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Cultura

O jornalista e escritor Fausto Wolff escreveu: “cultura é arma de defesa pessoal”, esse é o guia dos textos aqui publicados.

Flip 2014: agora até escritor vira celebridade

FLIP – Em entrevista ao programa Roda Viva, em 1989, Millôr Fernandes, homenageado da FLIP (Festa Literária de Paraty) deste ano, fuzilou: ”eu acho a popularidade uma coisa extremamente vulgar, posso parecer elitista, mas eu não quero ser reconhecido na rua”. Segundo ele, a fama transformava a pessoa em “uma entidade vaga que o cara viu e achou bonitinho”. Assista a entrevista.  Na Festa Literária de Paraty (FLIP), cada fala dos escritores, por mais genial ou idiota, reverbera e trilha um longo caminho: plateia de 850 pessoas com ingressos esgotados há tempos, um telão atrás da tenda principal e outro na praça principal da cidade, trechos das conversas e áudios integrais no youtube, cobertura da grande mídia e a divulgação espontânea ou não pelas redes sociais. Durante os cinco dias da festa, entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, o incauto até pode acreditar que a literatura saiu dos círculos acadêmicos e literários e contaminou no bom sentido milhões de pessoas e batalhões de leitores black blocs saquearão a livraria mais próxima. Vaga ilusão. Longe de mim a defesa do escritor incompreendido em sua torre de marfim em busca da frase certa, bolando o romance que irá mudar o mundo, mas tenho dúvidas de que a espetacularização da figura do escritor democratize o acesso aos livros. Estive na FLIP e vi o escritor sendo valorizado e isso é legal. A grande maioria deles sacrifica sua vida na tentativa de viver de seu trabalho e vamos combinar que ninguém escreve para ser ignorado e viver no obscurantismo. Aqui (e sempre) cabe outra frase de Millôr: “não ter vaidade é a maior de todas”. 20 frases de Millôr Fernandes Evento literário mais importante do país, a FLIP fez uma homenagem justa a uma figura ímpar e genial como Millôr e contou, neste ano, com 47 autores de 15 países, que trataram de vários temas urgentes como a situação de abandono dos índios, os 50 anos da ditadura militar, o domínio da indústria alimentícia sobre nossos hábitos, depressão psicológica, os novos caminhos do jornalismo e alguns outros. Antes do início do festival em Paraty, seu curador, Paulo Werneck deu o tom: “procurei ver como todos [os escritores] falavam em público. Hoje, o escritor é uma figura que tem um aspecto de performance”. No final da feira, Werneck comparou a FLIP a um festival de rock e disse que “a gente conseguiu oferecer muitos ângulos, portas de entrada para o público”. Adoro festivais de rock e é certo que a literatura conta com concorrência pesada hoje em dia em mais de uma centena de canais a cabo, na internet, DVDS, Netflix, e inclusive dos festivais de rock, porém, o escritor nunca conseguirá concorrer, por exemplo, com os vlogueiros moderninhos que produzem vídeos de conteúdo irrelevante e assistidos por milhares de internautas. Sem purismos, cada um no seu quadrado. Hoje parece tão importante quanto o talento do escritor suas habilidades de palestrante, ator ou showman. E se o espetáculo do escriba em um palco contém frases de efeito, é divertido e espirituoso, seus livros estariam fadados a ocupar as posições mais altas das listas dos mais vendidos. Em entrevista ao genial humorista e ativista Rafucko, o escritor João Paulo Cuenca vai na contramão de Werneck: “existe uma espetacularização da figura do escritor, eles ganham hoje alguns trocados para falar sobre sua literatura para pessoas que não vão consumir mais do que aquilo, isso é bom, mas gostaria que as pessoas lessem os livros, me incomoda perceber que eu estou sendo consumido não pelo que escrevo, mas por uma performance”. Assista ao programa do Rafucko com Cuenca. Basta ler algumas de suas crônicas ou poemas, para sacar que talento não falta a Gregório Duvivier, integrante da trupe Porta dos Fundos. Os vídeos do Porta, como é conhecido pelos fãs do canal da web, já totalizaram um bilhão de visualizações. Mesmo com dois livros publicados e possuidor de um canudo em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, o perspicaz Duvivier ironizou sua presença anunciada com destaque na FLIP: “é humilhante falar depois da Eliane [Brum], ela está salvando populações ribeirinhas e eu tenho um canal de humor no Youtube”. Ponto pra ele. Ele participou da mesa literária ao lado do poeta Charles Peixoto e da jornalista e escritora Eliane Brum. Poucas horas depois, Duvivier já estava no Instituto Moreira Salles (IMS) conversando sobre um de seus romances preferidos, O Estrangeiro, de Albert Camus. E a jornalista descolada estava curiosa em saber quando ele iria escrever o seu romance. Com menos de 30 anos, Duvivier respondeu meio sem jeito que ainda não teve uma ideia que valesse a empreitada. Tão jovens quanto Duvivier, a neozelandesa Eleanor Catton, de 28 anos, e o suíço Joël Dicker, de 29 anos, venceram importantes prêmios literários. O romance A verdade sobre o caso Harry Quebert deu ao suíço o Prix de l`Académie e o catatau de quase 900 páginas Os Luminares de Canton lhe garantiu o Man Booker Prize. Ambos dividiram uma mesa literária e foram chamados pelo mediador José Luiz Passos de “dois autores vergonhosamente jovens e bem-sucedidos”. “Celebridade é um idiota qualquer que aparece na TV” Millôr Fernandes Enquanto os bem-sucedidos habitam a Tenda dos Autores, aspirantes tentam seu lugar ao sol na pequena casa do Clube de Autores, site que viabiliza a publicação de livros de escritores iniciantes. Na quinta, dia 31 de julho, um autor anônimo de Macapá fazia digressões sobre a antiga Macapá, aquela que não existe mais, de bairros charmosos e arquitetura preservada para meia dúzia de pessoas. Não passei da página 10. Na penúltima noite da FLIP, a sensação era de que uma nuvem de gafanhotos dizimou a livraria oficial da festa, a da Travessa. As enormes pilhas de livros dos autores do evento no primeiro dia da festa foram reduzidas a montinhos de meia dúzia de exemplares. Quem sabe, o público da FLIP leia os livros adquiridos e, com isso, cometam uma indelicadeza com o mestre Millôr tornando obsoleta

