O jornalismo diante de um “divórcio” complicado
A relação do jornalismo com as elites políticas e empresariais entrou num período de turbulência em quase todo mundo, sinalizando a possibilidade de ruptura de um modelo vigente há mais de um século na imprensa. A turbulência surgiu a partir da divisão entre liberais democráticos e conservadores autoritários nas várias esferas do poder bem como no mundo corporativo. O caso brasileiro permite visualizar com mais clareza esta ruptura na classe dirigente à qual a imprensa e parte considerável do jornalismo sempre estiveram vinculados. Temos o segmento conservador autoritário aglutinado em torno do presidente Bolsonaro e o setor liberal democrático que reúne lideranças de partidos tradicionais e dirigentes de grandes corporações privadas. No empresariado, há os grupos como o Itaú, liberal na política, mas ortodoxo nos negócios, enquanto o grupo Havan segue o populismo corporativo, no mais estrito senso. O surto de desinformação e notícias falsas que tira o sono dos jornalistas e provoca insegurança em toda a sociedade tem uma de suas origens na divisão surgida dentro das elites. A manipulação de informações não é um fenômeno novo, mas adquiriu uma relevância crítica quando o segmento conservador autoritário do establishment passou a enviesar, descontextualizar e falsificar notícias para favorecer seus interesses. Se antes a desinformação era minimizada, o racha nas elites escancarou divergências na luta pelo poder e colocou o jornalismo numa situação muito difícil porque compromete a confiabilidade nas notícias publicadas pela imprensa. Divergências na elite sempre existiram, mas o que se nota agora é que o pacto de cavalheiros, vigente há décadas, começa a ser rompido a partir dos Estados Unidos, com a extrema direita de Donald Trump e grupos também extremistas na Alemanha, Espanha, Itália, França, Hungria, Polonia e Ucrânia, só para citar os exemplos mais em evidência. Na esmagadora maioria destes países, a divisão no establishment acontece entre um setor tradicional, de tendência liberal, intimamente conectado aos grandes interesses empresariais, e uma fração ultraconservadora reunindo políticos que se aproveitam do descontentamento de setores da população e tem o apoio de empresários preocupados em ascender financeira e socialmente. Historicamente, a maioria da imprensa mundial manteve uma relação preferencial com as elites políticas e empresariais porque ambas forneciam as condições institucionais e financeiras que chegaram a gerar lucros anuais de até 30% aos donos de jornais, editoras, emissoras de rádio e TV. Esta relação criou uma dependência dos poderosos que acabou condicionando um discurso, rotinas, regras e valores bastante diferentes daqueles que Bill Kovac e Tom Rosenstiel consagraram em seu livro Elementos do Jornalismo: “O objetivo primário do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações que eles precisam para serem livres e autogovernados” (*). A sobrevivência da imprensa A relação preferencial com as elites tornou-se inevitável pela necessidade de investimentos vultuosos para criar um jornal, uma revista ou telejornal. Além disso, a publicidade paga que viabilizava a sustentabilidade da imprensa era baseada em anúncios voltados para consumidores das classes média e alta, o que acabou levando o jornalismo a se preocupar, majoritariamente, com o segmento social com maior poder aquisitivo. Quando surgiram a internet e as redes sociais, o jornalismo foi apanhado no contrapé, porque as pessoas se tornaram protagonistas na produção de notícias e a imprensa começou a perder relevância para a grande massa da população. As redes sociais, em particular, abriram espaço para iniciativas populistas no terreno informativo, que se aproveitaram da ausência de regras para enveredar pelo terreno da desinformação e do sensacionalismo. Isto acabou contribuindo para semear a insegurança informativa no público dos veículos jornalísticos tradicionais. O dilema da imprensa se tornou ainda mais crucial quando a divisão na elite agravou a vulnerabilidade financeira e institucional dos conglomerados midiáticos, já que a maioria das empresas tradicionais migrou sua publicidade para a internet. A queda no faturamento provocou demissões em massa de repórteres, editores, técnicos e pessoal administrativo, colocando o jornalismo diante do desafio de romper, ou pelo menos, revisar a aliança preferencial com as elites governantes, aqui no Brasil, e em boa parte do mundo. Esta é uma escolha que muitos rotularam de ideológica ao tentar situá-la dentro do contexto da polarização entre o setor liberal democrático e o conservador autoritário. Mas, por sua natureza, é uma decisão essencialmente profissional, pois a internet deu ao jornalismo a possibilidade de produzir e disseminar notícias sem a dependência obrigatória de grandes empresas. Além disso, a profissão de jornalista tornou-se essencial para a orientação do público num contexto informativo marcado pela desinformação e pelas notícias falsas. Nestas condições, o “divórcio” entre jornalismo e elites poderia marcar uma nova inserção da profissão na sociedade da era digital. A manutenção do modelo atual de aliança estratégica com o establishment agrava a tendência à irrelevância do jornalismo no conjunto da sociedade, porque o afasta gradativamente dos segmentos da população que estão ganhando protagonismo político, econômico e social, através da ocupação gradual de mais espaços no ambiente digital. (*) https://www.amazon.com.br/Elementos-Jornalismo-Kovach-Bill-Rosenstiel/dp/8575090739 pag 12 O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira O que é ser jornalista hoje? O apoio da grande mídia ao golpe de 64 Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade