Zona Curva

Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

O jornalismo diante de um “divórcio” complicado

A relação do jornalismo com as elites políticas e empresariais entrou num período de turbulência em quase todo mundo, sinalizando a possibilidade de ruptura de um modelo vigente há mais de um século na imprensa. A turbulência surgiu a partir da divisão entre liberais democráticos e conservadores autoritários nas várias esferas do poder bem como no mundo corporativo. O caso brasileiro permite visualizar com mais clareza esta ruptura na classe dirigente à qual a imprensa e parte considerável do jornalismo sempre estiveram vinculados. Temos o segmento conservador autoritário aglutinado em torno do presidente Bolsonaro e o setor liberal democrático que reúne lideranças de partidos tradicionais e dirigentes de grandes corporações privadas. No empresariado, há os grupos como o Itaú, liberal na política, mas ortodoxo nos negócios, enquanto o grupo Havan segue o populismo corporativo, no mais estrito senso. O surto de desinformação e notícias falsas que tira o sono dos jornalistas e provoca insegurança em toda a sociedade tem uma de suas origens na divisão surgida dentro das elites. A manipulação de informações não é um fenômeno novo, mas adquiriu uma relevância crítica quando o segmento conservador autoritário do establishment passou a enviesar, descontextualizar e falsificar notícias para favorecer seus interesses. Se antes a desinformação era minimizada, o racha nas elites escancarou divergências na luta pelo poder e colocou o jornalismo numa situação muito difícil porque compromete a confiabilidade nas notícias publicadas pela imprensa. Divergências na elite sempre existiram, mas o que se nota agora é que o pacto de cavalheiros, vigente há décadas, começa a ser rompido a partir dos Estados Unidos, com a extrema direita de Donald Trump e grupos também extremistas na Alemanha, Espanha, Itália, França, Hungria, Polonia e Ucrânia, só para citar os exemplos mais em evidência. Na esmagadora maioria destes países, a divisão no establishment acontece entre um setor tradicional, de tendência liberal, intimamente conectado aos grandes interesses empresariais, e uma fração ultraconservadora reunindo políticos que se aproveitam do descontentamento de setores da população e tem o apoio de empresários preocupados em ascender financeira e socialmente. Historicamente, a maioria da imprensa mundial manteve uma relação preferencial com as elites políticas e empresariais porque ambas forneciam as condições institucionais e financeiras que chegaram a gerar lucros anuais de até 30% aos donos de jornais, editoras, emissoras de rádio e TV. Esta relação criou uma dependência dos poderosos que acabou condicionando um discurso, rotinas, regras e valores bastante diferentes daqueles que Bill Kovac e Tom Rosenstiel consagraram em seu livro Elementos do Jornalismo: “O objetivo primário do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações que eles precisam para serem livres e autogovernados” (*). A sobrevivência da imprensa A relação preferencial com as elites tornou-se inevitável pela necessidade de investimentos vultuosos para criar um jornal, uma revista ou telejornal. Além disso, a publicidade paga que viabilizava a sustentabilidade da imprensa era baseada em anúncios voltados para consumidores das classes média e alta, o que acabou levando o jornalismo a se preocupar, majoritariamente, com o segmento social com maior poder aquisitivo. Quando surgiram a internet e as redes sociais, o jornalismo foi apanhado no contrapé, porque as pessoas se tornaram protagonistas na produção de notícias e a imprensa começou a perder relevância para a grande massa da população. As redes sociais, em particular, abriram espaço para iniciativas populistas no terreno informativo, que se aproveitaram da ausência de regras para enveredar pelo terreno da desinformação e do sensacionalismo. Isto acabou contribuindo para semear a insegurança informativa no público dos veículos jornalísticos tradicionais. O dilema da imprensa se tornou ainda mais crucial quando a divisão na elite agravou a vulnerabilidade financeira e institucional dos conglomerados midiáticos, já que a maioria das empresas tradicionais migrou sua publicidade para a internet. A queda no faturamento provocou demissões em massa de repórteres, editores, técnicos e pessoal administrativo, colocando o jornalismo diante do desafio de romper, ou pelo menos, revisar a aliança preferencial com as elites governantes, aqui no Brasil, e em boa parte do mundo. Esta é uma escolha que muitos rotularam de ideológica ao tentar situá-la dentro do contexto da polarização entre o setor liberal democrático e o conservador autoritário. Mas, por sua natureza, é uma decisão essencialmente profissional, pois a internet deu ao jornalismo a possibilidade de produzir e disseminar notícias sem a dependência obrigatória de grandes empresas. Além disso, a profissão de jornalista tornou-se essencial para a orientação do público num contexto informativo marcado pela desinformação e pelas notícias falsas. Nestas condições, o “divórcio” entre jornalismo e elites poderia marcar uma nova inserção da profissão na sociedade da era digital. A manutenção do modelo atual de aliança estratégica com o establishment agrava a tendência à irrelevância do jornalismo no conjunto da sociedade, porque o afasta gradativamente dos segmentos da população que estão ganhando protagonismo político, econômico e social, através da ocupação gradual de mais espaços no ambiente digital. (*) https://www.amazon.com.br/Elementos-Jornalismo-Kovach-Bill-Rosenstiel/dp/8575090739 pag 12 O futuro do jornalismo depende da sua sustentabilidade financeira O que é ser jornalista hoje? O apoio da grande mídia ao golpe de 64 Ainda é possível acreditar na isenção do jornalismo? O jornalismo atual usa rótulos velhos para uma nova realidade

Mundo à deriva

Até meados do século XX, a mobilidade humana era muito restrita. As pessoas mantinham vínculos comunitários mais estreitos. Relacionavam-se, por toda a vida, com familiares, amigos, frequentadores da mesma igreja ou do mesmo clube. Se viagens ocorriam, eram periódicas, e quase nunca para lugares muito distantes dos limites da cidade. Avós, pais e irmãos moravam, quase todos, próximos uns dos outros. Isso reforçava os elos comunitários, a auto identidade, o senso de agregação. Os laços de sangue falavam mais alto que o padrão de vida ou o nível de cultura. Tudo isso ruiu com a mobilidade geográfica facilitada pela pós-modernidade. O barco que conduzia o clã familiar congregado foi de encontro aos penhascos da sociedade consumista e se estilhaçou. Todos ficaram à deriva. Hoje, nessa enorme gaiola de cimento e ferro, chamada prédio de apartamentos, o vizinho de porta nada sabe a respeito de quem mora ao lado. Estão todos condenados à perda de identidade, ao anonimato, à estranheza. Enquanto na “aldeia” os olhares eram de familiaridade e acolhimento, agora são de suspeita e medo. Como diria Sartre, o outro é, potencialmente, o inferno. Como preservar a autoestima se a pessoa não se sente estimada? Soma-se a isso um novo fator que agrava a ansiedade, a solidão, as atitudes narcísicas: a aldeia digital. Assim como as pessoas buscam grupos com os quais se identificam (clube, igreja, associação, núcleo cultural etc.), elas também se inserem em vários nichos internáuticos no esforço de se afirmarem socialmente. O ser humano não pode prescindir do olhar benfazejo do outro. Mas o espaço cibernético é substancialmente narcísico. A pessoa posta algo – mensagem, foto, meme etc. – como quem joga um peixe no lago cercado de pescadores. Ansiosa, quer saber quem fisgou a sua postagem, se interagiu e de que maneira. E mergulha no círculo vicioso da digitação constante. Se no espaço urbano, onde os laços familiares estão geograficamente distanciados, prevalece a desconfiança, no virtual isso se torna mais acentuado. Como no paradoxo do gato de Schrodinger, o outro com quem você se relaciona pode ser e pode não ser ele. E, como é natural, cada um busca ser reconhecido dentro daquela bolha. Quando alguém posta é também em busca de si mesmo. O smartphone funciona como um espelho, no qual bilhões esperam ver a sua imagem melhorada. E o retorno, muitas vezes, é a desconstrução de quem postou. Ninguém ingressa na arena de boxe para presenciar a luta, e sim para esmurrar o outro até que ele seja aniquilado. E isso é mais fácil quando o outro é um estranho. O outro, nessa arena virtual, é sempre um concorrente, e não um parceiro. Daí a usina do ódio, das fake news, de tudo que faça um sobressair sobre os outros. A emoção prevalece sobre a razão. E a imposição sobre o diálogo. Não se procura ter parceiros e, sim, seguidores. Milhões de pequenos ditadores emitem a sua verdade sobre o mundo, ainda que seja uma clamorosa mentira, e assim fuzilam virtualmente todos que se lhe opõem. Um exemplo dessa tendência de isolamento e agressividade é a crescente venda de veículos utilitários (SUVs), próprios para zonas rurais, nas classes altas de áreas urbanas. Além de não serem adequados para trafegarem na cidade, criam nos passageiros uma sensação de proteção e poder. Muitos adicionam à marca modelos com expressões típicas de conflito e belicismo: Defender (defensor), Raider (agressor), Crossfire (fogo cruzado), Tracker (perseguidor), Renegade (renegado), Kicks (chutes). Convém escutar os sábios: “É chegado o momento, não temos mais o que esperar. Ouçamos o humano que habita em cada um de nós e clama pela nossa humanidade, pela nossa solidariedade, que teima em nos falar e nos fazer ver o outro que dá sentido e é a razão do nosso existir, sem o qual não somos e jamais seremos humanos na expressão da palavra” (Rubens Alves: “A Escutatória”). Publicado originalmente no Correio da Cidadania. No Brasil das maravilhas Será novo este ano?

Monark, o radical da praça de alimentação

Monark, o youtuber, é a efígie de uma geração idiotizada, escrava das métricas, e vazia. Uma geração que tem opinião formada a partir de mesa de bar e corrente de WhatsApp. Descrentes de qualquer fonte científica por que tem um brother do amigo dele do outro condomínio ou por que a mãe trabalha na área, que garantiu “não ser assim não”. Extremamente carentes, fúteis e ansiosos e em busca de algum reconhecimento mesmo não tendo nenhum serviço prestado. Monark não merece nem que eu escreva um texto inteiro. E nós, que viemos antes dele, mais rodados, compreendemos que se simplificarmos o absurdo como apenas “liberdade de expressão”, perdemos o filé mignon do debate. E o cerne é: qual ‘expressão’ tem visibilidade?  Principalmente quando são os algoritmos que ditam as regras do jogo.  O que pudemos ver nesse episódio é o capital imprimindo práticas antigas de financiar estéticas ignóbeis, figuras caricatas, personalidades exóticas que pouco ou nada agregam na compreensão da sociedade com o objetivo nítido de afastar a sociedade do verdadeiro debate, daquilo do que realmente importa.  Por isso que é mais fácil o Flow (podcast super acessado do comunicador) ou outro podcast qualquer conseguir patrocínio de inúmeras marcas do que Rita Von Hunty, a persona drag queen criada pelo professor Guilherme Terreri Lima Pereira no canal Tempero Drag, que aborda de forma pedagógica conceitos sociológicos para usarmos na vida prática, ajudando a compreender inclusive fenômenos como esse em que Monark defende a criação de um partido nazista no Brasil.. Nesses termos, a rede social virou reduto de tudólogos, de egos inflados que não contribuem de forma concreta para melhorar a sociedade, e que são a isca perfeita para apreender a mente e o tempo, daqueles que não se percebem nesse tempo-espaço, sendo induzidos a uma mecanização, consumindo um “conteúdo” pasteurizado, e reproduzindo bobagens. E isso monetiza. Rende lucro.  E o que se paga a Monark é pouco ou nada perto do prejuízo que todos nós temos com esse tipo de “corta-luz”. Uma mão entretém a nossa visão e a outra opera, se aproveitando da nossa atenção dispersa. A sociedade pós-industrial está dependente da rede social, inclusive, já há patologia para isso, e o que antes era visto como um avanço na vida do homem moderno, tem se mostrado uma péssima muleta. Mas pior que isso é o uso político e ideológico que está no background desse modus operandi, formando um exército de fantoches que não tem qualquer pensamento crítico da realidade em que vivem.  Monark que presta é mesmo a bicicleta. A terceira etapa do nazi-fascismo no Brasil não poderá ser derrotada somente nas urnas A conciliação perpetuará o fascismo Fascistas, no pasarán

