Zona Curva

Curtas na curva

Textos breves sobre uma gama variada de assuntos.

Meu amigo Fidel

por Frei Betto  Perco um grande amigo. Nosso último encontro foi a 3 de agosto, quando completou 90 anos. Recebeu-me em sua casa, em Havana, e, à tarde, fomos ao Teatro Karl Marx, onde um espetáculo musical o homenageou. Embora tivesse o organismo debilitado, caminhou sem apoio da entrada do teatro à sua poltrona. Com Fidel, desaparece o último grande líder político do século 20, o único que logrou sobreviver mais de 50 anos à própria obra: a Revolução Cubana. Graças a ela, a pequena ilha deixou de ser o prostíbulo do Caribe, explorado pela máfia, para se tornar uma nação respeitada, soberana e solidária, que mantém profissionais da saúde e da educação em mais de cem países, inclusive o Brasil. Conheci Fidel em 1980, em Manágua. O que primeiro chamava atenção era sua imponência. Parecia maior do que era, e a farda lhe revestia de um simbolismo que transmitia autoridade e decisão. A impressão era de que qualquer poltrona era demasiadamente estreita para o seu corpanzil. Quando ingressava num recinto era como se todo o espaço fosse ocupado por sua aura. Todos ficavam esperando que ele tomasse a iniciativa, escolhesse o tema da conversa, fizesse uma proposta ou lançasse uma ideia, enquanto ele persistia na ilusão de que sua presença era uma a mais e o tratariam sem cerimônias e reverências. Como na canção de Cole Porter, ele devia se perguntar se não seria mais feliz sendo um simples homem do campo, sem a fama que o revestia. Certa ocasião, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, de quem era grande amigo, perguntou se ele sentia falta de algo. Fidel respondeu: “de ficar parado, anônimo, numa esquina”. Outro detalhe que surpreendia em Fidel era o seu timbre de voz. O tom em falsete contrastava com a corpulência. Às vezes soava tão baixo que seus interlocutores tinham de apurar os ouvidos. E quando falava não gostava de ser interrompido. Porém, não monopolizava a palavra. Jamais conheci alguém que gostasse tanto de conversar como ele. Desde que não fossem encontros protocolares, nos quais as mentiras diplomáticas ressoam como verdades definitivas, Fidel não sabia receber uma pessoa por dez ou vinte minutos. A convite de Fidel e dos bispos de seu país, atuei no resgate da liberdade religiosa em Cuba, facilitado pela entrevista contida no livro Fidel e a religião (Fontanar), na qual o líder comunista aprecia positivamente o fenômeno religioso. Não saberia dizer quantas conversas privadas tive com Fidel. Uma curiosidade é que este homem, capaz de entreter a multidão por três ou quatro horas, detestava, como eu, falar ao telefone. Nas poucas vezes que o vi ao aparelho sempre foi muito sucinto. Minhas frequentes viagens a Havana estreitaram nossos laços de amizade. No prefácio que generosamente escreveu para a minha biografia, lançada esta semana pela Civilização Brasileira, Fidel ressalta que defendo Cuba “sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos”. Na década de 1980, quando expressei críticas à Revolução, o Comandante frisou: “é seu direito. E mais: o seu dever”. Todas as vezes que eu o visitava em sua casa, depois que deixou o governo, levava-lhe chocolates amargos, seu preferido, castanhas e livros em espanhol sobre cosmologia e astrofísica. Conversávamos sobre a conjuntura política mundial, a sua admiração pelo papa Francisco e, em especial, sobre cosmologia. Contei-lhe que ao visitar Oscar Niemeyer, pouco antes da morte do arquiteto brasileiro, já centenário, este me disse, animado, que toda semana reunia em seu escritório um grupo de amigos para receber aulas de cosmologia. O fato de dois eminentes comunistas se interessarem tanto pelo tema, comentei com Fidel, me fez recordar uma cena do filme “A teoria de tudo”, no qual o protagonista do famoso físico inglês Stephen Hawking, ainda estudante em Cambridge, pergunta à jovem com quem iniciava o namoro: “o que você estuda? História, ela responde, e devolve a curiosidade. Ele informa: Estudo cosmologia. O que é isso?, indaga ela. E ele frisa: uma religião para ateus inteligentes”. Tenho para mim que Fidel, aluno interno de colégios religiosos ao longo de dez anos, abandonou a fé cristã ao abraçar o marxismo. De alguns anos para cá, deixou-me a nítida impressão de que se tornara agnóstico. Várias vezes me pediu, ao nos despedirmos: “Ore por nós”. Tenho certeza de que Fidel transvivenciou feliz com a sua coerência de vida. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. 50 anos da morte de Che Guevara  

