Zona Curva

Política

Uma luz para você entender um pouco sobre o imbróglio político em que o país está metido.

Um bilhão de famintos no mundo

por Elaine Tavares Na última semana, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou os números da fome no mundo. Quase um bilhão de famintos (821 milhões). E isso considerando os países que dispõem de dados, o que significa que o número pode ser maior. Só no continente africano estão 256 milhões de pessoas passando fome.  Na América Latina, aonde os números haviam diminuído, a fome voltou a crescer, afetando 32 milhões de pessoas.  Fazendo as contas é possível perceber que aproximadamente uma em cada nove pessoas no planeta está nesse momento passando fome. E não é aquela fome que dá quando ficamos um período sem comer. É a fome estrutural, a que mata horrivelmente, e mata mais do que qualquer outra enfermidade no mundo. A FAO reconhece que as guerras, os conflitos armados (60% dos famintos estão em zona de guerra) são causas importantes para o drama da fome, assim como também as mudanças climáticas que acabam afetando bem mais os empobrecidos. Mas, também aponta que essas emergências bélicas e climáticas, apesar de influírem no mapa da fome, não são as causas principais.  A fome da maioria dessas pessoas é estrutural, ou seja, são gerações e gerações vivendo sem alimentação adequada ou se alimentando muito pouco. Porque faz parte da organização do modo de produção capitalista que para que poucos tenham muito, a maioria seja despojada de tudo.  Parece irracional que quase um bilhão de pessoas esteja vivenciando o horror da fome num mundo que produz tanta comida, cujas cifras poderiam alimentar quase 13 bilhões de seres humanos tranquilamente (o dobro do número de pessoas que existe). Num mundo onde o desperdício de comida é imenso.  Mas, o que acontece é que como bem apontava Marx, a lógica do capital é manter os trabalhadores num estado limite entre a possibilidade de produzir valor e a morte. Nem ganhando tanto que possam achar que não precisam trabalhar, nem tão pouco que não sobrevivam. É da natureza do capital manter os trabalhadores nesse estado de letargia, típico da fome. Uma olhada sobre o nosso território brasileiro e vamos ver que a produção maior de grãos não é para comer. Serão 232 milhões de toneladas esse ano, a segunda maior produção de toda a história. Mas, é uma produção que serve para exportação e vai alimentar vacas e porcos em outros países.  O jornalista argentino Martín Caparros, autor do livro “A Fome”, escrevendo sobre os números da fome lembra que no seu país, Argentina, a produção atual de alimentos poderia sustentar 300 milhões de pessoas, mas mesmo lá existem dois milhões de famintos com tendência a aumentar esse número. Ele mostra uma conta muito simples: para produzir um quilo de carne são necessários dez quilos de cereais. Então, o produtor de grãos tem duas opções. Ou vende um quilo de cereal para dez famílias ou vende os dez quilos, a um preço bem melhor, para um fazendeiro criador de gado. No geral, a escolha é pelo gado e não pelas gentes. Ele lembra também do caso de Níger, um país africano considerado um dos mais pobres do mundo e com séculos de fome estrutural. Lá, os campos são secos e tudo é pobre, o que pode parecer que não há saída. Mas, esse mesmo país é o segundo produtor mundial de urânio, mineral estratégico e caro. Imaginem o que não seria possível fazer com os recursos do urânio? Mas, se a riqueza entra no país, ela não chega às pessoas em geral. Fica em algum bolso.  Assim que a fome não tem nada a ver com falta de comida, mas sim como o sistema capitalista se organiza. No Brasil, por exemplo, ainda são contabilizadas 7 milhões de pessoas no mapa da fome (IBGE), o mesmo país que desperdiça 14 mil toneladas de alimentos por ano, estando entre os dez mais em desperdício no mundo. Mas, esses terríveis números, divulgados todos os anos pela FAO, caem no vazio. Porque a notícia é dada nos telejornais como uma nota ritualística. Um bilhão de pessoas passam fome no mundo. E ponto. Não dizem por quê. E quem ouve, se impressiona naquele momento, mas logo já esquece, envolvida com outra notícia bombástica, como a separação de uma celebridade, ou outra coisa qualquer. Esse um bilhão de pessoas famintas não tem rosto, não tem nome, não tem CPF nem endereço, não provoca qualquer empatia. Quando muito uma lágrima rápida diante de uma foto impactante de um menino morrendo, e sendo velado por um urubu. Mas, poucos são aqueles que procuram saber os porquês. O que afinal se passa no mundo, se há tanta comida sendo produzida? Que sistema é esse no qual para que poucos vivam à larga, milhões tenham de morrer? A fome no mundo é a falência de nossa espécie. Uma pessoa em cada nove está morrendo agora, essa morte lenta, dolorosa, marcada pelo horror. E para essa gente não basta que doemos o nosso quilo de arroz, em musculação de consciência. Ajudá-las é mudar o sistema. Mudar o modo de organização da vida.  Sem isso, seremos sempre cúmplices dessa dor. Governo Bolsonaro agrava o fosso da desigualdade

Terceirização: Triste Brasil para os trabalhadores

por Elaine Tavares O jogo do toma-lá-dá-cá entre o governo de Temer e o Judiciário garantiu mais um gol de placa para a classe dominante: a terceirização irrestrita. Com isso, o Brasil volta ainda mais no tempo, alcançando a era em que os trabalhadores não tinham qualquer direito garantido e podiam ser movidos ao bel prazer dos patrões. A decisão do Superior Tribunal Federal, pouco depois de garantir aumento salarial de 16% para seus membros, permite que a partir de agora mesmo as atividades-fim possam ser terceirizadas. Até então apenas as atividades-meio como limpeza, transporte e segurança eram permitidas. Mas, agora, vale para qualquer função. Ou seja, uma empresa pode funcionar sem nenhum empregado contratado, com cada tipo de trabalhador vindo de uma empresa diferente. Essa decisão abre-se também uma porta gigantesca para o fim do serviço público tal como o conhecemos, com concurso para os trabalhadores e com estabilidade, evitando assim, os bota-fora a cada governo de plantão. Afinal, ali também a terceirização já vem sendo implantada, com empresas gerindo hospitais, creches e instituições de assistência. Logo, logo, a máquina pública também poderá terceirizar todos os trabalhadores. Importante lembrar que a terceirização não diminui custos, pelo menos não no serviço público. A empresa leva uma bolada de dinheiro enquanto paga uma mixaria para os trabalhadores, como é hoje com as empresas de limpeza. O resultado é sempre o mesmo: os donos cheios de grana e os empregados na maior precariedade. A votação no STF foi de sete votos a favor e apenas quatro contra. Os argumentos dos que votaram a favor seguem o mesmo padrão dos do governo: “com a terceirização aumentarão os empregos”. O que eles não dizem é que os empregos que existirão serão quase uma escravidão, já que não contarão mais com qualquer amparo. A reforma trabalhista, aprovada pelo Congresso, já tratou de eliminar todos os possíveis “gastos” que a classe patronal possa ter com trabalhadores. Sobra então, o emprego precário, sem direitos, sem férias, sem 13º, sem nada. A pessoa pega ou larga, e pronto. Salários baixos, nenhuma garantia, é o salvem-se quem puder. Carteira assinada, nem pensar. A terceirização está apta também a entrar no serviço público. Professores poderão ser contratados por hora, médicos, enfermeiros, dentistas, qualquer um. Não precisará mais de concurso, apenas contrato temporário. Viveremos a mais brutal exploração do trabalho humano, comparada talvez aos primórdios do capitalismo, quando as pessoas, apesar de trabalharem 15 ou 18 horas por dia, morriam de fome. O cinismo dos togados, que recebem mais de 30 mil de salário e ainda gozam de imunidade sob todos os aspectos, inclusive de crítica, não tem mais limites. O ministro Celso Mello declarou que: “Pode a terceirização constituir uma estratégia sofisticada e eventualmente imprescindível para aumentar a eficiência econômica, promover a competitividade das empresas brasileiras e , portanto, para manter e ampliar postos de trabalho”. Tudo às claras. O que importa é garantir mais e mais lucros para os empresários. Os trabalhadores são mero detalhe. Como se não fossem eles, e somente eles, os que podem geral valor. A vida vai ficar ainda bem pior para os trabalhadores, sejam eles qualificados pelo ensino formal ou não. O mundo “mad-max” ao vivo e a cores. Os “jogos vorazes” estarão abertos, com as pessoas que têm apenas sua força de trabalho para vender se digladiando entre si, enquanto o 1% que detém a riqueza assiste, inebriado pelo champanhe e pelo sadismo, em nome do lucro e da competitividade. O capitalismo na sua fase mais perversa, da superexploração exacerbada. O paraíso do empresariado predador e especulador. Todos os dias cai um direito. Todos os dias a classe dominante avança mais sobre os trabalhadores, sugando feito vampiro até a última gota. E as ruas estão quietas. E alguns esperam as eleições. https://urutaurpg.com.br/siteluis/a-desumanizacao-do-trabalhador/

