça. Já cachacei demais, irmão. Ao invés de tomar novos, agora prefiro escrever sobre os porres (v. é testemunha) que já tomei” (1982).  “Não pretendo morrer antes de declarar algumas verdades. Estou há anos para lhe dizer isso. Não conheço nenhuma profissão de gente tão otária quanto os jornalistas. É gente que joga no escuro, joga por jogar, joga para conhecer as regras do jogo. Tirantes alguns raros e bem topados jornalistas cooperativados que conheço, o restolho, ou melhor, o grande resto não passa de uma maciça cambada de otários” (1981). “Este país está mergulhado num obscurantismo sem par. Melhor sucessor para a ditadura do que Collor, impossível. Nem que os militares quisessem. O homem é completo: política de liquidação total e capilar à cultura e à educação.. . A cultura e a educação que deveriam ser comuns como o feijão-e-arroz, tornou-se alto luxo para gentes sofisticadas” (1992). A classe mérdea

O Evangelho segundo Pasolini

Se isso é cinema de poesia, poderíamos dizer que seria também um auto-retrato neurótico? Prenúncio de Uma Revolução? Pasolini – Ao iniciar as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964), Pier Paolo Pasolini já havia realizado dois longas-metragens, Accattone, Desajuste Social (Accattone, 1961) e Mamma Roma (1962), e mais um média-metragem, A Ricota (La Ricotta, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1963), havia também elaborado muitos roteiros. Além de uma grande preocupação com a tradição pictórica clássica, seu estilo misturava o interesse pelo real com uma visão crítica em relação ao Neorrealismo. Neste início da carreira de Pasolini como cineasta, Stéphane Bouquet ressaltou uma curiosa hibridação. Os “pobres coitados” (poveri cristi) da periferia de Roma tinham suas vidas contadas através de um estilo com muitas referências à pintura da primeira Renascença florentina (Masaccio) ou aos maneiristas italianos (Pontormo, Rosso Fiorentino). Inicialmente, em O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini pensava utilizar os mesmos princípios: filmar picturalmente as paisagens miseráveis do sul da Itália em busca daquilo que definiu como uma espécie de “sacralidade técnica” (1). O Evangelho Segundo São Mateus não é apenas “mais um filme religioso”, uma espécie de acidente de percurso na obra de um pensador caótico. O título original do filme omite (como o faz o próprio Evangelho) o “São” adicionado na versão norte-americana, uma distorção que desagradava Pasolini (2). De fato, o filme foi incluído na lista de filmes aprovados pelo Vaticano – sendo o primeiro filme italiano a consegui-lo. Pasolini nunca escondeu seu ateísmo e marxismo, embora não fosse ortodoxo em nenhum dos dois casos. A história da produção é complexa. Em outubro de 1962, na condição de convidado em Assis da Pro Civitate Christiana, uma instituição atenta às tendências liberais e de esquerda na promoção da cultura católica na Itália contemporânea, Pasolini leu o Evangelho que encontrou em sua cabeceira. Numa troca de cartas com seu produtor Alfredo Bini e membros da Pro Civitate, Pasolini descreveu sua impressão do texto em termos que conotavam um senso de religiosidade, intercambiável em sua mente com uma revelação estética. Tendo em vista tal entusiasmo por parte de uma figura famosa, ainda que de má reputação, os diretores do escritório de cinema da Pro Civitate, sob consulta de padres, teólogos e especialistas na bíblia (que avaliaram também o tratamento da Crucificação em A Ricota) concordaram em apoiar o projeto de Pasolini. O líder da Igreja Católica de então era o Papa João XXIII, a quem Pasolini dedicou O Evangelho Segundo São Mateus. Tal atitude partindo de um católico não praticante anticlerical evidencia a postura de João XXIII, que se abriu ao anticolonialismo, à esquerda, a cooperação entre as diferentes ideologias, a justiça social e a luta no Terceiro Mundo. A Pro Civitate Christiana financiou uma expedição à Palestina, que resultou no documentário Locações na Palestina (Sopralluoghi in Palestina, 1963-1965) (3). Em relação a seu filme anterior, A Ricota, um conselheiro da Pro Civitate Cristiana confirmou que não manifesta desprezo, mas sim uma séria exploração contemporânea do tema. Na opinião de Noa Steimatsky, de fato apenas uma análise superficial sugeriria que o filme parece “desconsagrar” (profanar, secularizar) (4). A primeira coisa que surge na lembrança dos conhecedores de Pasolini é o conceito de Cinema de Poesia, mas ao que parece poucos sabem que foi em função das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus que surge a tese. Outro elemento central no pensamento de Pasolini que deve muito ao trabalho neste filme é sua relação com o passado, bastante problematizado pelo cineasta-poeta em sua denúncia da perda dos valores tradicionais na sociedade moderna consumista. Trabalhos como A Ricota (onde um ator faminto, cujo personagem é um dos ladrões crucificados com Cristo, se encontra atormentado pela indiferença da indústria cinematográfica que, mesmo produzindo um filme sobre a Crucificação, não é capaz de perceber a Paixão quando presencia uma) e Teorema (onde o anjo-Cristo passa sua mensagem através do ato sexual) (5) são dois exemplos dos desdobramentos possíveis da mensagem de Cristo segundo Pasolini. Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury O arcaico na modernidade Antes de filmar O Evangelho Segundo São Mateus, Pasolini partiu em busca de locações na terra onde tudo teria acontecido. Pesquisa que foi registrada no infelizmente pouco conhecido documentário Locações na Palestina. Embora não estivesse surpreso, Pasolini ficou desapontado com o aspecto industrial moderno de Israel. Mais impressionante foi sua descoberta das dimensões modestas dos lugares santos – como disse Pasolini na época, tudo cabia na palma de sua mão. A diferença entre o aspecto humilde do local real e a sombra grandiosa do mundo arcaico na Bíblia aprofundou a noção de contaminação, já utilizada por Pasolini: “A contaminação [entre] humildade e grandeza talvez descreva, num nível mais fundamental, a impregnação de restos arqueológicos reais – aparentemente apenas ‘fragmentos miseráveis’ espalhados, poeirentos – por uma carga mítico-visionária cuja pretensão de autenticidade e valor é de uma ordem completamente diferente daquela das próprias ruínas” (6). Na contaminação, uma paisagem de pobreza e ruínas, as suntuosas riquezas da arte cristã, o contemporâneo e o arcaico, o real e o fantasmático, se cruzam e interpenetram sem neutralizarem um ao outro. Em outras palavras, ao invés de utilizar a evidência arqueológica para destruir o dogma teológico, Pasolini abraçou ao mesmo tempo a concretude material dessa evidência e a grande ressonância do mito. Em Accattone -Desajuste Social, Pasolini já havia utilizado a contaminação (quando Accattone luta com o irmão de Ascenza ao som da Paixão Segundo São Mateus, bwv 244, de Johann Sebastian Bach). De acordo com Pasolini, no caso de Locações na Palestina, filmado na Galiléia, Jordânia e Síria, a contaminação é imanente à própria paisagem. A impressão dominante, repetidamente articulada neste documentário que coleciona locações para O Evangelho Segundo São Mateus, é da humildade – este é o termo utilizado por Pasolini – dos locais que o Evangelho determina como o grande palco da pregação e Paixão de Jesus. Do ponto de vista da contaminação, a paisagem pobre e em ruínas se deixa penetrar pelas

Dorival Caymmi cantou a riqueza de sua terra

Neste ano, celebramos o centenário de nascimento dessa figura ímpar que tocou e cantou como ninguém a riqueza de sua terra. Desde jovem, Dorival Caymmi fez uso de seu ouvido absoluto para as cantigas e músicas ao seu redor e virou sinônimo da Bahia. Dorival Caymmi nasceu em Salvador em 30 de abril de 1914 e morreu em 16 de agosto de 2008 no Rio de Janeiro. Mesmo munido de enorme talento para a música, aos 24 anos, Caymmi embarca no navio Itapé rumo ao Rio de Janeiro para arrumar emprego como jornalista (já havia trabalhado no jornal “O Imparcial” na Bahia) e realizar o curso preparatório para o curso de Direito, em 1938. Consegue uma vaga em O Jornal, do Grupo Diários Associados, e conhece Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Em 24 de junho de 1938 (dia de São João), Caymmi faz seu debut musical na Rádio Tupi cantando suas composições. ”Eu sou poeta porque existe uma Bahia onde eu nasci que está dentro de mim viva e que traz consigo meus melhores momentos da minha infância até hoje” (Dorival Caymmi). Seu primeiro disco, intitulado “Canções Praieiras”, de 1954, que contém canções como “Quem vem para a Beira do Mar”, “O Bem do Mar” e “A Lenda do Abaeté”, são recheadas das experiências visuais do olhar de Caymmi ao rico cenário humano e natural de sua terra natal. Em sua infância, com a separação dos pais, Caymmi foi criado junto ao pai pelas conhecidas mulheres de saia da Bahia, antigas escravas que após a abolição trabalhavam em casas de famílias ajudando na criação dos filhos dos patrões. Por forte influência dessas mulheres, ele participa na juventude das festas de terreiro, observando as roupas e comidas típicas. Aos 17 anos, veraneia na praia de Itapuã e estabelece forte ligação com os pescadores, tornando-se amigo de muitos. Esse contato com a beleza natural o influenciou em toda sua carreira. Em 1935, começou a participar de alguns programas na Rádio Clube da Bahia. Gilberto Martins, diretor da rádio, enxerga o talento do músico que passa a capitanear o programa “Caymmi e suas canções praieiras”. No ano seguinte, vence concurso de músicas para o carnaval baiano com o samba “A Bahia também dá”. Em 1938, Caymmi passa a ser conhecido nacionalmente com o estouro do samba “O que é que a Baiana tem?” (letra iniciada em Salvador e terminada no Rio de Janeiro) na Rádio Tupi no Rio. O sucesso da canção a levou a integrar a trilha do filme Banana da Terra, de Wallace Downey. Foi Caymmi quem instruiu Carmen Miranda como dançar sua música com trejeitos típicos da Bahia. Foi a partir desse filme que ela passou a usar a fantasia de baiana que a imortalizou. O samba só foi incluído no filme porque Ary Barroso pediu uma boa quantia para liberar sua conhecida música Na baixa do sapateiro. Em 1939, Caymmi gravou a canção em dueto com Carmen pela gravadora Odeon. No mesmo ano, estreou na Rádio Nacional a convite de Almirante e teve sua canção predileta, “O Mar”, aproveitada na peça “Joujoux e Balangandãs” de Henrique Pongetti. Após três meses na Rádio Nacional, o músico baiano foi contratado pela Rádio Mayrink Veiga. Jorge, sempre Amado Em relatos, Dorival não se recorda muito bem quem o apresentou a Jorge Amado, mas lembra de que foi na Avenida Rio Branco e, desde lá, a irmandade foi única e louvada. A conexão dos dois era tão grande que se complementavam culturalmente. As belezas de “É Doce morrer no Mar” e “Canção do Retirante” são perfeitos exemplos da mútua paixão entre esses dois gênios. São os principais, junto a Carybé, responsáveis pela construção de uma entidade cultural baiana.          “Caymmi é a parte musical da obra de Jorge Amado” (Marília Trindade Barboza, biógrafa de Caymmi). Músico amado e letrista sem igual, Caymmi ainda era bom de traço. Seu contato com as artes plásticas nasce na juventude quando começa a copiar figuras que apareciam em sua casa ou que encontrava na rua. Ele retratou os casarios, os coqueiros, praias, as sacadas e casas à beira- mar da paisagem baiana. Caymmi e a Bossa Nova Após uma curta dedicação somente aos seus desenhos, adota o samba-canção como expressão artística e começa a celebrar as boas “coisas” do Rio. Em 1955, grava o disco “Sambas de Caymmi” com músicas como Sábado em Copacabana e Rosa Morena que podem ser consideradas precursoras da Bossa Nova. Em 1959, João Gilberto lança seu primeiro álbum Chega de Saudade, marco inicial do movimento Bossa Nova, com composições de Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Newton Mendonça. João Gilberto grava também “Rosa Morena” de Caymmi.         “Amar o Caymmi era a coisa mais fácil que existia”. (Sérgio Cabral, jornalista e crítico musical). Caymmi e Tom, um verdadeiro caso de amor entre duas gerações da música brasileira, marcou o encontro entre o inovador cinquentão baiano e o jovem compositor carioca amado precocemente por seu talento. O disco “Caymmi visita Tom”, lançado pela gravadora Elenco em 1965, ainda contou com a participação dos filhos de Dorival: Nana, Dori e Danilo. Em 1960, Dorival Caymmi, Jorge Amado e Carybé abraçam o candomblé e suas tradições. A valorização da cultura iorubá está descrita em algumas de suas letras como: “Festa de Rua”, “Rainha do Mar” e “Dois de Fevereiro”. Os três amigos ganham o título honorífico de “Obá de Xangô” por serem considerados seres de grande luz e preciosidade na terra. Em 1972, Caymmi compõe a letra de “Oração de Mãe Menininha”, homenageando Mãe Menininha do Gantois, uma grande Iyálorixá brasileira. “A oxum mais bonita, a estrela mais linda e o sol mais brilhante”    (trecho da música “Oração de Mãe Menininha”). “O que que a baiana tem?”- Dorival Caymmi   Dorival Caymmi explica como surgiu “Maracangalha” e a canta  “Marina” – Dorival Caymmi Vinícius de Moraes hoje    