País continua desigual, mas índices sociais melhoram entre 2010 e 2014

por Fernando do Valle Apesar da queda do crescimento do PIB, que caiu de 7,5% em 2010 para 0,5% em 2014, e o turbilhão político que o país mergulhou desde as manifestações iniciadas em 2013, o Brasil ainda apresentou melhorias no quadro social entre 2010 e 2014, segundo dados do RADAR IDHM, estudo coordenado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em parceira com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e a Fundação João Pinheiro e divulgado no início desta semana. O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) cresceu 1% ao ano entre 2011 e 2014, saindo de 0,738 para 0,761 (quanto mais perto de 1, melhor o indicador), porém 41% menos do que entre 2000 e 2010, quando o ritmo de subida foi de 1,7%. A renda per capita foi a que mais impulsionou o crescimento com incremento de 4,8% ao ano no período, o salto foi de R$ 698,48 em 2011 para R$ 803,36 há dois anos atrás. O Radar IDHM começou a medir a qualidade de vida nas cidades brasileiras em 2013 levando em conta 60 índices coletados pelo PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio), realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) com foco principal na evolução da renda, educação e saúde da população. Em 2010, O Brasil foi o país que mais avançou no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no mundo. Foram quatro pontos a mais em comparação a 2009. Enquanto o mundo estagnava, o Brasil liderava o grupo de poucos países, apenas 25, que conseguiram melhorar o desempenho.  Dos 169 países analisados à época, 116 mantiveram a posição apresentada em 2009 e 27 tiveram desempenho pior. Apesar de alguns resultados positivos, o Brasil ainda apresenta quadro de grave desigualdade social.  O índice de Gini, o principal indicador sobre desigualdade social, não obteve mudança considerável, melhorando entre 2011 (0,53) e 2014 (0,49). Os melhores índices são os da Dinamarca (24,7) e Japão (24,9). Número mais baixo significa menor desigualdade. Agora resta a expectativa de como o agravamento da crise econômica em 2015 e 2016 afetará os índices sociais brasileiros daqui para frente. http://www.zonacurva.com.br/a-cronica-desigualdade-brasileira/

Lula também será vítima de “julgamento político”