PIF-PAF tentou curar a ressaca do golpe de 64

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre para o audiovisual. ASSISTA:     Em 1964, um mês e meio depois do golpe militar, nascia o PIF-PAF, o pequeno jornal criado por Millôr Fernandes que mostrou novos caminhos para o jornalismo combativo e independente que foi feito mais tarde (e sempre). Charges, tiradas demolidoras, textos de diversos estilos e tamanhos, muitas mulheres (e políticos) de biquíni, embalados por um humor cáustico, foram as armas usadas para a certeira crítica política e comportamental da época. Os leitores aprovaram e já no primeiro número, ele vendeu 40 mil exemplares. Infelizmente, PIF-PAF durou apenas 4 meses e 8 edições. Apesar da boa aceitação dos leitores, a publicação foi fechada por um misto de perseguições políticas e má administração. O jornal PIF-PAF nasceu de uma seção fixa da revista O Cruzeiro, uma das revistas mais lidas da história da imprensa brasileira, que chegou a vender mais de 700 mil exemplares em 1954 no suicido de Getúlio Vargas. Na época, o Brasil tinha cerca de 45 milhões de habitantes. Millôr começou a trabalhar por lá como contínuo com apenas 15 anos, em 1938. Mais tarde, passou a escrever na seção da revista com o codinome de Emmanuel Vão Gôgo e dividia o espaço com Péricles Maranhão, criador do personagem Amigo da Onça, e outros como Borjalo, Ziraldo e Fortuna. Depois de perder o emprego na revista O Cruzeiro por pressões da Igreja Católica por produzir o trabalho satírico A verdadeira história do Paraíso, o humorista e jornalista Millôr conseguiu um empréstimo junto ao banqueiro José Luís de Magalhães Lins, do Banco Nacional, para fundar o PIF-PAF. A trupe do jornal contava com cartunistas como Jaguar, Ziraldo, Claudius, Fortuna e textos de Sérgio Porto, Rubem Braga, Antônio Maria, além de outros colaboradores. O argentino nascido na Áustria, Eugênio Hirsch, foi o responsável pelas inovações gráficas. Millôr explica como funcionava a folha salarial da redação: “ninguém ganhava nada, tudo era sem fins lucrativos”. O jornalista Bernardo Kucinski, em seu livro Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, explica que essa “precariedade se tornaria marca registrada da imprensa alternativa. Os humoristas entregavam suas colaborações, mas não trabalhavam na revista. Millôr Fernandes, com a experiência de O Cruzeiro, produzia tudo”. 20 frases de Millôr Fernandes O texto da página relata que “Carlota se excedeu nas críticas à ocupante do cargo, apesar de anteriormente tanto tê-la ajudado na posse… Miss Castelinho agrediu-a na presença de inúmeras testemunhas”. Na foto a seguir, os políticos tomam um drinque já “que as brigas entre amigas antigas e verdadeiras não duram muito”. [Carlos Lacerda e o governador mineiro, Magalhães Pinto, forneceram forte apoio ao golpe militar] Millôr explica a perseguição sofrida pelo poder: “o PIF-PAF Paf  foi fechado por um conluio entre o governo federal e o governo estadual aqui [no antigo estado da Guanabara], que naquela época era o Carlos Lacerda…. não tive forças para lutar, eles começaram a apreender um número, depois devolveram o número, depois o oitavo número eles apreenderam todo e eu não tinha mais dinheiro para fazer”. O jornal deixou uma dívida de 21 mil cruzeiros para Millôr, que a quitou após dois anos.   “Não tenho procurado outra coisa senão ser livre. Livre das pressões terríveis da vida econômica, das pressões terríveis dos conflitos humanos, livre para o exercício total da vida física e mental. Livre das ideias feitas e mastigadas, tenho como Shaw [Bernard], uma insopitável desconfiança de qualquer idéia que já venha sendo proclamada por mais de dez anos…” MILLÔR FERNANDES

O homem-livro Massao Ohno

Filho de imigrantes japoneses, Massao Ohno marcou época entre os editores de livros no país. A Massao Ohno Editora publicou livros que impulsionaram a carreira de toda uma geração de escritores e poetas iniciantes que surgiu na capital paulista nas décadas de 60 e 70. Um desses livros representa o espírito de seu trabalho: a Antologia dos Novíssimos, de 1961, com poemas de Claudio Willer, Álvaro Alves de Faria e Eunice Arruda.  Ele publicou também figuras como Hilda Hilst e Roberto Piva. Em entrevista ao livro Dentes da Memória, de Renata D`Elia e Camila Hungria, Ohno lembra como teve a ideia de lançar a Antologia dos Novíssimos: “Em qualquer canto, havia um grau de criatividade muito grande. Esses poetas traziam uma inovação que gostávamos de incorporar à produção editorial. Mas o critério de escolha não de dava apenas por serem autores novos, e sim pelo fato de conter uma mensagem nova ou um estudo de forma interessante. Aí sim, eu creio que valeu a minha opinião, independente de críticos literários. Foi uma tentativa de sondagem. Um gosto pessoal” Leia texto sobre o livro Dentes da Memória que retrata a boa geração de poetas paulistanos Dentista de formação, Ohno iniciou as atividades de sua editora na década de 50 publicando apostilas para cursinhos pré-vestibulares. Mais tarde, começou a publicar autores que despontavam no cenário literário da época. Ohno editou cerca de 800 livros e incorporou trabalhos de Manabu Mabe, Ciro Del Nero, Aldemir Martins, João Suzuki, Jaguar, Millôr, dentre outros artistas, a seus livros, em capas ou ilustrações. Ohno militou na AP (Ação Popular), que combatia a ditadura militar e foi um dos produtores do genial filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. O editor morreu em Sorocaba em julho de 2010, casou quatro vezes e teve quatro filhos. A Serena Filmes finaliza um documentário sobre Massao através de financiamento coletivo. Acesse o site da produtora. Assista ao trailer do documentário:   A saga da vanguarda poética paulistana  

A eterna disputa entre vinil x CD

por Milton Ribeiro e Nícolas Pasinato (do portal Sul21) Há poucos anos, o jornalista e escritor Luiz Biajoni escreveu sobre um fato que batizou de “Síndrome da Biblioteca de Babel”, ou seja, a desvalorização de conteúdos que — em velocidade e grande profusão — são veiculados na internet. Seu foco era a música. No século passado, comprava-se música em LPs e eles não eram nada baratos. Os jovens que gostavam de música e que recebiam apenas uma mesada de seus pais tinham que economizar para comprar um vinil por mês e olhe lá. E, se o disco fosse ruim, era uma pequena tragédia, pois tinha-se que aguardar 30 dias pela próxima chance. Errava-se raramente, mas acontecia, e a coleção de discos costumava ser bem ouvida, muito amada e motivo de orgulho. Hoje, o melômano baixa músicas em tal quantidade e de tal forma que muitas vezes não as relaciona com o CD de origem, ou seja, com o trabalho completo do artista que montou o CD com cuidado e coerência. Ouve-se as canções sem saber de que disco saíram, o que para velhos puristas é uma heresia inconcebível. Este artigo não é passadista, mas canta algumas qualidades dos LPs, daqueles velhos bolachões de vinil com suas belas capas e brilhantes discos pretos de 30 cm de diâmetro que podem ainda ser encontrados em sebos que, às vezes, cobram fortunas pelas raridades. Há controvérsias sobre qual teria sido o primeiro LP da história. Os alemães têm sua versão, falsa, de que o vinil surgiu há 62 anos, no dia 31 de agosto de 1951. Na época, era chamado de long-play (LP) e teria sido produzido pela gravadora alemã Deutsche Grammophon, fundada em 1898 e ainda hoje em atividade, sendo a mais antiga do mundo. Porém, a versão correta é a de que a Columbia Records não apenas desenvolveu como lançou o LP que girava a 33 1/3 rotações por minuto (rpm) e era capaz de armazenar até 30 minutos de áudio de cada lado. O primeiro LP foi The Voice of Frank Sinatra, de 1948. O que é indiscutível é que a tecnologia do disco de vinil surgiu no final da década de 1940. O vinil é um tipo de plástico, usualmente na cor preta, que pode ser reproduzido através de um toca-discos. O disco possui um longo sulco em forma de espiral que conduz a agulha do toca-discos da borda externa em direção ao centro, em sentido horário. Estes sulcos são microscópicos e fazem a agulha vibrar. Essa vibração é transformada em um sinal elétrico que é amplificado e transformado em som audível. O vinil é um tipo de plástico muito delicado e qualquer arranhão pode ser ouvido, comprometendo a qualidade sonora. Idealmente, os discos devem permanecer limpos, livres de poeira e guardados na posição vertical — de forma a não ficarem empenados –, dentro de sua capa e de seu envelope ou plástico de proteção. Tudo isto é necessário porque a poeira pode tanto prejudicar o disco quanto a agulha. Voltando à história. Um ano depois, o primeiro vinil de 45 rpm foi produzido pela RCA. Ele tinha 18 cm de diâmetro e reproduzia 3 minutos de áudio de cada lado, ou sejam, trazia o mesmo tempo de música que seus predecessores, os grandes e pesados 78 rpm. Como os 45 rpm eram leves, também eram ideais para aos grandes sucessos populares e os fabricantes de jukeboxes. Voltando à história. Um ano depois, o primeiro vinil de 45 rpm foi produzido pela RCA. Ele tinha 18 cm de diâmetro e reproduzia 3 minutos de áudio de cada lado, ou sejam, trazia o mesmo tempo de música que seus predecessores, os grandes e pesados 78 rpm. Como os 45 rpm eram leves, também eram ideais para aos grandes sucessos populares e os fabricantes de jukeboxes.  Um toca-discos com o 45 rpm do clássico ‘Dreidel’, de Don McLean: O 45 rpm era leve, pequeno, tinha som melhor que os 78 rpm e, assim como os LPs, era flexível, só quebrando por extrema imperícia do dono. Logo, os 45 rpm também receberam versões em 33 1/3, ganhando um pouco mais de tempo de gravação e os novos nomes de compactos simples (com uma canção de cada lado) e duplo (com quatro ao todo). Em 1958, chegaram os discos estereofônicos, que tinham dois canais em cada sulco, o que tornou necessário duas caixas de som que não reproduziam exatamente o mesmo som, como acontecia com os LPs anteriores, que passaram a ser chamados de mono. Até 1970, o estéreo era geralmente usado apenas para LPs, quando os compactos começaram a aparecer em versões também em estéreo. No final dos anos 80, os vinis começaram a ser substituídos pelo CDs. Mas nostálgicos costumam cantar as vantagens dos antigos LPs sobre os atuais CDs e mp3. O Sul21 convidou o engenheiro de áudio Marcos Abreu para traçar paralelos entre as duas tecnologias. Sul21: Quais são as principais diferenças entre as gravações analógicas e digitais? Abreu: A princípio, tanto a gravação analógica quanto a digital têm limitações ou características próprias. A analógica, a dos LPs, tem a informação completa e a digital tem a informação fragmentada, convertida em bytes e bits, números. O que o pessoal mais sente de diferença entre o analógico e o digital é que hoje as gravações digitais são muito comprimidas para conseguir maior volume, enquanto que os discos analógicos mantém em grande parte a dinâmica original. Com a manutenção desta dinâmica as coisas ficam mais naturais no analógico do que nesse digital que é vendido hoje. Não quer dizer que as gravações digitais sejam ruins. É que são coisas diferentes. O problema é a forma com que o digital está sendo trabalhado. Ele entrou numa guerra de volume e compressão que acabou estragando um som que deveria ser bom. Sul21: Pode se dizer que o som do vinil é melhor do que o do som do CD? Abreu: Não. Não posso dizer isso. Posso dizer que algumas gravações em digital

Pasolini detona o moralismo em Contos de Canterbury

A aparente simplicidade das narrativas soltas que compõem “Os Contos de Canterbury” (1972) é a matéria dramática que Pier Paolo Pasolini usa para desenvolver um tratado de celebração da vida por meio de seus prazeres, desejos, conflitos e imperfeições. Nesse processo está presente uma contundente negação crítica do moralismo reacionário que tanto o incomodava. Assim como nos outros dois longas que compõem a “Trilogia da Vida” (“Decameron”, de 1971 e “As Mil e Uma Noites”, de 1974) o cineasta italiano trabalha a poética visual, a liberdade de encenação e o sentido dos planos para enaltecer o homem em suas características mais humanas, instintivas e elementares. Existe em “Os Contos de Canterbury” uma afirmação do prazer e da alegria, aliadas a uma celebração positiva do sexo, do corpo e das pequenas ambições e suas satisfações imediatas. Para Pasolini, esses elementos são fundamentais para consolidação do eu; são, ao mesmo tempo, alimento para o espírito e para o corpo. Saiba mais sobre o cineasta italiano Pasolini A crítica do diretor em relação à sociedade da época (os anos 70 na Europa), e que se torna ainda mais atual nos dias de hoje, vem do conflito entre a visão visceral e autêntica de mundo que ele encena e a vulgarização da auto exposição asséptica e do voyeurismo covarde e de recalque puritano que domina nossa sociedade. Com uma mis-en-scène ancorada na liberdade de construção dos planos e de decupagem, com uma câmera leve e solta e com uma composição de quadro em que o movimento constante dentro do plano dialoga com a movimentação da câmera e a variação de ângulos proposta pelas mudanças de posicionamento da câmera após cada corte, Pasolini aborda o sexo, o prazer e a cobiça, bem como as inter-relações dos personagens com uma naturalidade objetiva que destaca o ser humano como tipos imperfeitos em busca de felicidade, gozo e liberdade. É a forma sustentando a matéria de maneira orgânica dentro dos processos de encenação. O desenrolar das ações em um tempo passado (com impressionante apuro e bom gosto na direção de arte), livre de códigos de conduta ditos racionais, amplia o potencial da retórica do diretor. ‘Os Contos de Canterbury’ foram escritos pelo inglês Geoffrey Chaucer a partir de 1387. O livro é considerado um clássico da literatura daquele país. Outro aspecto que estende ainda mais a força de “Os Contos de Canterbury” é o trabalho de montagem. A união entre os contos dá-se de maneira sutil (ao mesmo tempo em que direta e imediata), em que o espectador é levado espontaneamente de um relato ao outro sem que a fruição do longa perca o ritmo. Essa desafetação das cenas esconde um aprimorado trabalho de encenação que mergulha no registro da sensualidade, do prazer e do descompromisso moral das ações. Como Pasolini sabe que a moral é abstrata e subjetiva, faz com que as atitudes de seus personagens sejam comandadas por impulsos, sem amarras conservadoras ou respeito a códigos de conduta castradores. O Evangelho segundo Pasolini Os personagens que surgem e desaparecem ao longo de ‘Os Contos de Canterbury’ são tipos humanos instintivos, viscerais em sua ligação orgânica com a força de seus desejos e impulsos imediatos. Agem e têm suas presenças físicas e emocionais constituídas por meio do caráter cru desses seus instintos. No desenrolar natural de suas existências, na fluência de suas vidas, esses instintos básicos estão sempre em conflito com códigos e regras de repressão, sejam eles sociais, de classe e de casta, regidos por uma ordem moral repressiva, imposta por conjunturas pré-estabelecidas que são a base essencial dos mecanismos de exclusão do mundo. Em Pasolini, viver em direção a uma possível liberdade existencial é assumir esse conflito e tentar superar, guiado pela força do desejo bruto gerado no instinto, essa obstrução em busca dos objetos e da realização dos prazeres sensoriais do desejo. Viver é se auto-afirmar por meio e dentro das estruturas do próprio conflito. São as imperfeições humanas e a noção dessa limitação que permite aos tipos a consolidação do encanto e o acesso à alegria da existência. O moralismo existe, no universo de “Os Contos de Canterbury”, para ser superado, enganado e ter suas imposições e regras implodidas pela liberdade de agir do ser humano. É uma certa imoralidade que desafia de forma quase heroica, ao mesmo tempo que natural, esses valores moralistas tortos. Ao filmar a essência instintiva da vida, Pasolini critica o artificialismo e o consumismo higiênico (no sentido daquele que apreende tudo aquilo que se pode adquirir dentro das normas de alienação segura do consumo da mercadoria). Os personagens nunca são julgados; seus esquemas, artimanhas e pequenos delitos são vistos com distanciamento conivente, em que a busca da felicidade e a consumação do desejo dão autenticidade às ações. Assista ao filme na íntegra, CLICA QUE VAI: https://youtu.be/18HVK34uZPw É essa postura afirmativa de Pasolini que o tornou um dos artistas mais “humanos”, libertários e, ao mesmo tempo, críticos da história do cinema. Da mesma forma que dava liberdade aos tipos comuns, condenava de forma impiedosa os estratos sociais que tanto desprezava (a burguesia em “Teorema” e “Pocilga” e os conservadores fascistas em “Saló”) O sexo, elemento fundamental em toda a “Trilogia da Vida” é o oposto do que vemos na sociedade do espetáculo que domina o mundo. É livre do aspecto marqueteiro e artificialista, em que a exibição dos corpos de laboratório mecanizada em repetições em série (em que gestos e expressões ditas sensuais dominam a cena) revela simulacros de intimidade que recalcam qualquer tentativa de autodeterminação da sexualidade. Em “Os Contos de Canterbury”, o sexo e o gozo (filmados de maneira direta e objetiva) são um exercício libertário e verdadeiro, são atos políticos; a exibição dos corpos nus é fonte de prazer tanto para os que se desnudam como para os que observam. A leveza e a sinceridade do erotismo conduzem as cenas. As imagens de Pasolini são uma expressão poética de uma realidade pretendida pelo cineasta. Ele extrai poesia das sensações de prazer e alegria dentro de

Julinho da Adelaide driblou a censura nos anos 70

Com o sucesso da música Apesar de você, em 1970, as canções de Chico Buarque passaram a sofrer uma espécie de censura prévia. Os integrantes do governo militar não se perdoaram por liberar a música e proibiram sua execução nas rádios. Irritada, a cúpula do regime considerou a letra uma ofensa ao presidente Médici, o evidente você. Acuado, Chico passou a assinar algumas músicas como Julinho da Adelaide. Julinho/Chico escreveu músicas como Jorge Maravilha, Milagre Brasileiro e Acorda Amor, aprovadas pela censura sem nenhum impedimento. Em Jorge Maravilha, Chico cantava: “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, o que gerou a especulação de que Amália Lucy, fã declarada dele e filha de outro presidente militar, o general Geisel, tinha sido a homenageada da canção. Chico sempre negou que tenha composto a música para Amália. Chico começou a contar para o público em suas apresentações que Julinho da Adelaide era um “compositor de morro carioca que vivia mais nas páginas policiais e que de repente passou para as páginas das crônicas musicais”. Imagens da ditadura e Apesar de você (considerada pelo governo da época um ataque direto ao presidente Médici): Será que a filha de Geisel gostou de “Jorge Maravilha”? Julinho da Adelaide concedeu uma entrevista ao jornalista e escritor Mario Prata, que a publicou no jornal Última Hora. Leia a entrevista completa em que Julinho declarou: “embora eu não seja cantor, um dia eu pretendo gravar um disco. Você vê, gente que não canta bem como o Chico Buarque, o Vinícius de Moraes, o Antonio Carlos Jobim, estão cantando”. Mario Prata comenta a entrevista histórica com Julinho em 1998: “Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo. Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro. Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkeley, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri, para o jornal Última Hora. Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida. Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.” LEIA TAMBÉM “HENFIL E AS DIRETAS JÁ” O militante Chico Buarque O trecho acima mostra a combatividade de Chico na época. Francisco Buarque de Hollanda ou Chico Buarque, como é conhecido, talvez, seja o representante-mor de toda uma época da música brasileira. Filho de um grande historiador brasileiro (Sérgio Buarque de Hollanda) e de uma pianista amadora, desde cedo teve o passado, presente e futuro ligados à música como forma de mensagem e ideologia para si e para quem quisesse ouvi-lo. Autor de clássicos odiados pelos homens fardados, Chico era, talvez, o principal combatente com lápis e papel do regime militar. Além da militância política, a arte e, em particular a música, foi uma grande arma no combate à política repressora do Estado brasileiro. O endurecimento do regime que veio com o Ato Institucional número 5, o AI-5, em dezembro de 1968, levou Chico Buarque a mudar para a Itália, onde chegou a realizar espetáculos com Toquinho. Se tornou amigo do compositor italiano Lucio Dalla, e verteu a música “Gesù Bambino”, de Dalla, para o português em “Minha História” (1970). Chico compôs outras tantas músicas consideradas verdadeiros hinos de resistência à ditadura militar: “Mulheres de Atenas”: música composta por Chico Buarque e Augusto Boal em 1976 para a peça Mulheres de Atenas de Boal. “Cálice”: composta em parceria com Gilberto Gil em 1973, a música foi censurada e seu título pode ser lido também como Cale-se, clara referência à censura e repressão vivida no país na época. “Vai Passar”: composta por Chico Buarque e Francis Hime em 1979, a música foi o hino da Campanha das Diretas, em 1984. “Meu Caro Amigo”: também composta por Chico em parceria com Francis Hime, é uma carta em forma de música e foi composta para o amigo de Chico, o dramaturgo Augusto Boal, exilado em Lisboa. Nela, Chico retrata a situação em que se encontrava o Brasil. Miúcha interpreta Milagre Brasileiro de “Julinho da Adelaide”: https://www.youtube.com/watch?v=sO43EW7falc A resistência de Gal Costa à ditadura civil-militar

Cinema no rumo certo com ‘Eles Voltam’