Perdi a chance de comprar livros das mãos de Plínio Marcos

O bendito maldito Plínio Marcos Bem-vindo ao fatos na Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre. Ao longo deste vídeo, vamos mergulhar na história desse talentoso escritor, autor, ator, diretor de teatro e jornalista, o bendito maldito Plínio Marcos. Vamos analisar o contexto histórico e cultural em que suas obras foram concebidas, conhecendo seus principais trabalhos e um pouco de sua vida pessoal.   Plínio Marcos – No comecinho dos anos 90, encontrei algumas vezes um barrigudo barbado vendendo seus livros em frente aos teatros do Bixiga. Intrigado e com vontade de conversar com o camelô literário de boina, me arrependo de ter ficado na minha. Naquela época, confesso que sabia pouco sobre ele. Algum tempo depois de perder a chance de comprar os livros de Plínio Marcos de suas mãos, fui caçando suas peças teatrais em sebos e, em catarse, me transportava de meu mundo classe média para a fodida realidade dos excluídos, maltrapilhos e presos. Plínio não vendeu somente seus livros, para sobreviver, fez grana em troca de cigarro americano sem selo, maconha e bugigangas estrangeiras arranjadas pelos contrabandistas de Santos, sua cidade natal. Era o que dava para fazer para superar tempos que “estava duro como côco”, segundo o próprio contou em entrevista à revista Realidade em 1968. Plínio Marcos morreu no dia 19 de novembro de 1999. O dramaturgo nasceu em Santos no dia 29 de setembro de 1935. Plínio Marcos foi um dos homenageados da Balada Literária de 2014, que acontece a partir de hoje em São Paulo. Saiba mais. Nascido em Santos e filho de uma dona de casa e um bancário, Plínio Marcos foi estivador, tentou a sorte como jogador de futebol no juvenil da Portuguesa Santista e arrancou risadas como o palhaço Frajola no circo. Plínio Marcos cursou apenas o primário e teve 4 irmãos e uma irmã. A primeira peça teatral escrita por ele foi Barrela, em 1958, baseada em uma história real de um conhecido preso e violentado por vários outros detentos. Quando libertado, o amigo que virou personagem perseguiu e matou um por um de seus algozes. Ele nomeou a peça de barrela (gíria de ‘curra’).  “Sou o analfabeto mais premiado do País, no momento. Aliás, quando querem me ofender me chamam de analfabeto, quando querem me badalar dizem que sou gênio. O que sou mesmo é um cara de sorte. Tenho boa estrela e sei me virar. Aceito a regra do jogo na porcaria da vida. Ninguém me passa pra trás e se bobearem passo na frente dos outros, sou malandro, no duro” (em entrevista à revista Realidade, em 1968). Plínio Marcos mostrou a peça para a mitológica escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, em um bar de Santos. Eles se conheceram quando um dos atores da montagem realizada por Pagu de peça infantil Pluft, o Fantasminha, adoeceu e Plínio o substituiu. A escritora gostou do que leu e incentivou o novato. Aos domingos, Plínio ouvia a leitura de conhecidas peças teatrais como Esperando Godot, de Samuel Beckett, e textos do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, pelo jornalista Geraldo Ferraz, marido de Pagu. O primeiro contato com o meio artístico de Plínio tinha acontecido no circo. Sua aproximação com o circo surgiu pelo melhor dos motivos, uma paixão. Como a moça fazia parte da trupe circense e seu pai só permitia namoro se o pretendente fosse do circo, Plínio iniciou sua breve carreira como o Palhaço Frajola. O apelido veio do personagem de gibi, Frajola, que vivia perseguindo um passarinho. Como Plínio já havia sido preso roubando um passarinho, adotou o apelido. Plínio escreve rápido. Uma de suas peças mais conhecidas, “Dois Perdidos em uma Noite Suja”, foi escrita em 24 horas. Na época, Plínio trabalhava como técnico da TV TUPI e com a ajuda de amigos conseguiu montar em 1966 na Galeria Metrópole, em São Paulo, considerada a primeira montagem profissional de um texto de sua autoria. A peça Navalha da Carne (escrita em 4 dias) enfrentou problemas com a censura do regime militar. A classe teatral se mobilizou pela liberação da montagem, que consegue estrear em 1967. A atriz Cacilda Becker reunia artistas e intelectuais em seu duplex na Paulista e foi ali que nasceu a luta contra a censura da peça. No Rio de Janeiro, militares foram enviados pelo governo ao Teatro Opinião para impedir a apresentação. A atriz Tônia Carrero ofereceu uma casa vazia de sua propriedade no morro de Santa Teresa para o espetáculo, que lotou. Com seu prestígio, Tônia conseguiu liberar a peça e passou a atuar na montagem que passou a ser dirigida por Fauzi Arap. A partir daí, o trabalho de Plínio passou a ser visado pela censura e enfrentou problemas seguidos para ser liberado. Em 1968, ele foi preso e liberado por influência de Cassiano Gabus Mendes, diretor da TV Tupi à época. Em 1969, é novamente preso, agora em Santos e depois transferido para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em São Paulo. Foi libertado sob a tutela da atriz Maria Della Costa. Plínio também atuou na imprensa. Foi cronista do jornal Última Hora, repórter da revista Realidade e colunista da Revista Caros Amigos, entre outras colaborações. Em 1996, o jornalista Ricardo Kotscho, diretor da rede CNT de televisão, o convidou para tecer comentários no telejornal. Segundo Plínio, sua demissão foi motivada às críticas ao ministro das comunicações Sérgio Motta, que fez ilações sobre a sexualidade da candidata à prefeitura de São Paulo, Luiza Erundina. Serjão, todo poderoso do governo tucano, declarou após o debate na época que “Erundina e o (Celso) Pitta (PPB) [parece que] iam se beijar, ia sair um caso em público. Seria talvez bom para os dois”. Kotscho negou o caráter político da demissão e afirmou na época que demitiu Plínio porque ele insistia na leitura dos poemas de sua mulher, Vera Artaxo, na TV, o que não funcionou. “Não acredito em Deus. Acredito em tudo o que os cristãos dizem significar Deus: amor, verdade, justiça, liberdade. Os Evangelhos eu