por Guilherme Scalzilli Jamais existiu a menor perspectiva de Lula ser tratado com isenção nos processos da Lava Jato. Sua condenação em primeiro grau é tão óbvia quanto o viés antipetista do Judiciário. “Não temos provas cabais, mas temos convicção”, o mote da denúncia feita pelo Ministério Público, resume perfeitamente essa tendência. A frase representa mais do que uma confissão metodológica dos procuradores. É um elo intertextual entre a retórica legitimadora do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e as condenações de petistas no STF pelo “mensalão”. A mensagem, nua e crua: julgamentos políticos dispensam provas. Quem conhece um pouco do meio já percebeu que as acusações contra Lula são típicas de processos frágeis, desses que o coronelato usa para sumir com desafetos. É fácil identificar o estratagema, no viés interpretativo, nos delatores confessos, nos elementos materiais irrisórios, no jogo de suposições gratuitas, nos sigilos traiçoeiros. A condenação de Lula Nada disso importa, pois a inocência de Lula deixou de ser uma possibilidade. Palavra contra palavra, e-mails com apelidos, rabiscos em agendas e está formado o “conjunto substancial de evidências” de que Sérgio Moro necessita, mais do que nunca forçado a evitar a desmoralização dos colegas procuradores. E a tese do “domínio do fato” fará sua reaparição espetacular diante da massa ignóbil. Ainda que não perca seus direitos políticos, Lula passará inúmeros constrangimentos, entre interrogatórios, detenções e solturas, sob o festim da escandalolatria midiática. E os especialistas de sempre, ignorando questões técnicas rudimentares, ajudarão a validar a ideia de que provas são irrelevantes quando se tem “convicção”. Em qualquer momento futuro, alguma corte superior absolverá Lula das principais acusações. “A tempo” de ele retomar uma carreira que todos saberão inviável. E os desembargadores, ou ministros, num teatro de isenção hipócrita, bradarão contra as injustiças aplicadas ao combalido e desmoralizado ex-presidente. Para aplacar o escândalo formado pela absolvição, o STF centrará fogo na imaturidade dos procuradores e na condescendência de Rodrigo Janot, ressuscitando aquelas irregularidades de Sérgio Moro e da PF que passaram incólumes. E a operação será desfeita aos poucos, no decorrer dos anos, cumprindo seu roteiro original. Não é correto imaginar, portanto, que a falta de provas robustas favorecerá Lula. Muito pelo contrário. Primeiro porque elas nunca impediram a predisposição condenatória das cortes. Segundo, e mais importante, porque fornecem um pretexto para que a cúpula do Judiciário preserve sua própria reputação, quando o sacrifício do petista for completado. Gostaria de imaginar que protestos e debates virtuais podem reverter esse quadro, mas desconfio que é exatamente a radicalização do lulismo que os justiceiros mais desejam. A saída parece residir numa mobilização oriunda do próprio campo jurídico, local ou internacional, enquanto alguém ainda fica perplexo com a insanidade e o arbítrio.  Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. Malufismo jurídico  

Balanço do golpe I

por Guilherme Scalzilli Os equívocos administrativos dos governos Dilma Rousseff são insuficientes para explicar o sucesso do golpe. Os péssimos índices socioeconômicos, a corrupção e a impopularidade não abreviaram os mandatos de José Sarney e FHC, por exemplo. A associação dos fracassos gerenciais de Dilma com a queda visa dar a esta um verniz meritório, criando pretextos para a negociata que os golpistas apelidaram “julgamento político”. A responsabilização da vítima esconde suas tentativas de resistência e, acima de tudo, os esforços sistemáticos da mídia, do Judiciário e do Congresso para sabotá-las. A viabilização do golpe se deu no âmbito estratégico. O impeachment representou uma confluência de elementos que foram se articulando ao longo dos últimos três ou quatro anos, nem sempre de forma planejada, mas partindo de setores com o mesmo interesse. Nesse sentido o governo petista contribuiu com a própria tragédia, como um jogador que planeja mal seus movimentos e subestima as manobras adversárias. Isso diz respeito a uma esfera pragmática da atividade política, onde ideais, plataformas e mesmo realizações ocupam lugar lamentavelmente secundário. Por ingenuidade, cinismo ou pura preguiça, os comentaristas midiáticos ignoram esse ambiente. Mas evitar a face espinhosa do impeachment leva a um idealismo alienante, que enxerga pressupostos no lugar de fatos, pessoas e instituições. Eis porque alguns progressistas e conservadores parecem ter visões tão semelhantes sobre o fenômeno. Nas próximas semanas abordarei a consecução do golpe sob as óticas político-partidária, social, jurídica, econômica e midiática, com um epílogo perspectivo. Não pretendo esgotar os assuntos, nem mesmo desenvolvê-los, e sim propor um rol de questões que julgo merecerem figurar nos futuros debates historiográficos.  Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. A escandalosa isenção do Judiciário brasileiro  