Dentre os bons filmes brasileiros que vem sendo produzidos por novos cineastas, ‘Eles Voltam’, de Marcelo Lordello, é um dos principais destaques. Um belo longa em que muito da força vem da maneira com que Lordello aborda as questões dos deslocamentos, internos e externos, de sua personagem central. Tema extremamente contemporâneo em nosso cinema, o deslocamento em ‘Eles Voltam’ ganha intensidade pelas escolhas que o diretor pernambucano imprime em sua construção de quadro, os desdobramentos emocionais implicados nesse deslocamento e no fato de desenvolver toda a dramaticidade a partir de uma bem calculada construção formal. ‘Eles Voltam’ começa quando Cris, uma menina de 12 anos, é deixada no acostamento de uma estrada junto com seu irmão. Logo em seguida, descobrimos que os jovens foram abandonados pelos pais como um castigo por estarem brigando, algo que serviria para ensiná-los uma lição. Cris irá se perder do irmão e terá que iniciar um complicado trajeto para voltar para casa. Bem, os motivos são o que menos interessam no filme. Os movimentos internos de Cris, seu deslocamento físico e emocional e os espaços em que esse deslocamento colocam a menina é o que interessa a Lordello. A jornada da protagonista, os lugares, espaços e ambientes em que ela passa, refratam os movimentos internos da menina. São os reflexos das angústias, incertezas, promessas e conflitos existenciais de uma jovem adolescente. O caminho que ela segue, sempre com uma postura altiva, representa alguém ciente dos artifícios emocionais que envolvem uma jornada de amadurecimento e um processo de auto-afirmação. Ela sente (mesmo de maneira inconsciente) que está finalmente vivendo o que irá definir sua personalidade, o começo de sua transformação de menina em mulher. Tudo isso é traduzido no filme sem nenhum uso de psicologismos ou lugares- comuns. É na estrutura evolutiva de ‘Eles Voltam’ que Lordello constrói o conteúdo do filme.  Leia outras críticas do jornalista Fernando Oriente em seu blog Tudo Vai bem  Cris se entrega, com os receios e as incertezas que isso pode provocar, para dar seus primeiros passos no mundo adulto. Seus deslocamentos são movidos pelo desejo (e a necessidade) de seguir em frente. Ao mesmo tempo, ela se permite relacionar de maneira confiante com cada nova situação, com todos os espaços e pessoas que atravessam sua jornada. Ela, apesar da situação de abandono e fragilidade em que se encontra, percorre seu trajeto como alguém que se dedica a absorver tudo que está a sua volta, a descobrir um mundo diferente, locais desconhecidos e pessoas completamente novas e diferentes em seu restrito círculo de relacionamentos. Ela sente o impulso e o poder das chaves de um auto-descobrimento.  ‘Eles voltam’ foi o grande vencedor do Festival de Brasília de 2012. O filme venceu o prêmio de melhor filme, melhor atriz (Maria Luíza Tavares) e atriz coadjuvante (Elayne Moura). Mesmo após sua volta à família, Cris sente-se deslocada. Algo dentro dela está diferente. Seu deslocamento existencial continua em meio aos seus familiares, na escola e em relação aos espaços em que está acostumada. Tudo em sua vida torna-se diferente. Seus movimentos internos alteram suas relações com os ambientes e as pessoas que a cercam. É dentro desse processo que ela se dedica a conhecer uma nova colega de classe, decide passear pelo centro do Recife (local onde uma menina de classe média poucas, ou nenhuma vez esteve) e passa questionar as opiniões do avô, em uma clara alusão à descoberta do poder de desafiar autoridades estabelecidas para imprimir sua própria visão de mundo. Assista ao trailer de Eles Voltam Todos esses discursos são elaborados por Lordello por meio da construção incomum da geometria dos quadros. Pela valorização da relação bruta de Cris com os espaços que seus deslocamentos a levam, pelos silêncios da personagem em oposição aos ruídos e sons que a envolvem e pela sensação constante de movimento que o diretor imprime a sucessão das cenas e também na evolução da narrativa em acentuadas elipses. A primeira cena do filme é um plano aberto, com a câmera em plongê, que mostra um trecho da estrada, com alguns carros que passam nos dois sentidos da pista dupla. O carro em que Cris e o irmão estão pára no acostamento, os dois descem, e o carro segue seu caminho. A partir do primeiro corte, quando vemos os irmãos à beira da estrada por meio de uma câmera mais próxima, o filme praticamente abandona os planos abertos e passa a ser preenchido por enquadramentos fechados, closes e um belo uso de primeiros e primeiríssimos planos. A proximidade da câmera remete diretamente a iminência com que o diretor pretende penetrar a alma de sua protagonista. Lordello constrói sua encenação por meio do desconforto provocado no espectador pelas posições de câmera oblíquas, pela disposição descentralizada dos tipos no quadro e por uma relação de conflito entre os personagens e suas posições dentro de cada cena. A câmera nunca filma Cris ou os tipos com quem ela interage de maneira tradicional, não existe o uso de enquadramentos frontais “padrão”. Ou a câmera está muito próxima, ou ela está posicionada abaixo dos atores (em variações do contra-plongê) ou ela registra mais de um personagem em cena dispondo os tipos um na frente do outro ou nas extremidades do quadro. A encenação a partir desses recursos permite a própria forma do filme exercer os questionamentos e acentuar os deslocamentos internos da personagem. As pessoas são filmadas de perfil, de costas, em detalhes de seus rostos e corpos, em movimento dentro do plano e em descompasso com os demais personagens e em relação aos cenários. Cris e os outros tipos são sempre enquadrados em closes, ângulos fechados, ocupando as bordas do quadro, em contra-plongês ou desfocadas. O uso do foco também acentua esse desconforto. Dentro da primazia dos planos fechados, Lordello joga com o foco entre os personagens, ambientes e objetos, desfocando o que está em primeiro ou primeiríssimo plano para captar a nitidez de um segundo plano e, na sequência, altera a captação da câmera para que a nitidez fique em