O sagrado e o profano na arte de Stephan Doitschinoff

Em sua mistura de religiosidade, erotismo e arte urbana, o trabalho de Stephan Doitschinoff, apelido Calma, surge como um sopro de criatividade entre os novos artistas plásticos brasileiros. Em meio aos muitos embustes da arte contemporânea, esse artista de sobrenome impronunciável nascido em São Paulo em 1977 consegue imprimir uma visão única tanto nas galerias de arte como nas ruas. Entre 2005 e 2008, o artista morou na cidade baiana de Lençóis, porta de entrada da Chapada Diamantina, e modificou o cotidiano da cidade com suas pinturas. Stephan espalhou sua arte em colaboração com artesãos locais nas casas humildes, na capela e até no cemitério, intervindo na paisagem local. Assista ao curta-metragem sobre o trabalho produzido nessa época em “Temporal”, dirigido por Bruno Mitih: O uso da iconografia religiosa por Stephan vem do DNA: seu pai é pastor evangélico, mas o artista foi além e investigou ritos afro-brasileiros, o sincretismo religioso e o folclore do interior do País. Stephan conta no currículo com exposições em Berlim, Zurique (Suíça), Windsor (Inglaterra) e Amsterdã (Holanda). Ganhador do prémio Artista Revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 2009, Doitschinoff é representando no Brasil pela Galeria Choque Cultural, nos Estados Unidos pela Jonathan Levine Gallery e na França pela Galerie L.J. O seu envolvimento com a cena hardcore de São Paulo o fez criar o Festival de Cultura Indie, em 2001, quando, em parceria com outros artistas, reuniu bandas, exposições de pintores e fotógrafos da cultura underground paulistana e exibição de curtas-metragens. Passou a ilustrar também capas de discos de bandas e cenários de shows. Em 2006, Stephan foi chamado para ilustrar a capa do álbum Dante XXI, da banda Sepultura. Iconoclasta, o artista liberta as imagens das amarras religiosas inúmeras belas imagens. Em junho de 2011, o artista, em parceria com Antonio Pinela Tiza, pesquisador do Museu da Máscara Ibérica em Bragança, Portugal, montou a performance Brilho do Sol em forma de procissão no Bairro Mouraria, em Lisboa. Outros trabalhos do artista (fonte: site oficial do artista):       O museu e a arte contemporânea