Golpe a jato

por Guilherme Scalzilli O país assiste passivamente à consumação do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. As audiências no Senado se transformaram em farsa legitimadora do processo, repetindo a eleição indireta que alavancou o regime militar de 1964. Antes e agora com aval do STF, da mídia corporativa e do empresariado. Se algo desautoriza esse paralelo, não é a falta de arbítrio no caso atual. Abusando de suas prerrogativas e agindo em sintonia com a agenda do impeachment, o comando da operação Lava Jato sabotou cada esboço de resistência petista no Congresso. As gravações ilegais que antecederam o processo na Câmara e o indiciamento de Lula às vésperas da decisão no Senado dispensam comentários. O tal “juízo político” dos senadores se resumiu a negociatas promovidas pelo banditismo interino. Grupos sem respaldo popular tomaram o governo de assalto e garantiram, no interior da máquina, que a invasão ficasse irreversível. E, pior, com estratagemas bem piores do que as manobras contábeis usadas contra Dilma. É possível que Ricardo Lewandowski, não sem algum cinismo, cobre dos parlamentares a convicção nos crimes alegados. Mas ninguém ali se preocupa com a ilegalidade do golpe, nem com as inúmeras denúncias de acadêmicos, jornalistas, juristas e autoridades políticas do Brasil e do exterior. Eis o ponto central: Dilma será julgada por pessoas indiferentes aos méritos jurídicos do processo. Qualquer acusação formal a derrubaria. As patéticas alegações dos senadores favoráveis ao impeachment revelam que eles ignoram até a base técnica do tal “crime de responsabilidade”. A longa tradição de golpes ‘brancos’ no Brasil Da mesma forma, os defensores do arbítrio na mídia passaram a falar em “fracasso” do governo Dilma, como se fosse motivo constitucional para derrubá-lo. Não é. Fazendo apologia de uma inconstitucionalidade, esses analistas escancaram a própria natureza antidemocrática de sua defesa do impeachment. A previsível supervalorização da derrota de Dilma servirá como atestado simbólico de culpa, suprindo a falta de provas e fundamentos legais do veredito. Mas não deixa de ser sintomática a identificação do desmoralizado Congresso Nacional com a ideia de justiça que fundamenta o golpe. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.

“Feia é a miséria”, certa vez afirmou Gilberto Freyre

por Urariano Mota Os seus livros se apoiavam em pesquisas originais, tidas até então como indignas, de receitas de cozinha aos anúncios de escravos na imprensa e fotos de álbuns de famílias senhoriais. Uma inteligência e sensibilidade de gênio a serviço do objeto que estudava. Original e mui confiante desse espírito original. Afoito, com aquela afoiteza que caracteriza os que têm a consciência do próprio valor. Casa-grande & senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século XX, é para mim o que vai atravessar a nossa e as vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem escrito, e bem escrito de tal forma, que mais parece literatura, romance. Esse Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito quanto Casa-Grande. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud.  