Um brinde para o velho Bukowski

Objetividade, muitos litros de álcool e uma boa dose de grossura. Essa pode ser uma, entre muitas, a definição do escritor norte-americano Charles Bukowski. Ele reduziu o sonho americano a personagens enlouquecidos em quartos imundos de hotéis. Em uma existência recheada de desventura, traumas, amores fracassados e prisões inesperadas, o escritor mergulhou em viagem metafísica na noite de sua amada cidade de Los Angeles.  Há 20 anos (9 de março de 1994), Chales Bukowski morreu, aos 73 anos, por complicações de uma leucemia. Vinho, dúzias e mais dúzias de cervejas e discos de música clássica acompanham o escritor na decadente Hollywood dos cafetões, aspirantes a superstars e alcoólatras inveterados. A literatura de Bukowski parece gritar: “já que não gosto do que vejo, então encho a cara, escrevo e mando tudo à merda”. Acusado de machista e de praticar uma subliteratura pelos amantes da boa e limpinha literatura, o também poeta Bukowski nunca deu muita importância sobre o que se falava dele e destilava sempre sua cáustica percepção da realidade, incomodando os conformados e medíocres. Os detratores de Bukowski ignoram como sua literatura sempre conviveu com a indiferença e a violência (ele passou a infância sendo espancando por seu pai que o considerava um indolente sem ambição). Isso foi regurgitado em uma nova forma de expressão em que uma escrita sem rodeios sai em defesa dos fracos e desesperados em busca de algum afeto ou da próxima rodada no bar da esquina. Com o velho Bukowski, não se tem meio-termo, sua persona literária e seus escritos despertam ódio e amor na mesma intensidade. A sua língua afiada também não perdoava. Nem o papa da geração flower power, Thimothy Leary, e um dos ícones do movimento beat, Allen Ginsberg, escapavam. O trecho é do conto O Grande Rebu da Maconha: “O deus do ácido deles, Leary, lhes diz: desistam da luta, me sigam, aí aluga um auditório aqui na cidade e cobra cinco pratas por quem quiser ouvir ele falar. depois chega Ginsberg junto com ele, e proclama que Bob Dylan é um grande poeta . auto-propaganda dos que ganham posando de maconheiros. América” Nascido na pequena cidade de Adernach, na Alemanha em 1920, Bukowski emigrou para os Estados Unidos com apenas dois anos de idade. Alemão de nascimento, o escritor mergulha na alma americana e destrói em sua literatura um dos paradigmas do american way of life: o culto ao vencedor. Adolescente brigão, problemático e triste, o que fica claro em um de seus melhores livros, Misto Quente – a juventude de Henry Chinaski (alter ego do escritor), Bukowski sofria com os abusos paternos até o dia em que o agride até nocauteá-lo e some de casa. Em uma das passagens do livro, seu pai soldado o obriga a cortar a grama do quintal (símbolo de toda família classe média norte-americana, uma casa limpa com um belo gramado à frente) com perfeição milimétrica. Qualquer falha era motivo para que seu pai o surrasse impiedosamente. Sobre o enterro de seu pai, Bukowski escreveu:  “Lembro que atravessamos a rua e entramos na casa mortuária. Alguém dizia que meu pai tinha sido um bom homem. Me deu vontade de contar a eles o outro lado. Que ele era um homem ignorante. Cruel. Patriótico. Com fome de dinheiro. Mentiroso. Covarde. Um impostor. Minha mãe só estava há um mês debaixo do chão e ele já estava chupando os peitos e dividindo o papel higiênico com outra mulher. Depois alguém cantou. Nós desfilamos diante do caixão. Talvez eu cuspa nele, pensei” Depois de abandonar sua família, o escritor vagou por quartos de motéis decadentes sobrevivendo de bicos em troca de poucos dólares. Muitas vezes, foi despedido por chegar tarde, embriaguez ou por simplesmente mandar o patrão se foder. Apostador ferrenho em corridas de cavalo, encontra o emprego da maior parte de sua vida: entregar cartas a velhotas falantes, mulheres histéricas e homens “ambiciosos” e “promissores”. Daí nasce outro livro: Post Office (editado no Brasil pela Brasiliense). O jornalista Jack Kroll da extinta revista semanal Newsweek escreveu como o fracasso é uma das saídas para artistas como Bukowski: “um pertubador profissional da ordem estabelecida — escreve com delirante insistência romântica, afirmando que os fracassados são menos hipócritas que os vitoriosos, e com veemente compaixão pelos perdidos.” Crítico da indústria do cinema, Bukowski foi transportado para a sala escura duas vezes. Em uma delas, o diretor italiano Marco Ferreri escolheu a monumental Ornella Muti para interpretar a prostituta Cass no filme inspirado no conto Crônica de um Amor Louco, Chinaski (Bukowski) é interpretado por Ben Gazzara. Em outra adaptação, Barfly, literalmente mosca de bar, traz na pele de Chinaski/Bukowski o ator Mickey Rourke em suas andanças pelos bares de Los Angeles. O filme mostra também a relação da editora da revista Harlequim, Barbara Frye, com Bukowski. Ela foi uma das primeiras a publicar o trabalho do escritor que enviava muitos de seus contos e poemas para várias publicações e era constantemente recusado. Hoje Bukowski tem conquistado aos poucos seu lugar entre os grandes escritores norte-americanos da segunda metade do século passado. Para seus detratores e admiradores, Bukowski resmungaria, com uma long neck na mão: “não importa se me acham um gênio ou um idiota; afinal, nunca pedi nada a ninguém.” Trecho do conto “A mais linda mulher da cidade” do livro Crônica de um amor louco: Bebi até a hora de fechar. Cass, a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitara aquele “não”. Todo o seu jeito de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça, por ser desligado mesmo. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que pôr a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos. Lá fora, alguém buzinou dentro de um