A ditadura teocrático-miliciana: o sonho do evangelismo monetário no Brasil

A história do século XVI, por ter sido um dos momentos mais importantes da formação da civilização ocidental, nos propicia uma série de ensinamentos para os tempos pós-modernos que vivemos. Talvez o mais importante exemplo seja aquele da primeira ditadura teocrática-miliciana, que por vinte e cinco anos sufocou e destruiu a cidade mais democrática de toda a Europa: Genebra. Até mesmo o surto de peste que a assolou durante o império de Calvino nos traz ao século XXI.  A Reforma Protestante teve início, no século XVI, como um movimento liberal psíquico e religioso, uma proposta para colocar livremente nas mãos dos homens o Evangelho. De tal modo que a convicção de cada indivíduo deveria formar para si seu próprio cristianismo, em vez de o fazerem em Roma o Papa e seus Concílios. Esse movimento reformista cristão foi liderado por Martinho Lutero, com a publicação de suas teses em 1517. Lutero foi apoiado por vários religiosos e governantes europeus provocando uma revolução político-religiosa que, iniciada na Alemanha, estendeu-se pela Suíça, França, Países Baixos, Inglaterra, Escandinávia e, mesmo, partes do leste europeu. João Calvino era inicialmente um dos seguidores de Lutero; dele se distancia ao estabelecer o Estado Evangélico. Ao contrário de Lutero, ele retirará dos homens aquela liberdade espiritual de cristãos libertados da Igreja Católica, bem como as demais liberdades cívicas. Ao criar as bases do “puritanismo evangelista”, Calvino estabeleceu uma ditadura teocrática. E durante um quarto de século, Calvino, em termos de assassinatos, perseguições e torturas, conseguiu na pequena cidade, que dominava, ir além da própria Inquisição Católica! Foi em maio de 1536 que os cidadãos de Genebra reunidos em praça pública referendam democraticamente, e por imensa maioria, que, a partir de então, viveriam exclusivamente guiados pelos Evangelhos e pela palavra de Deus. O êxito radical da Reforma em Genebra foi possível graças a um homem fanaticamente radical, terrorista, mentiroso como todo grande manipulador, de nome Farel. O humanista Erasmo de Roterdã a ele se refere como “a criatura mais arrogante e desavergonhada que encontrara na vida”. Nos dias do Brasil do século XXI, a máscara de Farel pode ser vestida por diversos auto-intitulados apóstolos de Cristo como o arquimilionário Edir Macedo, o fanático Malafaia, o corrupto encantador de feijões anti-Covid, pastor Santiago. São todos da mesma estirpe da intolerância e da monetarização religiosa e, tal qual o Presbítero Farel, exercem um enorme poder de sugestão e manipulação de massas. De voz tonitruante e com o furor descomedido de uma natureza violenta, arrebanha dentre os amargurados e desagregados da vida um bando que toma de assalto às igrejas católicas, impedem a fala dos padres aos quais denominam de auxiliares do Anticristo. Ele se considerava um Messias redivivo, tal e qual o Presidente “Mito” brasileiro. E o bando de milicianos de Farel cresce com o roubo das caixas de misericórdia, passa a invadir os mosteiros, espancar os padres, destruir conventos e a promoverem em praça públicas a queima de imagens e de centenas de livros que não fossem a Bíblia! Poucos anos haviam bastado não só para reprimir como para exterminar em Genebra, tanto a democracia quanto a velha crença católica. Os católicos atacados, por medo, se recolhem a suas casas sem oferecer resistência. O Conselho Municipal se acovarda perante as turbas ensandecidas. Quando o bispo foge da cidade, o Conselho, que era civil, convoca o referendo público. E Farel vê suas teses, de que o Estado deva ser dirigido pelos Evangelhos e que estará “Deus acima de todos”, aprovadas, naquele mês de maio de 1536! Mas Farel, o autointitulado arauto do Messias, não possui espírito criativo, era apenas um fanático líder de massas, conhece de cor capítulos inteiros da Bíblia, mas mal sabe escrever e fica perplexo ante a própria vitória. E ele busca ajuda desesperadamente. Coincidentemente, está de passagem pela Basileia o jovem de vinte e seis anos, Jehan Chovin, sem um vintém de seu, fugido da França católica. Calvino como foi rebatizado, fora primeiro sacerdote e depois jurista, envolvido com os questionamentos reformadores que tinham Lutero como principal inspirador. Seu ideal era aproximar-se do poder político pela via do direito. Um ano antes, percebendo que a Reforma se fragmentava em diversas seitas, escrevera seu “Institutio Religionis Christianae”, um primeiro plano da doutrina evangélica e que se tornaria a obra canônica do Protestantismo. Por sua lógica inflexível e firmeza construtiva, a “Bíblia” de Calvino será base de todo o dogmatismo evangélico. Farel o procura e, já nas primeiras conversas, submete-se totalmente a sua autoridade. Será seu servo espiritual. Nos trinta anos que se seguirão, jamais Farel questionará qualquer ordem de Calvino. A partir deste momento, Calvino, o ex-sacerdote, ex-magistrado, adentrará na política e desde logo declara que está pronto a criar a nova organização social de Genebra. E, em 5 de setembro de 1536, o Conselho de Genebra, por proposta de Farel, fará de Calvino o “Leitor da Santa Escritura”. Claro está que nenhum dos membros do Conselho havia parado para ler o “Institutio Religionis Christianae”. Eles acreditavam estar nomeando “o gaulês” para um mero cargo de assessor religioso, num emprego remunerado para o “morto de fome”. Se qualquer deles houvesse lido o “Institutio” veria que o poder do Conselho em breve estaria acabado. Aliás, deseja Bolsonaro alguma outra coisa mais que destruição de outro conselho, o nosso STF? “Os Predicadores da Igreja, visto que são incumbidos de ministrar e anunciar a palavra divina, têm de empreender tudo e obrigar todos deste mundo a se curvarem diante da majestade de Deus e de servi-lo. Os Predicadores têm de governar a todos, desde o maior ao menor, organizar a lei de Deus, destruir o reino de Satanás, proteger as ovelhas, exterminar os lobos, acusar e aniquilar os recalcitrantes. Podem unir e desunir, arremessar o raio e o trovão, de acordo com a palavra de Deus.” Completava Calvino em praça pública: “Genebra acima de tudo, Deus acima de todos! ” Não nos parece familiar??? E Calvino, com sua energia inflexível e inesgotável, estava desde já decidido a dominar a Cidade