E o seu conteúdo (supondo uma separação dura de forma e conteúdo)? Em uma época de doutrinas racistas no Brasil e no mundo (lembremos o grande Euclides da Cunha a falar de raça frágil em Os Sertões), onde sempre se disse que nós éramos sub-raça (até hoje há quem insista nisso) por força da miscigenação, Gilberto Freyre destacou o avanço da mistura de raças, e não só a mistura, Freyre ressaltou o papel do negro como agente da nossa formação cultural e de raça. Ele chega a frases lapidares, como na resposta que dá à ideia reinante de que o negro era feio: “feia é a miséria” (em que o negro vivia). Lembro — e tudo que digo aqui é de memória, sem consulta — do destaque dado por ele a alguns grupos de negros, muçulmanos, que eram alfabetizados, artesãos sofisticados, escravos de senhores de engenho analfabetos. (Isso ocorreu com mais frequência na Bahia). Notem que o livro é de 1933, e chegou a ser mandado queimar pelos padres da igreja em Pernambuco. Coisa herética, do diabo, com suas revelações vexatórias da vida sexual, promíscua nos engenhos, em que às vezes as crianças negras papavam o “rabo” dos meninos brancos. A sua orientação e influência, como uma gripe inescapável, se estendeu sobre a prosa e poesia dos nossos mais brilhantes escritores, de José Lins do Rego a Manuel Bandeira e Ascenso Ferreira. Também aos maiores pintores, como Lula Cardoso Ayres e Cícero Dias. Mas o poder da prosa de Gilberto Freyre, a beleza encantatória do que escreveu nos trechos vários em que sacrifica a ciência para não perder o ritmo de um parágrafo, esse poder e esse encanto têm que ser mortos. Um ponto nevrálgico da sua obra é que, ao lado dos avanços, reproduz também os limites do autor e da sua classe: Gilberto Freyre é filho e neto de senhores de engenho, um sujeito culto, genial, portanto “ovelha negra” em seu meio (cultura, talento e civilização sempre aguçam conflitos, em lugar de apaziguá-los), mas filho dos seus limites de tempo e de classe. Isso quer dizer: ele não vai fundo na violência e violentação sofrida pelo escravo. Ele não chega ao extremo de outro grande brasileiro, Joaquim Nabuco, que em alguns trechos de Minha Formação tornava lírica a relação entre escravos e senhores da sua infância. Mas faz, é verdade, uma defesa e ataque contraditórios, às vezes em um mesmo parágrafo, do engenho e da senzala. Em resumo: Casa-grande & senzala, o seu maior livro, em 1933 foi revolucionário. Mas o tempo e a democracia deram luz e ultrapassaram a escravidão ali narrada. Gilberto Freyre é o homem que glorifica a colonização portuguesa. E nesse caso, tão brasileiro, pela dissolução da crueza com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. Nesse caso particular, é preciso vencer Gilberto Freyre. Vencê-lo no sentido também de uma reação à sua influência avassaladora e paralisante. Mas antes, ele deve ser muito estudado. Contraditoriamente, antes de vencê-lo, Gilberto Freyre há que ser assimilado. Para que seja superado em uma etapa necessária rumo ao lugar onde a verdade da nossa história seja soberana. E se faça um acerto de contas com o passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande, que ainda resiste. Vencê-lo como uma forma de superação necessária. E muito estudá-lo, voltando a suas luzes de escritor, de gênio. Superar é uma forma de assimilar a tradição. (Trecho do verbete Gilberto Freyre no Dicionário Amoroso do Recife)