A candidatura do Lula

Milhares de pessoas estiveram nessa quarta-feira (15) em Brasília para mais um ato de protesto contra o judiciário brasileiro que mantém o ex-presidente Lula preso, mesmo que ainda não tenha sido julgado. Os dirigentes do PT formalizaram a inscrição de Lula como candidato à presidência, não reconhecendo sua prisão como justa visto que, conforme alegam, está embasada apenas em convicções, sem provas contundentes. Logo, se não é justa, não pode ser barreira para sua participação no pleito de outubro. Mas, na verdade, o ato de inscrever Lula é só mais um protesto dentro da ordem, seguindo a estratégia do partido que é a de tentar todos os caminhos legais possíveis, mesmo que, contraditoriamente, diga que o judiciário está sendo político e não está levando em conta a lei. A tática petista é a maneira meio torta de dizer ao país que a prisão é ilegal, uma vez que outros políticos, pegos com provas evidentes, como é o caso do Gedel, da mala, ou os que foram igualmente delatados pelas mesmas pessoas que delataram Lula, seguem livres, leves e soltos. Apenas Lula está encarcerado. É um jogo complicado porque pode não ser entendido pela maioria da população. Se o judiciário não é confiável, por que então insistir em apelar a ele? Enfim… É a tática petista.  É claro que essa batalha jurídica acaba servindo para mobilizar a militância que se move na esperança de, com a força da luta, libertar Lula. Isso é bem difícil de acontecer, pois se na porrada pouco acontece, que dirá na paz. De qualquer forma Lula ainda consegue movimentar muita gente, vide o ato em Brasília que levou milhares às ruas, acompanhando a inscrição do ex-presidente. Agora, um dia depois da inscrição, já chovem pedidos de impugnação da candidatura e ninguém em sã consciência pode acreditar que ela seja homologada. Não será. Até a procuradora-geral da república já contestou. E aí sobram holofotes também para os peixinhos pequenos como o MBL e celebridades do golpe que buscam um lugarzinho na “grande novela”.  A série jurídica seguirá com episódios recheados de dramas possivelmente até o final do mês, ou mais tardar, início de setembro quando encerra o prazo para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) julgar os pedidos. Assim, entre uma ação e outra o PT segue na mídia e, de certa forma, fazendo sua campanha gratuitamente pelos jornais e redes de TV. E, mesmo que Lula não seja o candidato, o furdunço judiciário servirá para manter a denúncia da ilegalidade e da injustiça. Isso é bom para o PT, que segue amealhando apoios em todo o mundo.  Há quem diga que mesmo sendo impugnada no TSE, a candidatura pode recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal), onde naturalmente será derrotada, ainda que o tema siga sendo notícia de jornal nacional e internacional. É a estratégia petista. As lideranças acreditam que bater na injustiça cometida contra Lula, de forma ordeira e “democrática”, pode ajudar o candidato oficial que será Haddad, tendo como parceira Manuela do PCdoB.  Pode dar certo, ou não. Agora é esperar para ver. De qualquer forma teremos a polaridade petucana nessa eleição, embora como apregoa o professor Nildo Ouriques, possa ser o princípio do fim. A próxima visita de Lula a Pernambuco Lula e Boulos