Será novo este ano?

Esse novo ano ainda tem cara de velho. Teremos de aguentar um genocida negacionista no poder até 31 de dezembro. Não vai ser fácil! E tudo isso agravado pela Covid-19, que muitos pensam ser possível erradicar, com medidas paliativas e a vacinação de apenas uma parcela da população mundial, quando tudo indica que o vírus, que não faz distinção de classe ou etnia, não deixará de nos contaminar enquanto houver quem não tenha sido vacinado. Ano de comemorar o bicentenário da independência do Brasil. Escrevi comemorar, e não celebrar ou festejar. Comemorar significa avivar a memória, resgatar o passado e livrá-lo das peias que nele imprimiram o selo do equívoco. Que independência é essa se ainda somos colonizados pelos EUA e os países da União Europeia? Se a nossa economia depende das importações da China? Como celebrar a independência se as nossas autoridades e os próceres do mercado vivem clamando aos céus que venham investimentos estrangeiros? Num país em que políticos não se envergonham de defender a privatização do patrimônio público, como falar de independência? Somos, sim, dependentes do capital estrangeiro, da tutela estadunidense, da tecnologia estrangeira, da mentalidade subserviente com que miramos as nações prósperas. E pensar que, ao final da Segunda Grande Guerra, a China e o Japão eram mais subdesenvolvidos que o Brasil! Tínhamos tudo para ser uma nação altamente desenvolvida, sem bolsões de pobreza. Temos um imenso oceano e uma bacia hidrográfica invejável. Figuramos entre os cinco maiores produtores de alimentos do mundo, e apenas de frutas contamos com cinco mil variedades. Como observou Caminha, aqui, “em se plantando, tudo dá”. Possuímos abundantes riquezas minerais e a maior floresta tropical do planeta. O Brasil quase não é afetado por catástrofes naturais. Nada de vulcões, furacões e terremotos de grandes proporções, nada de secas prolongadas e tornados frequentes, nem grandes extensões territoriais cobertas por neve. Mas não temos governo! Mais da metade de nossa população vive na pobreza. Hoje, 19 milhões de brasileiros passam fome e 106 milhões sobrevivem em insegurança alimentar. Chega a 13 milhões o número de desempregados e 40,6% dos trabalhadores atuam na informalidade (Pnad/IBGE). Cresce também a desigualdade social. A renda média dos 10% mais ricos é 29,25 vezes maior que a dos 50% mais pobres (Relatório do Laboratório de Desigualdade Mundial). Os 10% mais ricos detêm em mãos 59% da renda nacional, e os 50% mais pobres ficam com apenas 10%. Hoje, apesar do Auxílio Brasil, a desigualdade aumenta devido à inflação, o aumento do preço dos combustíveis, o desemprego e a desarticulação do ensino público durante a pandemia, por força das restrições sanitárias e da falta de apoio do governo federal aos mais vulneráveis. Aqui, a desigualdade tem cor. Os brasileiros brancos, homens e mulheres, que integram o seleto grupo dos 10% mais ricos somam 8,6 milhões de pessoas (6,9% da população), e abocanham 41,6% da renda nacional. As pessoas negras, que são 53,8% da população, ficam com apenas 35% da renda total (Dados Made). Os adultos brancos são sete vezes mais ricos que os negros (Oxfam Brasil). A grande esperança para o nosso país neste ano de 2022 reside nas eleições de outubro. É hora de tirarmos este governo nefasto, necrófilo, que defende a “pátria armada, Brasil”, e elegermos Lula presidente com um programa de reformas estruturais que favoreçam a maioria da população. Mas isso não basta. É preciso renovar radicalmente o Congresso Nacional, eleger deputados federais e senadores mais comprometidos com as pautas populares e ambientais. E também eleger governadores progressistas. Há muito a fazer para que este ano seja realmente novo! Mundo à deriva Que venha 2022, a última live do ano Aceite ser manipulado: tenha ódio de política