Sobre a resistência no jornalismo

por Elaine Tavares Enquanto alguns caçam pokemons e outros se entregam à confortante mediocridade, pessoas há que se inquietam, pensam e resistem. Foi o que vimos nessa quinta-feira, no lançamento do Coletivo de Jornalistas Sindicais Vito Gianotti. Confrontados com as dificuldades de praticar o jornalismo no cotidiano sindical, com as sempre apocalípticas ideias de fim do jornalismo, com a completa ausência de discussão e debate sobre o tema na categoria, um grupo de jornalistas que atua nas entidades sindicais começou a se organizar por conta própria. Já se vão quatro anos da criação de um Fórum de Comunicação da Classe Trabalhadora, quando então foi dado o pontapé inicial no debate das angústias dos jornalistas que trabalham em sindicatos.  O auge vivido pelo movimento sindical nos anos 80 e 90 do século passado já tinham se extinguido, e o que restava era a domesticação das entidades, dirigentes acomodados ou cooptados. Como então fazer jornalismo nas entidades que viviam esse marasmo? Como enfrentar a demanda gerada pelas novas tecnologias? Como operar nessa zona nebulosa entre a propaganda, a agitação e o jornalismo? Como alargar a margem de manobra entre o que quer a direção conservadora e a prática de um jornalismo libertador? Tudo isso foi sendo expresso e debatido nos seminários que se seguiram ao lançamento do Fórum. Jornalistas de todo o Brasil vieram para Florianópolis por três anos seguidos para discutir essas temáticas e conhecer experiências brasileiras e latino-americanas de resistência e avanços comunicacionais. Esse acúmulo de reflexão foi gerando seus frutos. Solitários nas salas de imprensa dos sindicatos, os e as jornalistas fortaleceram a ideia de que as angústias do seu fazer só poderiam ser dissipadas se atuassem em comunhão. No sindicato da categoria não encontraram essa possibilidade, então, passaram a articular a criação do coletivo de maneira autônoma. Os encontros anuais serviram como gás a inflar o balão dos desejos de estudar e enfrentar os desafios. Então, nasceu o coletivo. Na noite fresca do inverno do sul, entre barulhos de um bar, sob a inspiração de um velho companheiro – Vito – um grupo de jornalistas assumiu o compromisso de manter acesa a chama do jornalismo. O jornalismo como forma de conhecimento, o jornalismo libertador, o jornalismo que caminha do singular para o universal, desalienando a classe trabalhadora. Como bem já apontou Adelmo Genro Filho, tanto a direita como a esquerda podem fazer um jornalismo manipulador. Mas, há formas de se praticar o jornalismo de maneira que o leitor/ouvinte/espectador possa ele mesmo formar opinião e compreender a totalidade do fenômeno. Isso se faz escrevendo de tal forma que um fato singular (o plano de carreira, por exemplo) ultrapasse a particularidade (a categoria específica) e alcance a universalidade (a classe trabalhadora como um todo). É certo que fazer jornalismo assim, expresso como forma de conhecimento, não é coisa fácil. Exige estudo, leituras, comprometimento. Esse é então o desafio. Como furar a barreira da comunicação de propaganda que muitas direções sindicais insistem em manter? O primeiro segredo é entender que o jornalismo por si só não faz a revolução. Quem faz as mudanças é o povo em luta. Assim, sem uma direção revolucionária, não há como narrar a revolução. Simón Bolívar, quando iniciou sua saga libertadora na América Latina, a primeira coisa que fez foi comprar uma prensa que levava amarrada no lombo do seu cavalo. Ele travava as batalhas e escrevia sobre elas, fomentando – também com a palavra – a rebeldia contra os espanhóis. Ou seja: primeiro as lutas, depois a narrativa.  Logo, se o jornalista está mergulhado numa realidade conservadora, o que ele pode fazer é ir, devagarinho, alargando a margem de manobra entre a produção de uma comunicação “chapa-branca” – como querem os dirigentes – e um jornalismo como forma de conhecimento, como tem de ser. É um trabalho que exige paciência histórica. Em segundo lugar é necessário compreender que o sindicato também é um espaço onde se deve praticar a agitação e a propaganda, como muito bem já ensinou Lênin. Esse é um trabalho fundamental nos momentos cruciais da luta dos trabalhadores. Então, há aí uma especificidade da comunicação dentro dos sindicatos que precisa ser assimilada, sem que se tenha de abrir mão do jornalismo. As coisas podem ser feitas simultaneamente. Não há razão, então, para angústias.  Só há espaço para um trabalho bem feito na construção da consciência de classe. O jornalista que trabalha em sindicato está caminhando no fio da navalha. Precisa atender à direção, mas também precisa atender a base. Uma base que é heterogênea, plural e que está acostumada com uma comunicação singularizada ao extremo, sem universalidade. Por isso muitas vezes não entende porque o jornalista está escrevendo sobre a guerra na Síria. “O que isso tem a ver com a minha vida? Quero saber é se vai sair a minha ação”. Conseguir criar esse hábito, de compreender as ligações entre a realidade mundial e o cotidiano é o grande desafio do jornalista. Outras tantas angústias e dores cotidianas, como o assédio moral, o medo de perder o emprego e a violência no ambiente de trabalho estão na pauta dos jornalistas sindicais, que agora se reunirão todos os meses em sessões de estudo e debate. Isso amplia suas salas solitárias para um universo e expansão. Agora é seguir em frente, amparados uns nos outros, narrando a vida e permitindo a compreensão profunda do mundo capitalista no qual estamos todos mergulhados. Desvelar as contradições, jogar luz sobre a essência dos fenômenos, gerar conhecimento: esse é o compromisso. Sob a batuta de Marcela Cornelli, Luciano Farias e Silvia Medeiros, o Coletivo se ergue e caminha. Com eles caminha o jornalismo, vivo, vibrante, ousado e radical. Longa vida ao Coletivo de Jornalistas Sindicais Vito Gianotti. O “italianinho” certamente está sorrindo em algum lugar do cosmos. Publicado originalmente no Blog Palavras Insurgentes.