As Deusas de François Truffaut

François Truffaut –  “As mulheres, tal como Truffaut as descreve, muitas vezes existem menos como presença (em) (a) (para) si mesmas do que como realização das visões masculinas. Primeiramente, os homens e espectadores percebem a imagem, em seguida a mulher que a encarna” Annette Insdorf (1)   Mais complexas do que alguns homens imaginam Antipáticas e atraentes, destrutivas e aconchegantes, dominadoras e conciliadoras, desesperadamente loucas e desesperadamente apaixonadas. A lista de qualidades das personagens femininas que Annette Insdorf encontrou em filmes de Truffaut sugere que ele foi capaz de compreender que o contraditório é um traço básico que elas compartilham com os homens! (2). Antoine Doinel, personagem/alter ego do cineasta em vários de seus filmes, vivia se questionando e perguntando para todo mundo se as mulheres são mágicas. Insdorf acredita que a esta poderia somar-se pelo menos mais duas perguntas: as mulheres são vulneráveis? Elas são mais complexas do que os homens supõem? Para Insdorf, levando-se em consideração os tipos femininos criados por Truffaut, a resposta é sim. Ainda de acordo com Insdorf, a coexistência de diversas personalidades numa mesma mulher é um padrão tão recorrente em Truffaut que o “duplo” é uma presença marcante em sua obra. Por um lado, temos os filmes onde um personagem masculino sente-se atraído por duas figuras femininas complementares. É o caso de Thérésa/Léna em O Tiro no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960), Franca/Nicole em Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), Linda/Clarisse (interpretadas pela mesma Julie Christie) em Fahrenheit 451 (1966), Christine/Fabienne em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Christine/Kyoko em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e Anne/Muriel em As Duas Inglesas e o Amor (Les Deux Anglaises et le Continent, 1971). Por outro lado, existem também aqueles filmes em que as mulheres possuem pelo menos duas facetas. É o caso de Catherine em Jules e Jim (Jules et Jim, 1962), Julie/Marion em A Sereia do Mississippi (La Sirene du Mississipi, 1969), Julie/Pámela em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) e Adèle/Madame Pinson em A História de Adèle H (Adèle H, 1975). A obra de Truffaut gira em torno das relações entre os adolescentes e sua deusa. Insdorf sugere que a atitude do cineasta em relação aos personagens femininos se assemelha à dos pivetes. Outro tema recorrente é o movimento que vai da adoração (Bernadette em Os Pivetes, Les Mistons, 1957) ao ressentimento (Théresa e Léna em O Tiro no Pianista, e Catherine em Jules e Jim, morrem; poderíamos incluir a mãe de Antoine em Os Incompreendidos, já que ele desejou a morte dela), passando pelo testemunho da morte do herói/rival (em Um Só Pecado, Fahrenheit 451, A Noiva Estava de Preto e A Sereia do Mississipi, as esposas destroem os homens, Linda sendo a menos direta), chegando ao distanciamento (Camille Bliss e Adèle H) (3). Jean-Luc Godard, o pierrô? Julie Kohler e Camille Bliss: múltiplas personalidades Cinco homens diferentes equivalem a cinco maneiras distintas de perceber uma mulher, ou poderia ser a descrição de cinco maneiras diferentes dessa mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos Para cada um de seus pretendentes, Julie em A Noiva Estava de Preto (La Mariée Était en Noir, 1967) e Camille em Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une Belle Fille Comme Moi, 1972) apresentam cinco personalidades. Adaptações de dois romances distintos, as duas se encaixam na obra de Truffaut como mulheres fatais. Num sentido literal, Julie é extremamente moral e mata por vingança, enquanto Camille é amoral e mata por prazer. Um pouco antes, Bernadette Lafont (a atriz que interpreta Camille) foi o fetiche de cinco garotos em Os Pivetes. Eles a seguem e chegam a hostilizar o namorado dela até que descobrem a respeito da morte do rapaz. No final, ao vê-la passar vestida de preto, os garotos já não sentem prazer. Na opinião de Insdorf, A Noiva Estava de Preto retoma esse filme onde ele parou: o que acontece com a mulher depois da morte do homem que ela amava – com Julie, o amor frustrado se transforma em hostilidade. Seus pretendentes são mais velhos, mas não menos ingênuos assegura Insdorf. De fato, Insdorf acredita que em Uma Jovem Tão Bela Como Eu pode-se dizer que Bernadette se vinga dos garotos de Os Pivetes. A culpabilidade masculina é o contexto de A Noiva Estava de Preto, clichê da mulher que imagina ganhar o amor de um homem adaptando-se ao modelo de mulher ideal dele, ela se insinua na vida de seus cinco pretendentes/vítimas, encarnando os sonhos de cada um. Truffaut explicou que através desses cinco homens poderia descrever cinco maneiras de perceber as mulheres, mas era também um meio de descrever cinco maneiras de uma mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos. Cinco homens diferentes entre si (a única ligação é o interesse comum pela caça, e também pela caça às mulheres), aquilo que os une é o que assombra Truffaut: acreditar no ideal para além do imediato, no eterno para além do efêmero, na deusa sonhada para além da mulher. E cada um deles será punido por isso. Insdorf mapeia o perfil das vítimas de Julie, mostrando os pontos fracos decorrentes das ilusões deles. Playboy prestes a se casar, Bliss (mesmo sobrenome de Camille, em Uma Jovem Tão Bela Como Eu) enxerga Julie como um possível conquista. Ela aparece misteriosamente vestida de branco. Julie é evasiva, acreditando que está apaixonada por ele, Bliss se apaixona por ela. Solteiro e sentimental, Coral é tímido e solitário (o que o assemelha a Charlie Kohler, segunda personalidade de Edouard Saroyan em O Tiro no Pianista). Julie se transforma no alimento romântico dos sonhos dele, uma mulher ideal que Coral imagina destinada a ele. Aspirante a político, Bertrand está fechado em sua complacência e pretensão, incapaz de enxergar mais longe do que seus interesses mesquinhos. Ele parece satisfazer-se com o papel de mulher servil de Julie, a mulher como um bibelô conveniente. Artista e playboy, Fergus faz dela seu próprio molde particular de uma deusa. Fazendo-a posar como Diana a caçadora, ele não