Poema da ativista trans-travesti Patrícia Borges

Ah, sociedade, se você me desse oportunidade Teria uma profissão Seria doutora, advogada, até juíza Mas quando era pra mim estar estudando Eu estava sendo minha própria professora Correndo atrás do pão de cada dia 13 anos de idade Com responsabilidade de pessoa maior de idade. Mais uma vez, essa sociedade normativa Diz quem sou, A todo momento me rotula. Diz que tenho Pau de Mulher, que muitos adoram o leite que sai dele, mas junto sai libertinagem dessa sociedade que me quer viva ou morta nesse sistema de clandestinidade, fazendo manutenção da hipocrisia do mundo clandestino. Direito do capitalismo com meu corpo, sendo puta barata sem direito e cidadania Que só tenho essa opção: ser marginalizada a cada instante. Será que o problema está em quem vive à margem ou com quem faz eu ficar nela, nessa vida, me negando oportunidade de ser alguém. Muitas morrerão, morrem por conta de ser quem se é. Não estão nem aí pro Padrão, que foi criando, deslegitimando e trancafiando nesse país que extermina sem saber que tudo foi negado. Estou vivendo tudo isso porque o machismo está enraizado na sociedade dos bons costumes, que não respeita opinião diferente. Somos todos iguais ou diferentes? Somos diferentes, mas iremos todos pro mesmo lugar Caixão não tem gaveta pra levar o tamanho da língua Cada sonho que vocês destroem. Reparação desses corpos negros que vocês tentam acabar somos fortes, vivemos pra ver vocês pagarem com juros e correção monetária. Vamos vivenciar a libertação dos nossos corpos políticos O transvestiacardo Sobreviver aos maus costumes dessa sociedade transfóbica, sociedade de bosta e racista. BenBar com Erika Hilton   Pelos direitos dos refugiados e migrantes LGBTI   A luta contra a transfobia  

Floresta em pé, o fascismo e o PL 490 no chão

“Não havia mais ninguém lá. Dera tangolomângolo na tribo Tapanhumas e os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá”. (Mario de Andrade no livro Macunaíma) Jaider Esbell vive!  – Na noite do último dia 2 de novembro, soube da morte do artista plástico e ativista indígena Jaider Esbell, 41 anos, encontrado sem vida numa pousada em Juquehy, litoral norte de São Paulo. Fiquei consternado: primeiramente pelo pesar que representa o suicídio indígena e o sentimento de perda de um jovem artista tão brilhante, inovador e especial. Ainda amparado pela tristeza, a primeira imagem que me veio de Jaider foi a beleza da sua presença no extraordinário documentário “Por onde anda Makunaíma?”, do diretor Rodrigo Séllos. O filme se concentra na encarnação modernista do personagem de Mario de Andrade e conduz o espectador ao seu mito de origem, “Makunaíma”, que salta dos escritos e registros do etnólogo alemão Koch-Grünberg, feitos em 1910, durante a convivência com povos indígenas da tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Guiana onde está localizado o Monte Roraima, também chamada “tepuy” na línguagem indígena Macuxi, de grande significado espiritual, sendo referido como a “Casa de Macunaíma”, ao largo dos rios Uraricoera e Waikás. Jaider Esbell era um guerreiro da nação Macuxi, da região hoje demarcada como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre as cabeceiras dos rios Branco e Rupununi. As altas taxas de suicídios entre os povos indígenas –  Em seu Boletim Epidemiológico (set/2020) o Ministério da Saúde publicou os dados referentes ao suicídio da população indígena no Brasil durante os anos de 2015 a 2018. O suicídio, na definição da pasta, é um alarmante problema de saúde pública para a população.  Os povos indígenas possuem maior risco de morte por suicídio, representando uma taxa de 17,5 óbitos a cada 100 mil habitantes. Segundo o relatório 2018 do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foram registrados 782 suicídios nas comunidades indígenas brasileiras nos últimos 16 anos , o que significa uma “variação” de 30 a 73 casos por ano. Informa, ainda, que o quadro de suicídios entre os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul não se alterou em quatro décadas, sugerindo que esse fenômeno não é restrito apenas a essas comunidades, já que em 2016 houve 30 casos de suicídios no Alto Solimões. Walelasoetxeige, Txai Suruí –  A 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), em Glasgow/Escócia, recebeu 40 lideranças indígenas brasileiras, o maior grupo da história do evento, com destaque para o discurso da jovem ativista Txai Surui, coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, denunciando o desmatamento e invasão das terras indígenas pela grilagem oficial de garimpeiros, madeireiros e do agronegócio, o genocídio indígena e o “ecocídio”. As lideranças indígenas apresentaram à COP 26 a “Carta de Tarumã”, uma declaração dos povos da Amazônia frente às mudanças climáticas, explicitando que “não há solução para crise climática sem nós”, destacando quem está diretamente ligada à exploração dos povos e das terras indígenas da Amazônia e que a meta de emissões apresentada pelo governo Bolsonaro é um “compromisso vazio”. O genocídio indígena  – Os assassinatos de indígenas cresceram 61% em 2020, segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), onde as maiores ameaças de ataques a territórios e indígenas recaem sobre as nações Yanomami, Uru-Eu-Wau-Wau e Mundurucu, de Roraima (RR). Há uma verdadeira escalada de conflitos, em razão do aumento das invasões nas terras indígenas, ameaçando gravemente a vida, a integridade física e a saúde dos povos indígenas, além de danos ao meio ambiente. Nas terras indígenas Yanomami e Mundurucu, a situação é ainda mais grave: há risco iminente de massacres de indígenas. Os invasores (madeireiros, mineradores, garimpeiros e o agronegócio) estão ampliando as áreas ocupadas, atacando, assassinando e ameaçando indígenas, contaminando-os com Covid-19 e malária, poluindo seu território com mercúrio e desmatando a Floresta Amazônica. ] A comunidade de Korekorema e o relatório de viagem de um grupo de Ye’kwana de junho de 2020 informam que, nas margens do rio Uraricoera (RO), desde o início de abril, um grupo de 50 garimpeiros havia montado um acampamento, levantado barracões e preparado balsas de raspa terra nas proximidades da comunidade rio acima. O relatório registra, entre outros, a cobrança de pedágio no porto de Arame, a intensa circulação de embarcações e aeronaves, a degradação florestal e poluição das águas e ameaças à segurança para a circulação dos indígenas em sua própria terra. Em 14 de junho de 2020, duas lideranças yanomamis foram assassinadas na comunidade Xaruna, Serra do Parima (Alto Alegre), devido ao conflito com garimpeiros. Em junho de 2020, a agência britânica Reuters em “The threatened tribe”, publicou imagens impressionantes da destruição do garimpo na terra Indígena yanomami. (O link pode ser encontrado em  https://graphics.reuters.com/BRAZIL-INDIGENOUS/MINING/rlgvdllonvo/index.html) . OS YANOMAMIS –  Desmatamento:Segundo o PRODES/INPE (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), 2019 teve a maior taxa de desmatamento nas terras yanomamis nos últimos 13 anos (totalizando 3.463 hectares), acumulando mais de 30 mil hectares em desmatamentos. Em 2020, a terra indígena yanomami ainda registrou 216 hectares desmatados e foi a vigésima primeira mais devastada no país nesse ano. Os dados mensais do sistema DETER (Sistema de Detecção de Desmatamento em tempo Real) revelam que as invasões e desmatamentos continuam após o último período de medição do sistema PRODES, com desmatamento, degradação florestal, mineração e queimadas desde o início da pandemia em 2020. O garimpo – Os garimpos de ouro representam a principal fonte de contaminação ambiental por mercúrio na Amazônia. O metilmercúrio é reconhecido como uma das apresentações mais tóxicas do mercúrio afetando o sistema nervoso central, urinário, cardiovascular e, particularmente, as mulheres em idade reprodutiva, fetos e crianças menores de dois anos. A contaminação por metilmercúrio em gestantes é capaz de atingir o cérebro do feto ainda em formação, causando danos irreversíveis, incluindo perda de audição, déficit cognitivo, retardo no desenvolvimento e malformação congênita em crianças expostas durante o período intrauterino. Na terra Indígena yanomami, a mineração de ouro começou a se estabelecer a partir da década de 1980, ocasionando além de contaminação ambiental, a desestruturação de

Fome per capita do Brasil e Jonathan Swift

Mas a média per capita jamais explicará por que se temos dois frangos para dois homens, portanto, a média de 1 para cada homem, um deles pode comer dois frangos, enquanto o outro apenas saliva Fome Brasil – O estímulo para esta coluna veio da notícia da Folha de São Paulo: “Produção de comida per capita sobe no país, mas fome avança mesmo na fartura”. Parece mais um dos paradoxos sociais que a matemática não explica. Ora, se temos mais comida no país, o natural seria menos fome para o povo. Mas a média per capita jamais explicará por que se temos dois frangos para dois homens, portanto, a média de 1 para cada homem, um deles pode comer dois frangos, enquanto o outro apenas saliva. Assim é no mundo capitalista. Mas os economistas ao modo de Guedes, ou os fascistas à moda Bolsonaro, fazem de conta que de nada sabem. E gargalham. Podem até dizer, “lá vêm esses comunistas com mania de distribuição de riqueza…”. E depois, quem sabe se os necessitados de comida não ganhem uma imunidade de rebanho, isto é, depois de multidões morrerem, os sobreviventes se acostumem ao regime de ossos e lixo. Claro, até onde houver carniça para todos miseráveis. Em segundo lugar, o título acima gera outro paradoxo: para haver divisão de coisas por cabeça, é preciso que haja um número de coisas para a divisão. E como vamos medir o que não se mede, mas apenas se sente como uma atração animal, primária, fundamental? Ninguém pode falar, “no tempo em que eu tinha fome 90 ou fome 100”. Mas bem podemos falar em números para a fome, quando medimos as desgraças associadas a ela. Falemos, portanto, em desnutrição ou mortalidade infantil. Falemos em números de pelagra, de tuberculose, de raquitismo. Ai teremos tristes números para contar. Ainda assim, que estranho, os economistas não falem em “raquitismo per capita”, ou em destruição de pessoas por cabeça. O que, para os economistas de salão, de Posto Shell, faz sentido. Diabo de falar de miséria da gentalha, rá-rá-rá-rá. Então vamos à razão do nome destas linhas. O Swift lá de cima não é a carne enlatada Swift, apesar da vinculação à carne impossível nos dias de hoje. O título no alto se refere ao imortal escritor Jonathan Swift, que tem sofrido, à semelhança de outros grandes autores satíricos, um amaciamento, uma domesticação póstuma como escritor para crianças. Ele é, para a maioria do mundo, o autor de As Viagens de Gulliver, um livro que se tornou cômico, engraçado, fantasioso, sobre os anõezinhos de Lillipute. Ora, esse livro recontado para crianças e adolescentes (e todo inferno do mundo existe para os clássicos “recontados”, infantilizados) é, em si, no original, uma sátira à sociedade inglesa e a todas as sociedades. O livro fala, por exemplo, da cobrança de impostos sobre os vícios e desvarios, mas recomenda que o bom senso e a boa índole não deveriam ser taxados, porque não valeriam o custo da arrecadação. E agora atingimos o cerne de Swift e da fome do povo brasileiro. O gênio do escritor irlandês possui uma das mais ferozes sátiras contra a degradação e miséria do povo em qualquer parte do mundo. Mas como se falasse somente para os pobres da Irlanda, em “Uma Modesta Proposta” ele sugere, com o ar mais sério, o que seria uma bela fórmula para reduzir a pobreza, O caso não é de vômito, é de verdade crua contra o sistema que mata ou fere a dignidade dos pobres. No texto, fala a santa ira de Swift: “É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola.   Foi-me garantido por um muito sábio americano do meu conhecimento, em Londres, que uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente e completo – seja estufada, grelhada, assada, ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num ragu. Uma criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a família a jantar sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada no quarto dia, especialmente no Inverno. Fiz as contas e, em média, um recém-nascido pesará 12 libras e, se aceitavelmente tratado, durante um ano solar aumentará para 28 libras. Concedo que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito adequada aos senhores – e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais, poderão ter direito de preferência sobre os filhos. Também já calculei as despesas para alimentar cada filho dos pedintes (em cuja lista incluo todos os que vivem em barracas, trabalhadores rurais, e quatro-quintos dos lavradores) que será de cerca de dois xelins por ano, trapos incluídos. E creio que não incomodará nenhum cavalheiro pagar dez xelins por uma boa carcaça de criança gorda, a qual, como já disse, dará quatro pratos de carne, excelente e nutritiva, quando tiver apenas um amigo particular ou a sua própria família a jantar consigo. Assim o proprietário rural aprenderá a ser um bom senhor, aumentando a sua popularidade entre os seus rendeiros; a mãe terá uns oito xelins de lucro líquido e estará apta a trabalhar até produzir outra criança. Quanto à nossa cidade de Dublin, podem destinar-se a este propósito as secções mais convenientes, e os talhantes podem ficar descansados que não terão falta de clientela. Embora eu antes recomende que se comprem as crianças vivas, e sejam temperadas ainda quentes da faca, como o fazemos com os porcos. Os procriadores constantes, além do ganho de oito xelins esterlinos por ano pela venda de cada filho, ficarão livres