Hoje é dia de reverenciar a Pacha Mama

por Elaine Tavares Hoje por toda a coluna vertebral dos Andes é dia de festa, hora de dar oferendas a grande mãe (pacha), elemento central na filosofia dos povos andinos. Pacha não é apenas a terra, mas significa o universo – não só o físico – ordenado em categorias espaço-temporais. Pacha é o ser, o que é, o existente, a realidade, embora o conceito englobe também o invisível.  Pois, para os povos dos Andes tudo é relacional e faz parte da mesma realidade. Não há separação entre o mundo físico e o mundo transcendente. Na racionalidade ocidental o ente é o ser-em-si-mesmo, há o indivíduo e a autonomia do sujeito. Para o runa (ser humano) quéchua o universo é um sistema de entes inter-relacionados, dependentes um do outro. Não existe o ser-em-si-mesmo, não há seres absolutos, tudo está em correspondência. Isso determina inclusive a organização social das gentes, onde o “nós” ou a ideia de comunidade é indissociável da realidade do entorno. Por isso, a ideia de Pacha Mama é unificadora da concepção de mundo. A terra, como mãe, se relacionando com tudo que vive. Assim, para um povo originário andino, a exploração da natureza aos moldes do capitalismo – que esgota e destrói – é incognoscível. O dia primeiro de agosto é chamado de “dia de pago à terra” e durante todo o percurso das 24 horas, as gentes fazem festas e oferecem comida a essa mãe que tudo provê. É a maneira originária de agradecer pelo alimento e pela vida. “No hay nada sobre la tierra que no sea producto de la tierra.  Nosotros también, Dios nos hizo de tierra y nos dio el soplo de vida, luego al morir ella nos acoge para el eterno descanso. Por eso hay que respetarla y venerarla.” Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino- americanos.  

Manifesto de repúdio à venda de ativos da Petrobras e à privatização do pré-sal

Do Sindipetro-RJ e Federação Nacional dos Petroleiros (FNP), publicado na Agência Carta Maior Manifesto desmonta os argumentos daqueles que são favoráveis ao desmonte da empresa e à abertura do pré-sal ao capital estrangeiro Os petroleiros e centenas de entidades dos movimentos sociais e sindicais que integram a campanha Todo o Petróleo Tem que Ser  Nosso divulgam manifesto que desmente os argumentos de Pedro Parente, atual presidente da Petrobras, e do ministro interino José Serra, ambos favoráveis ao desmonte da empresa e à abertura do pré-sal ao capital estrangeiro, retirando a estatal brasileira da condição de operadora única do pré-sal. CRÔNICA DE UM ESTUPRO ANUNCIADO A nova diretoria da Petrobras, comandada por Pedro Parente, prepara um verdadeiro estupro da empresa, à  vista da sociedade brasileira. Para isso, tem a ousadia de buscar o consentimento pacífico dos próprios petroleiros. As propostas de Parente são um acinte à consciência de todo o brasileiro empenhado no desenvolvimento do país. Curiosamente, enquanto Bendine, seu antecessor, preparava o desmonte da Petrobras sem avisar, Parente tem o desplante de avisar previamente sobre o desmonte, recorrendo a um rosário de falsidades. Ei-las: Parente afirma que a Petrobras está em crise financeira, na linha do que vem pregando há meses seu mentor, o ministro interino José Serra. É falso. A Petrobras tem um patrimônio gigantesco de óleo e gás no pré-sal, sendo que a dívida da empresa, somada aos desvios estimados, representa não mais que 1% desse patrimônio. Parente sustenta que o petróleo do pré-sal é menos do que se dizia, tendo sido furados muitos poços secos. É absolutamente falso. As estimativas são de que há muito mais petróleo no fundo do mar do que se imagina. A produção do pré-sal cresce em ritmo impressionante (8% em maio sobre abril), o que não corresponde à ideia de que as reservas sejam menores do que as anunciadas anteriormente. O custo de extração vem caindo e a produção de óleo e gás bateu novo recordo em junho de 2016, alcançando a marca dos 2,9 bilhões de barris. Em relação ao mês de maio, o volume apresentou um aumento de 2%. Parente e seus diretores dizem que têm como missão “salvar a Petrobras” Falso. A Petrobras está no pico de sua produtividade operacional e não precisa de nenhum salvador da pátria. Parente quer a privatização da BR, dos gasodutos, da indústria de fertilizantes, “em nome do saneamento da Petrobras”. Nada mais falso. O que ele pretende é repassar ao setor privado os setores mais rentáveis do sistema de petróleo, pois o maior lucro está no valor agregado em derivados, petroquímicos, transporte e fertilizantes. Parente sustenta que a construção do Comperj e da Refinaria Abreu e Lima não deve ser retomada, porque não seria rentável para a Petrobrás. Diz que “refinaria não dá lucro”. Completamente falso. O Comperj interessa à Petrobras como investimento rentável na área petroquímica. A Refinaria Abreu e Lima aumentaria a produção de combustíveis da empresa, reduzindo a necessidade de importações. O que Parente pretende, portanto, é enfraquecer a Petrobras, colocando-se na contramão de todas as grandes petrolíferas do mundo que procuram diversificar, buscando fusões e incorporações. As propostas da nova Diretoria da Petrobras são repelidas por petroleiros e por todos os cidadãos que têm o mínimo conhecimento da área do petróleo e compromisso com o interesse nacional. São propostas entreguistas, destinadas a favorecer os interesses estrangeiros. Privatizar a rede de gasodutos construída pela Petrobras, que interliga o país de norte a sul, privatizar a BR, que garante a distribuição de gasolina em todo o território nacional, além de constituir em ameaça à compra do óleo refinado no Brasil, são crimes inomináveis e a sociedade precisa tomar conhecimento disso. Até mesmo num campo tão estratégico para o Brasil, como no dos fertilizantes, sendo o país agrário, as intenções de Parente são aviltantes, pois pretendem colocar o agronegócio totalmente nas mãos dos produtores estrangeiros de fertilizantes. Os petroleiros e todos aqueles comprometidos com o futuro e a soberania nacional repudiam veementemente o desmonte da Petrobrás e a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras. Campanha Todo o Petróleo Tem que Ser Nosso Sindipetro-RJ e Federação Nacional dos Petroleiro (FNP) Publicado originalmente na Agência Carta Maior.