O Marcello de Mastroianni

Roberto Acioli de Oliveira (Colaboração especial para o Zonacurva) Mastroianni – Já o vimos na pele de um homossexual, de um impotente, de um corno e até de um homem grávido, mas grande parte da imprensa especializada insiste em referir-se a ele como o grande Amante Latino. Marcello Mastroianni não gostava deste rótulo, segundo ele inventado pelos produtores norte-americanos. “Eu não sou um sedutor”, insistiu o ator, que o amigo Federico Fellini chamava de Snaporaz, em referência ao papel de Mastroianni como o protagonista masculino atordoado e mulherengo de Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980). Neste filme, o cineasta criou situações que muitas mulheres consideraram antifeministas. De modo geral, era uma crítica que pairava sobre ele, contudo Mastroianni o defendeu: “Todos os homens são um pouco misóginos, ora essa! [Fellini] não fez mais que falar de mulheres, e as olhava sempre como um menino guloso” (BIAGI, E. 1997: 17, 18). “- Quem foi o primeiro ator da história? – Adão, obrigado a fazer os papéis de noivo, marido, pai e por aí afora”  Mastroianni em entrevista a Enrico Roda (BIAGI, E. 1997: 7) Marcello Vincenzo Domenico Mastroianni (1924-1996) não nasceu na cidade grande. Fontana Liri, sua cidade natal, fica a meio caminho entre Roma e Nápoles – mas sua família já havia se mudado para Roma desde antes da Segunda Guerra. Com 160 filmes no currículo, Mastroianni passou pelas mãos de muitos cineastas. Dentre os italianos, além do próprio Fellini, os nomes mais conhecidos são Alessandro Blasetti, Luciano Emmer, Carlo Lizzani, Luchino Visconti, Mario Monicelli, Mauro Bolognini, Vittorio De Sica, Michelangelo Antonioni, Pietro Germi, Elio Petri, Dino Risi, Valerio Zurlini, Ettore Scola, os irmãos Taviani, Giuseppe Tornatore, Liliana Cavani e Francesca Archibugi. Gian Piero Brunetta o considera um dos “mosqueteiros da comédia italiana”, ao lado de Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Ugo Tognazzi e Nino Manfredi (BRUNETTA, G. P. 2009: 193). Dentre os cineastas estrangeiros que trabalharam com ele, poderiam ser citados o grego Theodoros Angelopoulos, o português Manoel de Oliveira e o brasileiro Bruno Barreto. Mastroianni por Mastroianni: “(…) Em suma, considero-me um homem cheio de veleidades, sem força de caráter. A prova do que digo está justamente na minha capacidade de fazer bem na tela os fracos de caráter: o barão Cefalù de Divórcio à Italiana, o professor Sinigaglia de Os Companheiros, o intelectual em crise de Fellini 8 1/2” (BIAGI, E. 1997: 8)   Mastroianni e Sophia Loren Trabalhando inteiramente no campo da comédia, a parceria entre o ator e a atriz rendeu a eles mais louros do que suas próprias carreiras tomadas isoladamente. De acordo com Pauline Small, esse é especialmente o caso em relação às parcerias de Mastroianni com outras atrizes. Desde suas primeiras comédias juntos na década de 50 do século passado (a maioria se encaixa no chamado “Neo-Realismo rosa”), até o casal atrapalhado em Prêt-à-Porter (direção Robert Altman, 1994), passando pelo mais sério Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1976), a dobradinha era garantia de bilheteria e fez a felicidade de muitos produtores e cineastas – fizeram 12 filmes juntos (BIAGI, E. 1997: 67). A atriz Sophia Loren completou 80 anos no último dia 20 de setembro. Ao contrário de Loren, Mastroianni possuía experiência de teatro, embora o trabalho em comédias do cinema italiano lhe tenha proporcionado uma experiência que não possuía. Sua parceria com Loren em Peccato che Sia una Canaglia (direção Alessandro Blasetti, 1954), o fez se preocupar com a possibilidade de que passasse a ficar para sempre ligado àquele tipo de papel (houve uma enxurrada de oferecimentos para ele repetir o papel do taxista de Roma), mas admitiu que esse filme em companhia da atriz foi essencial para o aumento de sua popularidade – em quase todos os filmes que contracenou com Loren, Mastroianni aparecia menos do que ela na tela (DEWEY, D. 1993: 72, 128). Referindo-se a sua atuação ao lado de Vittorio Gassman em Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958), Mastroianni faz uma referência à Peccato: “E realmente eu fiz personagens como esse antes, por exemplo, em Peccato che Sia una Canaglia. Era o habitual inocente bem intencionado que no fundo não é realmente cômico, mas que reage às situações de uma forma que faz as pessoas rirem (…)” (Idem: 90) Naquela época, em meados da década de 50, começava a surgir uma tendência de se criarem comédias em torno de casais. Contudo, ainda que Mastroianni tivesse no começo de sua carreira concordado em tomar o lugar de “cara legal” (bravo ragazzo) construído por Vittorio De Sica durante a década de 30, logo começou a sentir-se numa camisa de força (o medo de só ser chamado para esse tipo de papel). Tanto que, pelo mesmo motivo, passará a sempre atacar o estereótipo de Amante Latino que nunca desgrudou dele (SMALL, P. 2009: 89-93). Quando Sophia Loren entrou na guerra dos seios Mastroianni e seus duplos De acordo com Donald Dewey, antes de chamar atenção pelas performances no melancólico Noites Brancas (Le Notti Bianche, também conhecido como Um Rosto na Noite, direção Luchino Visconti) em 1957 e no simplório Os Eternos Desconhecidos no ano seguinte, Mastroianni era visto como mais um dos bonitões da tela. Foi apenas a partir de A Doce Vida (La Dolce Vita, direção Federico Fellini, 1960), embora ainda em função de um esforço pessoal do ator, que esse rótulo começou a se descolar da mente daqueles que o chamavam para atuar no cinema. Na seqüência, consolidaram essa mudança o papel de protagonista em O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960), Divórcio à Italiana (Divorzio all’Italiana, direção Pietro Germi, 1961) e A Noite (La Notte, direção Michelangelo Antonioni, 1961) (DEWEY, D. 1993: 11-2, 15, 247-9, 265). Com estes quatro filmes em seqüência pode se ter uma noção do alcance de Mastroianni, do aborrecido e pouco sociável repórter de A Noite até o marido safado de Divórcio à Italiana. A galhardia da versatilidade de Mastroianni como ator seria igualada apenas por sua capacidade (suicida, segundo

O poeta Manuel Bandeira, por Joaquim Pedro de Andrade

  [embedyt] https://www.youtube.com/watch?v=PCzyBUthBxM[/embedyt] Em 1959, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade debutou como diretor de cinema com o curta-metragem O Poeta do Castelo, que mostra o cotidiano de seu padrinho de crisma, o poeta Manuel Bandeira. O cinemanovista Joaquim tem no currículo filmes como Macunaíma (1969) e Garrincha, alegria do povo (1962). Joaquim Pedro descreveu a experiência de filmar o poeta em texto publicado no Suplemento Literário do Diário de Notícias em abril de 1966: “Manuel Bandeira descobriu que era um bom ator. A sua risada alegre e inesperada, comemorando o primeiro take do filme O Poeta do Castelo, foi para mim a mesma e boa surpresa que desde menino eu ouvia quando menos esperava. Sou afilhado e amigo de Manuel Bandeira. Às quartas-feiras, ele vinha jantar com meu pai (Rodrigo Melo Franco de Andrade) e falava de tudo. Me lembro bem das noites em que ele se indignava, contando alguma coisa que o tivesse irritado e agitava-se impulsivo, violento, para de repente achar graça na própria fúria e na história que estava contando”. Joaquim Pedro de Andrade nasceu no Rio de Janeiro em 25 de maio de 1932 e morreu na mesma cidade em 10 de setembro de 1988. Filho de Rodrigo Mello Franco de Andrade, um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Joaquim conviveu desde cedo com figuras como Bandeira, Vinicius de Moraes, Oscar Niemeyer e Carlos Drummond de Andrade, que costumavam frequentar sua casa. Joaquim Pedro iria repetir a fórmula de breve documentário em Mestre de Apipucos, também filmado em 1959, em que retrata a intimidade do sociólogo e escritor Gilberto Freyre, também amigo de seu pai. Rodeado de intelectuais de esquerda, Joaquim foi criticado pela escolha: Freyre era uma figura assumidamente conservadora.   Nossas veias ainda não cicatrizaram

O ônibus lisérgico de Ken Kesey

Ken Kesey – Nos anos 60, muitas amarras se quebraram e o ideário de liberdade arrebatou parte de uma geração. Os que não se resignavam chutaram a porta dos caretas oferecendo suas vidas na ânsia por uma nova identidade pessoal. Misto de guru e escritor, Ken Kesey foi O cara dessa época. Kesey e seu ônibus dos Merry Pranksters mergulhou nas estradas em busca de uma experiência metafísica em junho de 1964. Com a grana do sucesso de seu livro Um Estranho no Ninho, que vendeu (até hoje) a impressionante cifra de 9 milhões de exemplares, Kesey, uma das figuras mais cultuadas da chamada contracultura, comprou um ônibus modelo 1939 e embarcou em uma viagem que partiu das montanhas de San Francisco. Ken Kesey nasceu em 17 de setembro de 1935 em La Junta, no Colorado, e morreu em 10 de novembro de 2001. As desculpas para a viagem foram o encontro com o escritor e psicólogo Timothy Leary em Nova Iorque, que realizava experiências com LSD, e a promoção do segundo livro de Kesey, Sometimes a Great Notion, lançado em 1964. Mas, na verdade, a estrada serviu como o palco ideal para a construção de um universo paralelo em busca do ápice da chamada intersubjetividade, com o auxílio de LSD e maconha. Arnaldo Baptista, ex-Mutantes, resume a tal de intersubjetividade na música Cê tá pensando que eu sou lóki?, do disco Lóki (1974): “ficamos até mesmo todos reunidos numa pessoa só”. O escritor Tom Wolfe narra a saga no livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, de 1968. Wolfe não era da turma e quando abordou o grupo, ele próprio confessa que “tudo que sabia a respeito de Kesey é que era um romancista muito conceituado, de 31 anos, e cheio de problemas com drogas”. Em entrevista à revista The Paris Review, feita entre 1992 e 1993, Kesey opinou sobre o livro de Wolfe: “quando ele [Wolfe] esteve no meio da gente, não tomou notas. Suponho que se orgulhe de sua boa memória, que até pode ser boa, mas é a memória dele, não a minha”. A tradução do livro de Wolfe, feita pelo escritor Rubens Figueiredo e editada pela Rocco, infelizmente só é encontrada em sebos. Depois de destacar-se como atleta de luta livre olímpica na adolescência, Kesey foi participar, em 1959, do curso de escrita criativa da Universidade de Stanford, na Califórnia. Por lá, participou de um programa de pesquisas em um hospital com drogas como LSD, psicobilina e mescalina, legais nos Estados Unidos na época. Depois de experimentá-las, Kesey escrevia relatórios para o governo norte-americano. Chegamos à surpreendente conclusão de que as autoridades daquele país incentivaram indiretamente o surgimento do movimento psicodélico. Nesse texto do site Open Culture, podemos assistir ao vídeo de Kesey em que relata essas experiências. A partir desse momento, ele começou a acreditar no poder das drogas alucinógenas no confronto dos medos pessoais. A viagem, Kerouac e Hell’s Angels Depois de participar com seu alter ego Dean Moriaty do romance On The Road de Jack Kerouac, Neal Cassady, agora em carne e osso, foi o motorista do ônibus. O próprio Kesey tenta definir o amigo: “certamente Cassady não tinha o desejo da morte, ele tinha o desejo da eternidade… ele foi um avatar, alguém em contato com outros poderes… [para terminar, Kesey arremata que ele não passava de] um michê e vendedor de carros”. Cassady e o poeta Allen Ginsberg ajudaram a fazer a ponte entre Kesey e Kerouac, o encontro rolou durante a viagem que durou cerca de um mês. O colaborador Zonacurva, Guilherme Ziggy, escreveu sobre o encontro em texto publicado por aqui neste blog: “Kerouac passou três horas sentado num sofá, bebendo a cerveja que havia trazido de casa, sem dizer uma palavra sequer, e quando abriu a boca foi só pra reclamar. Reclamar de Cassady, Ginsberg ou do azarado que cruzasse sua linha de visão e ele tirasse pra cristo”. Wolfe descreve assim o encontro em seu livro: “Kesey e Kerouac não falaram muito um com o outro. Aqui estava Kesey e aqui estava Kerouac e aqui estava Cassady no meio deles, antes o Deus da Velocidade para Kerouac e toda a geração beat, e agora o Deus da Velocidade para Kesey e toda a — o quê — algo mais selvagem e mais bárbaro que estava rolando pelas estradas. Era como, oi, e até logo, Kerouac era a velha estrela. Kesey era o novo cometa fulgurante do Oeste, indo Deus sabe para onde”. Vanguardistas podem ser acusados de fuga da vida real pelos conservadores, que encaram a procura pelo novo como apenas a incapacidade em lidar com a real life. A última é confundida com uma existência monótona e conformista e destino inexorável do homem. Os Hell’s Angels representavam a nova vida real norte-americana e eram tratados com o mesmo desprezo destinado aos hippies por republicanos e wasps. A gangue dos motoqueiros bebedores de cerveja dos Hell’s Angels habitava as estradas do interior dos Estados Unidos. O temperamento dionisíaco de Kesey conseguiu unir seu bando de hippies aos hells em festas intermináveis.  “Kesey encontrou-se com os Hell’s Angels numa tarde em San Francisco por intermédio de Hunter Thompson, que escrevia um livro sobre eles. Kesey era um sujeito tão corpulento e bruto quanto eles. Tinha acabado de fumar maconha e estava um pouco mole, o que aos olhos dos Hell’s Angels equivalia a uma garantia de ser Gente Boa. Disseram-lhe que não se podia confiar num homem que nunca tivesse ido em cana, e Kesey andara em cana há bem pouco tempo”. O teste do ácido elétrico Os chamados testes do ácido que nomeiam o livro de Wolfe chegaram a reunir centenas de pessoas em uma catártica viagem intersubjetiva. A festa era embalada pelos sons de Grateful Dead, Jefferson Airplane, Janis Joplin e outras bandas. Os happenings eram realizados em locais diversos (para não atrair a atenção da polícia) e alugados na região de San Francisco nos anos 60: “um salão de baile surrealista fervilhando com 2000 pessoas, todas com esplêndidas