Paulo Freire, educador do mundo

Nascido no Recife em 19 de setembro de 1921, Paulo Freire superou a contradição de ser recifense e cidadão do mundo inteiro ao mesmo tempo. No domingo, ele completaria 100 anos. Na verdade, outros cem anos vão passar e não passará a lembrança da sua obra em todas as gentes. Paulo Freire superou a contradição de ser recifense e cidadão do mundo inteiro ao mesmo tempo. Muito além de Pernambuco, ele se tornou um homem sem fronteiras por força do trabalho como filósofo e educador revolucionário. Perdoem por favor o tom de discurso à beira do túmulo. Desculpem a exaltação, que até parece exagero. Mas é que Paulo Freire sofre um segundo exílio post-mortem neste governo Bolsonaro. De Patrono da Educação Brasileira ele passou a ser perseguido de novo, proibido mais uma vez, um palavrão da ditadura novamente, apesar de ser o brasileiro mais vezes laureado com títulos de doutor honoris causa na maioria das universidades do mundo. Ou será por isso mesmo, por essa razão que ele sofre, num governo fascista que odeia os educadores e a educação? Vale a pena lembrar uma brevíssima história da sua prisão em 1964, no quartel do exército em Olinda. Ali, um dos oficiais responsáveis pelo quartel de Obuses, sabendo que ele era professor famoso, solicitou a Paulo Freire que alfabetizasse alguns recrutas que não sabiam assinar nem o nome. Com paciência, Paulo explicou ao militar que estava preso exatamente por causa disso. “Eu estou preso porque alfabetizo, viu?”. Na admiração que desperta no exterior, algumas vezes Paulo Freire é destacado até por motivos errados. Quem o lê e estuda, não pode fugir da marca da própria ideologia. Segundo Eeva Anttila, professora da Universidade de Artes de Helsinque, na Finlândia, ” suas ideias têm sido usadas para fins políticos – o que, em meu entendimento, nunca foi seu propósito inicial”. E, no entanto, sabemos que era indissolúvel no trabalho do educador a política de libertação e a pedagogia. Se não, vejamos. Em “Educação como prática da liberdade”, escrito do Chile em 1965: “Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamavam de ‘palavra de pensamento’, as que eram termos e de ‘palavras mortas’, as que não o eram. Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos, no quinto dia de debate, em que apenas se fixavam fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever, disse ele, uma ‘palavra de pensamento’. E redigiu: ‘o povo vai resouver os poblemas do Brasil votando conciente’… Quando um ex-analfabeto de Angicos, discursando diante do Presidente Goulart, que sempre nos apoiou com entusiasmo, e de sua comitiva, declarou que já não era massa, mas povo, disse mais do que uma frase: afirmou-se conscientemente numa opção. Escolheu a participação decisória, que só o povo tem, e renunciou à demissão emocional das massas. Politizou-se” Em Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, o terceiro livro mais citado na área de humanidades em todo o mundo, Paulo Freire aprofunda o pensamento de como vê a educação: “Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‘tratamento’ humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‘promoção’. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção. A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do Homem…. Se, porém, a prática desta educação implica no poder político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução? Esta é, sem duvida, uma indagação da mais alta importância”. Em outros pontos da Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire fala melhor do seu diálogo com o marxismo, na sua prática educativa: “A tão conhecida afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário’ significa precisamente que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ateísmo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas… De uma pedagogia problematizante e não de uma ‘pedagogia’ dos ‘depósitos’, ‘bancária’. Por isto é que o caminho da revolução é o da abertura às massas populares, não o do fechamento a elas. É o da convivência com elas, não o da desconfiança delas. E, quanto mais a revolução exija a sua teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar com as massas, para que possa estar contra o poder opressor”. As citações acima vêm como esclarecimento de que a sua pedagogia também era política, de um educador de esquerda. Mas não de um marxista ortodoxo, ou de um marxista organizado, pode ser dito. Ele possuía diferenças com o sectarismo do partido no Recife dos anos 60. Mas sempre guardava um diálogo fraterno, de futuro camarada, também pode ser dito. Na leitura de suas obras, percebemos uma cultura ampla, filosófica, que se nutre dos clássicos marxistas e dos não-marxistas como Bergson, que vai das fontes de educadores nacionais e estrangeiros. Os conceitos que Paulo Freire descobre são de um pesquisador e pensador. Não sei em que ordem, se primeiro vêm da pesquisa nas ruas, no campo, ou do pensar. É da sua formação o trabalho no meio do povo e a reflexão sobre esse trabalho no gabinete. Ou de modo mais claro, no que ele chama com muita razão de práxis: “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos. Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo ‘blablablá’, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo”. Práxis viva, que não foi um objetivo retórico, mas viva em obra. Ou como ele fala em outra frase do livro Pedagogia do Oprimido, que denuncia o núcleo do seu ser: “só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua

A escravidão brasileira na Holanda e em Pernambuco

Escravidão brasileira – Para a nossa própria história e do Nordeste do açúcar, em especial, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade de escravos assassinados, enquanto a rotina do engenho seguia. Tudo isso é tão Brasil, amigos. Artigo na Folha de São Paulo informa que o Brasil sustentou luxo de escravocratas holandeses, cujos retratos são mostrados em exposição na Holanda. De modo mais específico, aparecem retratos do casal de senhores de escravos no Recife, Marten Soolmans e Oopjen Coppit, pintados por Rembrandt. Mais adiante, continua o texto: “Com a exposição, o museu faz um movimento no sentido de restaurar a verdade histórica. Como diz Tacco Dibbits, diretor-geral do museu, ‘a escravatura não é um conceito abstrato. Durante mais de 250 anos, foi parte integral de nossa história, que tem de ser estudada e aprofundada, se quisermos ter uma imagem mais completa de nosso passado e uma melhor compreensão da sociedade de hoje”.” Isso na Holanda! E o que dizer do Brasil? Por favor, não tirem as crianças da sala, porque elas precisam aprender. Para a nossa própria história e do Nordeste do açúcar, em especial, para o que não se destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade de escravos assassinados, enquanto a rotina do engenho seguia. Tudo isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, em qualquer cidade brasileira, jovens são amarrados em postes, numa recuperação dos velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento de marginais. E como é Brasil, até hoje há tortura de presos nas delegacias de polícia, nos presídios, como se fossem escravizados sob o chicote. É ilustrativa a sobrevivência física e até o elogio, no governo Bolsonaro, a torturadores da ditadura brasileira. Se fosse representada ao nível do real, do histórico, a tortura dos costumes brasileiros daria vômitos pela agonia da dor, ainda que apenas representada. Isso porque a realidade é ainda mais cruel que o imaginado em representações. Os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos, quando se rebelavam, eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros após o chicote, antes da morte, tinham as feridas abertas lambidas por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi. Poupemos os corações mais delicados. Mas, de passagem, menciono que, na escravidão brasileira, negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes na fazenda. Eles não tinham a marca do dono por uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon do filme “12 anos de escravidão”. Mais de uma vez, pude notar um dos sintomas da barbárie nacional, quando vi que os melhores relatos vivos sobre escravidão brasileira vêm de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife. Ou de Maria Graham, a digna escritora que visitou Pernambuco em 1821. Cito as palavras da inglesa: “Os cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi um que arrastava o braço de um negro de sob algumas polegadas de areia, que o senhor havia feito atirar sobre os seus restos. É nesta praia que a medida dos insultos dispensados aos pobres negros atinge o máximo. Quando um negro morre, seus companheiros colocam-no numa tábua, carregam-no para a praia onde, abaixo do nível da maré-cheia, espalham um pouco de areia sobre ele”. Mas na perigosa escrita de Gilberto Freyre o mesmo quadro se conta assim: “Foi numa praia perto de Olinda que Maria Graham, voltando a cavalo da velha cidade para o Recife, viu um cachorro profanando o corpo de um negro mal enterrado pelo dono. Isto, em 1821. Olinda pareceu à inglesa extremamente bela vista do istmo e da praia pela qual, indo do Recife, chegou até ao pé dos montes da primeira capital pernambucana”. Vocês viram: o horror ocupa uma só linha em Gilberto Freyre, perdida na bela vista de Olinda. Quem quiser, confira, essa ocultação do real está em sua “Olinda, Guia Prático, Histórico e Sentimental de uma Cidade”. De Vauthier cito: “Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas contá-las. Que mulher! Que alma!… Hoje o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente. Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em civilização”. No Brasil, até hoje vale o que narrei em um personagem, retirado da minha memória: muitas vezes, a descendência de pessoas negras se dá pela mãe. Isso quer dizer: o pai não passa de um elemento fecundador, essa palavra suave, pouco afeita a modos nada corteses. Melhor à maneira mais crua: o pai não passa de um fodedor. É como uma tradição, emprenhar a negra e sumir. Foder a negra, foder muitas vezes a negra, mas, diabo, parece obra do diabo, o bucho da negra cresce. Mais tarde, filhos assim rejeitam esse passado coletivo. Apesar de se moverem em uma sociedade de classes e de preconceito

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