A palavra proibida

por Guilherme Scalzilli Elio Gaspari admitiu na Folha de São Paulo que há um golpe em curso. Mas “golpe”, veja bem, no sentido democrático, mero jogo sujo dos parlamentares malvados. Eis outro típico reboleio semântico de quem se envergonha de ter apoiado o impeachment. Doravante choverão análises parecidas, tardias e eufemísticas, em busca de um lugar confortável na posteridade. Foi assim com as reações às ilegalidades de Sérgio Moro e ao banditismo do governo interino. Será assim com a pizza da Lava Jato e a destruição política de Lula. Debaixo da retórica boazinha, porém, esses remendos escrupulosos preservam as suas falácias originais, como caroços opinativos inquebráveis que não podemos refutar. Moro é imparcial. Dilma mereceu. O impeachment segue a Constituição. Percebemos o cinismo dos apologistas daquilo-que-seria-golpe-se-golpe-fosse quando eles qualificam o fenômeno: é do “conluio de bandidos” para baixo. Ou seja, tem cheiro de golpe, cara de golpe, discurso de golpe, mas… golpe? Não, não é. Afinal, o que falta ao impeachment para merecer a alcunha maldita? Ruptura institucional? Violação das regras? Mas isso aconteceu em 1964? O STF não acatou a deposição de João Goulart e a eleição indireta de Castelo Branco? Não foi tudo dentro da tal “constitucionalidade”? A questão central aqui é que não se trata de diletantes desinformados das redes sociais. Gaspari, por exemplo, estudou profundamente a ditadura militar. E muitas das pessoas que repetem seus argumentos possuem sólida formação acadêmica, tanto que recorrem a teorias muito bem elaboradas para rechaçar o conluio do PT com as elites. Então vemos especialistas ignorando fatos históricos para endossar suas posições partidárias. E progressistas foucaultianos aplaudindo togados e meganhas como heróis nacionais. E a cúpula do Judiciário repetindo os notórios erros dos antepassados. Por isso acho meio pueril festejar o recuo estratégico de Gaspari e de outros analistas. A natureza do impeachment não depende dos seus juízos clarividentes e seletivos. O problema de apoiar um golpe é deles e do próprio STF. Usem a palavra que preferirem. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli.

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