O cenário do jornalismo brasileiro em O Mercado de Notícias

Cinema, como tudo na vida, é feito de escolhas. Esse clichê serve para entrarmos no novo filme de Jorge Furtado, o documentário O Mercado de Notícias. Para o filme, Furtado escolheu traçar um panorama dinâmico do jornalismo, desde sua função e funcionamento, até questões de manipulação da notícia e parcialidade ideológico-política das empresas de comunicação. Para compor esse panorama, temos o depoimento de 13 jornalistas, dos mais diferentes veículos, que falam diretamente para a câmera entrecortados por uma edição ágil. Para completar, Furtado apresenta trechos da peça O Mercado de Notícias, escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson, em 1625 e que tem como tema a nascente imprensa inglesa do século 17. O que fica do documentário é a impressão de que Furtado expôs diversas opiniões e conceitos, mas de uma maneira superficial, em que prefere o excesso de depoimentos curtos e a variedade de sub-temas em detrimento a um aprofundamento em algumas questões mais cruciais para um tema tão complexo quanto o poder político que a mídia exerce no país. Isso não é um defeito do filme, e sim uma escolha de seu realizador. É como se Furtado quisesse que seu filme fosse apenas um mosaico de informações pontuais que o espectador possa usar como ponto de partida para tentar tirar suas próprias conclusões sobre o jornalismo praticado no país a partir de sua visão individual do tema no cotidiano. Outro ponto a deixar bem claro é que o discurso de Furtado, embora crítico, enaltece a profissão jornalismo.  Leia outras críticas do jornalista Fernando Oriente em seu blog Tudo Vai bem  O documentário tem um inegável valor, pelo teor dos depoimentos e pelos tópicos abordados, de propor um debate e de servir como uma espécie de guia de investigação sobre um tema atualíssimo como o papel político e econômico da mídia e as relações de poder e manipulação em que essa mídia exerce papel condutor na sociedade. É notório, e alguns depoimentos deixam claro, que o jornalismo no Brasil segue a linha política ideológica das empresas, que quanto maiores, mais conservadoras. Para aqueles que acompanham o papel dessa imprensa, o filme deixa uma sensação de que poderia ser mais enfático no desmascaramento da falsa imparcialidade dos grandes jornais, portais, TVs e rádios. O documentário carece de mais confronto entre o realizador e os seus entrevistados. O fato de Furtado optar por depoimentos curtos, pela agilidade com que alterna os depoimentos e pela introdução de trechos da peça em meio aos temas, tira o impacto dos assuntos abordados isoladamente e reforçam a intenção do diretor em ser plural na temática. Como exemplo, a pluralidade excessiva de discursos e temas distintos evita o aprofundamento em um tema capital: o fato dos grupos de mídia já serem, há tempos, um dos poderes constituídos dentro da sociedade, com uma força e uma legitimação similares aos poderes executivo, legislativo e judiciário. Isso é mencionado superficialmente no filme, mas acaba por se perder ao ser posto de lado para novos temas, uma nova enxurrada de depoimentos e uma variação frenética entre os muitos depoentes. Muito dessa diluição da profundidade dos debates no longa de Furtado vem dessa tendência no documentário de ser ágil demais, de fazer com que um excesso de depoimentos curtos se atropelem, o que não permite que os entrevistados desenvolvam com mais tempo suas ideias e opiniões e impede o cineasta de expor mais camadas e texturas na apresentação de determinados temas. A própria inclusão da peça não funciona muito bem em Mercado de Notícias. O texto fica diluído e não consegue interagir como confronto ou mesmo diálogo com o que é falado pelos jornalistas e com os temas propostos pelo diretor. O Mercado de Notícias toca em temas espinhosos como a linha política defendida pelos grandes veículos de informação apesar da dita imparcialidade de seus discursos, a perseguição dos principais grupos de mídia ao governo do PT, os factóides que são transformados em notícia, a relação dúbia entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão e o papel da Internet na renovação da maneira como a notícia chega ao público. Mas faz isso de maneira panorâmica. Furtado não se esquiva desses temas, ao mesmo tempo em que não se aprofunda neles. Fica um gosto de que o filme poderia ser mais. Assista ao trailer do documentário:

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