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Política reportagem

Reportagens sobre a política na América Latina.

‘Não existem porões da Ditadura’

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e a Comissão Nacional da Verdade, durante a audiência pública realizada em setembro do ano passado, apresentaram a estrutura de funcionamento do terrorismo de Estado implantado a partir de 1964, constituído através de ampla rede das Forças Armadas. O estudo foi feito partir de documentos compilados dos órgãos de repressão. “É uma prova de que não existem porões da Ditadura. Esse sistema nacional é o próprio sistema de terrorismo de Estado”, declarou Ivan Seixas, responsável pelo estudo. Havia um conjunto de órgãos denominado Sistema Nacional de Informação (SISNI) com a finalidade de produzir informações para formular “política de segurança” e de “desenvolvimento” do país. Segundo Adriano Diogo, presidente da Comissão “Rubens Paiva”, esses grupos organizados faziam reuniões no gabinete dos presidentes impostos pela Ditadura e a estrutura até hoje não foi desmontada. “Essas cadeias não foram desmontadas. Um exemplo é a [Agência Brasileira de Informação] Abin. Infelizmente a ditadura não acabou nesse setor”, afirmou Diogo. O SISNI era formado pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA); Centro Nacional de Informações da Marinha (Cenimar); Centro de Informações do Exterior (CIEx); Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e seus Destacamentos de Operação e Informações (DOI); Divisões de Segurança e Informação (DSI) dos ministérios civis e suas Assessorias de Segurança e Informação (ASI). A partir do Centro de Informações do Exército (CIE) foi possível mapear os movimentos de oposição política. Segundo Ivan Seixas, o CIE era ligado ao gabinete do Ministério do Exército e era mantenedor dos centros clandestinos de tortura como a Casa da Morte, de Petrópolis, no Rio de Janeiro, a “boate” de Itapevi e a Fazenda 31 de Março, em São Paulo. “O CIEx não existia formalmente, usava a estrutura da Cenimar e do CIE”, explicou Ivan Seixas, coordenador da assessoria da Comissão “Rubens Paiva”. “O golpe foi imposto pra criar um Estado militarizado e construir uma máquina de guerra”, afirmou Rosa Cardoso, membro da CNV. Estrutura planejada Havia uma lógica imposta anterior ao Golpe. O Ato Institucional nº I, a política de tortura, desaparecimento e mortes foram planejados com antecedência, conforme explicou Rosa Cardoso, membro da CNV. Universidades como a USP constituíram seu departamento para fornecimento de informações à repressão. A Comissão apresentou documento originado no gabinete da Reitoria. Haviam criado a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), que reunia informações dos alunos e funcionários de interesse dos órgãos repressores. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada por iniciativa do deputado federal Rubens Paiva apurou e comprovou a atuação de dois institutos criados para preparar o terreno para o Golpe, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisa Econômica e Social (Ipes). Depois do golpe, com a ditadura implantada e o sistema repressivo dos DOI-CODIs agindo impunemente, o Deputado Rubens Paiva foi preso, torturado e está desaparecido até hoje. O funcionamento desses institutos foi fundamental para origem do Serviço Nacional de Informações (SNI). O Ibad foi financiado pelos Estados Unidos e diversas entidades privadas, como o grupo Varig e o Banco Nacional. Os fundadores ostensivos são: Ivan Haalocher; Gilbert Huber Jr.; Glycon de Paiva e Paulo Ayres Filho. O Ipes teve como fundador direto Golbery do Couto e Silva em parceria com os empresários Augusto Trajano de Azevedo Antunes (Grupo Caemi) e de Antônio Gallotti (multinacional Light). A linha de atuação era voltada para produção de material contra o governo democrático e treinamento de agentes para atuarem contra pessoas que se opunham à ditadura. Comunidades complementares Na escala do direcionamento das ações de repressão, também foram estruturadas as ‘comunidades complementares’ de informações, divididas por áreas. Em diversos Estados da Federação, havia os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) e o Serviço Reservado da Polícia Militar (P2). Segundo apurou a Comissão da Verdade, entidades privadas estavam integradas ao sistema repressivo e faziam um trabalho complementar de controle e repressão, a critério do chefe do SNI. Os livros de entradas do DOPS-SP registraram, por exemplo, a presença de Geraldo Rezende de Matos, representante da Federação das Indústrias do estado de São Paulo (Fiesp) e Paulo Sawaia, assessor do Ministério da Fazenda, comandado por Antônio Delfim Netto. As mortes no campo também passam pela responsabilidade das comunidades complementares. O latifúndio estava ligado à ditadura e havia um subgrupo de repressão aos trabalhadores, conforme lembrou Ivan Seixas. Para Rosa Cardoso será importante preencher essas cadeias com os nomes dos responsáveis nos Estados e a nível nacional.