E Santos fez Lawrence Durrell lembrar de Rimbaud

Em dezembro de 1948, o romancista, poeta e dramaturgo indo-britânico Lawrence Durrell visitou a cidade de Santos. Na época, ele trabalhava como diretor do Conselho Britânico na cidade de Córdoba, na Argentina, e veio ao Brasil a trabalho.  O escritor Lawrence George Durrell nasceu em 27 de fevereiro na cidade de Jullundur, norte da Índia (próximo ao Tibete) e morreu em 7 de Novembro de 1990 no sul da França.  Sobre sua experiência em solo brasileiro, Durrell escreveu para seu amigo, o também escritor Henry Miller. Ambos conheceram-se em 1934. Durrell adorou o romance Trópico de Câncer, de Miller, e escreveu uma carta tecendo loas ao livro. Os dois foram amigos por mais de cinco décadas. Na carta sobre Santos, Durrell escreveu: “A carregar num porto tropical que podia muito bem servir para ilustrar Rimbaud na última fase. Silêncio, bruma, enormes montanhas. Tudo isto é muito diferente do que acabamos de deixar ­- o Rio [de Janeiro] construído como um grande e radiante órgão, as Montanhas do Órgão como tubos, a cidade com arranha-céus correndo à margem dessas montanhas termiteiras em forma de pão-de-açúcar… Penso que você iria gostar do Rio. Ficar sentado nos cafés e tomar uma água de côco, diretamente do fruto verde… Encontro-me sentado no convés a ler o Hamlet de Laforgue que não podia ser mais apropriado para o que sentimos todos, nas nossas almas dissecadas de europeus, diante desta imensidade e exuberância. O Brasil é maior que a Europa, mais selvagem que a África e mais estranho que a Terra de Baffin [maior ilha canadense].” Leia texto sobre a admiração de Henry Miller pelo pensador indiano Krishnamurti Filho de pai britânico e mãe irlandesa, aos 11 anos, Durrell deixou a Índia e foi estudar na Inglaterra. Em 1935, cansado do frio na Inglaterra e com seu desejo incansável de viajar, convenceu sua primeira esposa, Nancy Myers, e mudaram-se para a cidade grega de Corfu. Depois de viver um período no Cairo, Egito, mudou-se, em 1942, para a cidade de Alexandria, também no Egito. Mas foi no Chipre, onde sobrevivia dando aulas de literatura inglesa, que Durrell começou a escrever sua obra mais conhecida, O Quarteto de Alexandria. Durrell morreu em 7 de novembro de 1990.

Pussy Riot escancara os abusos do governo Putin

A banda Pussy Riot mostrou que a temporada na prisão não esmoreceu sua luta contra o governo Putin. Elas escolheram a cidade de Sochi, onde são realizadas as Olimpíadas de Inverno, para a execução de sua nova música/protesto e foram recebidas a chicotadas pela polícia. As músicas da banda foram presas em março de 2012 e libertadas em dezembro de 2013 sob a acusação pela justiça russa de vandalismo e incitação ao ódio religioso após a gravação de um clipe em igreja de Moscou. Enquanto tentavam gravar o clipe da nova música com o singelo título “Putin te ensinará a amar a Pátria-mãe” nesta semana, as integrantes foram duramente agredidas pela polícia e um fotógrafo, que registrava o momento, teve seu nariz quebrado. A saia-justa pela divulgação do vídeo e com o mundo de olho na Rússia devido à realização das Olimpíadas de Inverno, o governo se viu obrigado a dar satisfação sobre as cenas absurdas vistas no vídeo. Dmitry Kozak, vice-primeiro-ministro da Rússia, declarou, sem maiores detalhes, que os policiais agressores serão punidos. As integrantes da Pussy Riot levaram a um novo patamar o gênero música de protesto. De certa forma, a banda materializou o sonho de Jello Biafra e seu Dead Kennedys. Na década de 80, Biafra cantava aos quatro ventos as atrocidades da política norte-americana e arrebatou milhares de fãs, mas a Pussy Riot conseguiu ir além. Explico: através da música (não esqueçamos que elas formam uma banda), tornou-se a principal opositora de um governo. Sem dúvida, a truculência do governo Putin e a prisão delas colaboraram para a “divulgação” da banda. Mas e a música do Pussy Riot? O alcance da polêmica causada pela Pussy Riot é tamanha que esquecemos de enxergá-las como uma banda, e como toda banda, produz canções. As músicas são rápidas, quase no estilo DRI (Dirty Rotten Imbecils), banda norte-americana dos anos 80, que chegava a ter músicas com duração de apenas alguns segundos. O alvo preferido das letras é o presidente Vladimir Putin, no resto, as Pussy Riots não diferem de toda boa banda punk: iconoclastas e anti-quase tudo. A música mais recente: Putin te ensinará a amar a Pátria-mãe (com as imagens da truculenta polícia de Sochi com a banda) Death of jail freedom of prot (título em inglês da música) Putin coloca mais lenha na fogueira (tradução livre)  Punk prayer, gravada na igreja, que as levou à prisão   A prisão das Pussy Riot As integrantes da banda passaram uma temporada na prisão após a gravação do clipe de duas músicas na Catedral Cristo Salvador, em Moscou. Acusadas de vandalismo (“qualquer semelhança com fatos conhecidos por brasileiros NÃO é mera coincidência”) e incitação ao ódio religioso, foram presas e condenadas a dois anos de prisão em março de 2012. A indignação da opinião pública mundial e até a possibilidade de boicote de alguns países às Olimpíadas de Inverno em Sochi pressionou o governo russo a libertá-las em dezembro do ano passado. Livres, as integrantes não mudaram o tom do discurso contra o governo e disseram que tal medida não “passava da publicidade”. http://www.zonacurva.com.br/doido-mesmo-foi-rasputin/

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