Presos políticos no divã

A luta contra o medo e a superação de traumas psíquicos causados pelas torturas e prisões no período do regime militar foram a tônica do evento Conversas Públicas da Clínica do Testemunho, semana passada, no Instituto Sedes Sapientiae. Parceria do Instituto, que há mais de 35 anos cuida da saúde mental dos paulistanos, com a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, a clínica atenderá todos os anistiados políticos afetados direta ou indiretamente pela violência do Estado. Com o colaboração de outras instituições, o projeto pretende ajudar até 700 pessoas nos próximos dois anos nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife, segundo o blog do Ministério. Dois relatos mostraram como o medo ainda perturba às vítimas do regime de exceção, que governou o país de 1964 a 1985 (inexplicavelmente, a comissão da anistia retroage sobre os traumas dos perseguidos políticos entre 1946 a 1964 também). A ex-prisioneira da ditadura militar e integrante da comissão de anistia Rita Sipahi (integrante da mesa) contou que uma colega militante política escreveu texto teatral sobre as agruras do cárcere já na vigência do regime democrático e teve medo de assinar o texto com medo de nova perseguição dos torturadores. Em outro depoimento, Marta Nehring, integrante da mesa e que teve o pai assassinado no período, disse que durante muito tempo achou que era normal acordar, almoçar e dormir com medo. Um belo dia, Marta percebeu que a vida não precisava ser assim e buscou auxílio psicológico. Ao lado de Maria Oliveira, Marta é diretora do filme 15 filhos (1996), em que filhos de presos políticos narram suas histórias. Veja em:   Outros dois depoimentos também emocionaram o público, o da argentina Maria Cristina Ocariz, professora do Instituto, e de Ivan Seixas, que narrou as agruras que passou nas mãos do regime. Capturado com apenas 16 anos pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Seixas ficou preso por 6 anos. Ele e seu pai eram militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional). Seu pai foi assassinado, acusado de executar Henning Albert Boilensen. Segundo ele, “Boilensen era uma das tetas que mantinha financeiramente o aparelho repressor”. Formada por 90% de mulheres, a plateia que lotou o auditório do Sedes Sapientiae chegou a ocupar a escadaria do local. As demoradas salvas de palmas indicam que os relatos ainda emocionam. Próximo ao estacionamento, ouvi de uma senhora entendida nos meandros de Freud e companhia, “isso tudo é muito triste, até chorei”. Serviço: Para participar, os interessados podem se inscrever até o dia 30 de abril pelo email clinicas.testemunho@mj.gov.br

E se não existissem as aulas de Educação, Moral e Cívica

Nos início dos anos 80, o adolescente classe média que não estava diretamente ligado ao combate ao regime de exceção que os militares nos impuseram por 21 anos, percebia algo errado quando ia assistir ao seu programa favorito e era avisado que o mesmo tinha sido liberado por uma tal de censura federal. Para quem não se lembra: Noutro dia pela manhã, entre as aulas do colegial, o estudante estranhava os livros recheados de bandeiras, símbolos pátrios e palavras de ordem daquelas duas matérias de nome pomposo: Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Ele não sabia que ambas foram impostas por um decreto lei a partir de 1969 em substituição às aulas de Filosofia e Sociologia, consideradas subversivas pelo regime. Ao assistir ao documentário O dia que durou 21 anos, imagino como teria sido diferente o destino brasileiro sem a censura federal e o OSPB. Como viveríamos hoje se os milhares presentes no histórico comício de Jango na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que exigiam mudanças na estrutura do Estado brasileiro, tivessem suas demandas atendidas? E, se, a Reforma Agrária tivesse sido feita no início dos anos 60? Com respostas não tão fáceis, recorro à máxima de um folclórico comentarista de futebol que sempre dizia que no esporte bretão o ‘se’ não entra em campo, na política, também não. Leia mais sobre o Comício de Jango na Central do Brasil O filme de Camilo Tavares, filho do jornalista Flávio Tavares (um dos 15 presos trocados pelo embaixador norte-americano Charles Elbrick em sequestro de 1969), poderia ser adotado nos colégios para elucidar o adolescente de hoje sobre como se deu o golpe militar de 1964. O forte envolvimento do governo Lyndon Johnson no golpe militar foi provocado em grande parte ao medo patológico do perigo vermelho por parte do governo dos Estados Unidos e da possibilidade do surgimento de uma revolução semelhante à cubana (1959) na América do Sul. No filme, John Kennedy, que foi assassinado em 22 de novembro de 1963, poucos meses antes do golpe, discursa no sentido de que tudo seria feito para impedir que os aliados do governo norte-americano se aproximassem do comunismo. Detalhe: Jango nunca foi comunista. Em conversa do embaixador americano Lincoln Gordon, um dos artífices do golpe de 64, e o presidente Kennedy, antecessor de Johnson, Gordon alerta que é melhor dar um basta em Jango já que ele pode ser um novo “ditador populista como Perón”. Os áudios originais das conversas entre a alta cúpula da Casa Branca e, principalmente, Gordon, e os telegramas entre a embaixada ianque e a Casa Branca, presentes no documentário, são testemunhos históricos irrefutáveis da ingerência dos Estados Unidos na política interna brasileira. Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. É preciso deixar claro, porém com discrição, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique claro o motivo. (Lincoln Gordon) Em 20 de março de 1964, Johson autorizara a formação de uma força naval para intervir no Brasil. A decisão foi tomada em reunião na Casa Branca e contou com a presença de Gordon e a cúpula do Departamento de Defesa. Assista ao trailer do filme: O mentiroso discurso pela democracia e liberdade de Kennedy (sensação déjà vu de ter ouvido o mesmo na boca de Bush, pai e filho, Ronald Reagan…) justificou a criação de institutos de pesquisa pelos Estados Unidos como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) para o financiamento das campanhas de deputados federais e estaduais e de até 8 candidatos a governador. O professor Peter Kornbluh explica que essa é a política “feijão com arroz da CIA para desestabilizar governos”. Os vídeos produzidos pelos institutos e exibidos em cinemas e empresas criaram o pânico que levou às senhoras da Tijuca e do Catete a lotar as ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em oração contra Jango e Brizola. A marcha deu coragem ao general Mourão Filho, que reuniu uma pequena tropa e resolveu antecipar o golpe. O cômico depoimento da filha de Mourão conta que seu pai tomou um pito de Castelo Branco pela pressa. Mourão não esmoreceu e foi entregar o golpe a Costa e Silva, que segundo ela, “estava dormindo, de cuecas”. Segundo presidente do regime militar, Costa e Silva deslumbra-se em cena do filme ao ser recebido na Casa Branca. De certa forma, somos um país mais moderno ao menos pelo fato de não convivermos mais com figuras dantescas como Costa e Silva no coração do poder. Políticos lamentáveis como Jair Bolsonaro e Coronel Telhada infelizmente são eleitos, mas são mantidos bem distantes dos centros decisórios de nossa política. Hoje, após mais de uma década dos fatos narrados no documentário de Tavares, a história deve ser contada com detalhes às novas gerações para que estudantes não tenham que aprender EMC, somente o E= mc². (texto atualizado em 31 de março de 2015)   O grito da Passeata dos Cem Mil contra a ditadura militar

Incêndio no Campo Belo

O tempo seco e o descaso da prefeitura provocaram hoje grave incêndio na comunidade ironicamente chamada de Buraco Quente entre a rua Xavier Gouveia e a avenida Roberto Marinho, no Campo Belo, zona sul de São Paulo. O fogo começou a queimar os barracos de madeira por volta de 14h30 e atingiu várias das precárias moradias da região. Moradores arriscavam suas vidas na tentativa de salvar móveis e eletrodomésticos. O corpo de bombeiros chegou em 40 minutos após o início do fogo que se espalhou rapidamente devido ao forte vento. Habitantes das casas de alvenaria próximas ao local tentavam se proteger com fracos esguichos de água. A fumaça preta invadiu o céu dos luxuosos prédios ao redor da comunidade. Duas faixas da avenida Roberto Marinho foram interditadas e as ruas Xavier Gouveia e Cristóvão Pereira foram totalmente interditadas.[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vy9WoBiIR1g] O  grave incidente acontece bem no momento em que se especula sobre a saída dos barracos devido à especulação imobiliária e ao monotrilho da linha 17-ouro do metrô. A velocidade das obras do monotrilho neste ano de eleição que seguem até altas horas da noite reforça a ‘coincidência’. No dia 28 de julho, um tumulto agitou a comunidade em protesto ao atropelamento de um adolescente. Até o momento da publicação desta matéria (16h), houve notícia de dois feridos, sem mortes.

Tumulto na ‘doutor’ Roberto

Correria, placas derrubadas, carros apedrejados, avenida interditada e bombas de gás. Protesto de camelôs no centro ou riots de Los Angeles em 1992? Nada disso, estamos no Campo Belo, zona sul de Sampa, e a comunidade da Favela do Canão está revoltada com o atropelamento e morte de um adolescente de 14 anos na avenida do ‘doutor Roberto Marinho’. No bairro, imperam os caros apartamentos e a especulação imobiliária. No meio, no meio mesmo, está lá “a favela que já vai sair daqui”, é o que mais se ouve por aqui. A Favela do Canão ou a Favela das Espraiadas ficou famosa pelo seu mais famoso morador, o saudoso rapper Sabotage. Nesta tranquila noite de sábado, ao ouvir gritaria, saio à janela e vejo fogueiras, caçambas impedindo o trânsito e motoristas em pânico fugindo dos moradores enfurecidos, o meu primeiro pensamento foi que o dia tão aguardado pela classe média local tinha chegado: o dia do despejo. Munido de minha máquina fotográfica e de bloquinho, deparei-me com a avenida totalmente bloqueada nos dois sentidos e a PM arremessando suas indefectíveis bombas de gás (‘efeito moral’ nem a pau que a PM paulistana não tem moral há milênios) e muita correria. O irônico foi observar o culto da igreja evangélica abarrotada prosseguindo normalmente bem no olho do furacão. No momento, lembrei de matéria recente da revista Carta Capital em que descreve a proliferação vertiginosa dos ‘crentes’. Conversei com moradores que me informaram que um adolescente foi atropelado ontem na movimentada avenida, alguns quiseram até me levar para uma conversa com a mãe do adolescente quando outra correria começou. A ojeriza da comunidade com a polícia é unânime. Ouvi de um pai de mãos dadas com o filho: “cuidado com esses covardes”.  De um grupo de moradores mais exaltado: “vocês não passam de um bando de filhas-da-puta!”. De outro lado, os motoristas estavam apavorados, conferi uma batida de carro em que os motoristas simplesmente não pararam. O dono do carro com a traseira completamente amassada saiu em disparada. Voltei para casa sentindo que ainda vivemos um apartheid desgraçado nessa cidade. As eleições estão aí. Algo vai mudar? Tomara. A esperança é a única que morre. * Colaboração nas fotos de Valéria Oliveira