Bloco do golpe nasce para enfrentar o lulismo

por Guilherme Scalzilli Havia meses a direita brasileira preparava sua fuga para o “centro” imaginário do espectro eleitoral. A ideia era se esconder sob uma candidatura que dissimulasse os vínculos do grupo com o golpe, alvo de rejeição quase unânime. Com Jair Bolsonaro suavizando ideologicamente o grupo situacionista e empurrando Lula ao polo contrário, uma salvação moderada até que parecia atraente. Enquanto o petista matinha chances de ser candidato, o pesadelo conservador residia em Lula adotar o perfil criado pela histeria midiática. Isso explica a veemência da reação contra os seus primeiros discursos apaziguadores, que mobilizou das rodas marinistas à revista Veja. Também ilumina a postura confrontativa do Judiciário contra o ex-presidente, provocação irresistível para alimentar sua imagem vingativa. Marina Silva sempre incorporou a candidata dos sonhos do condomínio golpista. De origem popular e ideias conservadoras, favorável ao impeachment e à Lava Jato, adulada pela direita com perfumes progressistas, ela simboliza perfeitamente o imaginário envolvido na criação de uma alternativa aos extremos perigosos. Contudo, patinando nas pesquisas, isolada no arco de alianças, com tempo irrisório de propaganda, Marina acabou perdendo até a mínima relevância necessária para esforços corretivos de suas fragilidades, como a tola mania de vitimização. Virou uma referência abstrata, um ideal a ser perseguido em cima de bases mais apropriadas. Apesar do empenho quase ridículo, porém, as campanhas jornalísticas pela “Marina perfeita” frustraram-se a cada factoide. A sobrevivência política de Lula afugentou os aventureiros, levando o neocentrismo a repensar sua tática dissimuladora. Ganhava fôlego a ideia de assumir um lado na polarização, em vez de negá-la. As enquetes fraudando cenários “Sem Lula” serviram de último teste para Marina. Provaram a sua inviabilidade (e também a de Ciro Gomes) ao mostrarem que a direita só chega ao segundo turno ocupando o lugar de Bolsonaro, não o do lulismo. E ninguém atrai o voto antipetista com posturas ambíguas e mistérios programáticos. Os observadores surpresos que me perdoem, mas a união em torno de Geraldo Alckmin era bastante previsível. Faltava apenas a confirmação do potencial lulista para que seus maiores adversários se organizassem, reeditando o arranjo do golpe. O objetivo é impedir que o PT antagonize com o fascismo na etapa final. O bloco “Direitão” (“Golpão” para os íntimos) demonstra que os profissionais do ramo consideram a influência de Lula um fator decisivo na disputa sucessória. E, talvez mais importante, que a estratégia petista passou a nortear as mobilizações alheias. Não é uma candidatura prestes a ser impugnada que provoca atrasos nos planos dos competidores, mudanças de discurso, realinhamentos e mistérios. Tampouco o improvável respeito do TSE a prazos e jurisprudências que arranca seguidos vexames ideológicos do Regime de Exceção. Ninguém ali acredita que Lula será candidato. Publicado originalmente no Blog do Scalzilli. As eleições e as opções dos trabalhadores  

Saúde aos pedaços

por Elaine Tavares O desmonte sistemático da máquina pública e o sucateamento dos serviços públicos, única via de acesso da maioria da população para a saúde, educação, moradia e segurança, voltou a colocar o Brasil no mapa da fome e da morte por doenças que já deveriam ter sido erradicadas. O Ministério da Saúde, órgão oficial do governo, divulgou que o índice de mortalidade infantil cresceu em 2016 pela primeira vez em 26 anos e que deve aumentar. As taxas que vinham sofrendo quedas desde 1990, agora voltaram a subir. Em 20016 foram 36.350 mortes de crianças antes de completarem um ano de vida. Para o governo as causas são externas a ele. Segundo o ministério o aumento das mortes se deve ao surto de zika vírus, que provocou nascimentos de crianças com má-formação congênita e também a pobreza, que faz com que aumente o número de crianças com doenças do tipo diarreia e pneumonia, comuns nos espaços insalubres e famintos.  As regiões do Centro-Oeste, Norte e Nordeste são as que apresentam taxas mais altas desse tipo de enfermidade. Febre amarela de volta Entidades que trabalham com saúde, como a Fundação Abrinq, denunciam que a elevação desses números se deve ao corte de verbas de programas que eram fundamentais para garantir a saúde das crianças: o Bolsa Família e o Bolsa Cegonha. O primeiro deles, o Bolsa Família foi lançado em 2003 pelo governo Lula, e garante uma renda mínima à famílias que vivem na extrema pobreza. Esse benefício começou a sofrer cortes já em 2013 e desde aí vem caindo, diminuindo a cada dia o número de famílias beneficiadas. Atualmente atende 14 milhões de família com um orçamento de 27 bilhões, que representa apenas 0,5% do PIB. Um valor extremamente baixo, apesar de garantir a saída da miséria absoluta a milhares de pessoas. Esse ano o governo cortou R$ 1,7 bilhão do programa. Já o Bolsa Cegonha foi criado em 2012 pela presidenta Dilma, garantindo 50 reais às gestantes para uso em deslocamentos para exames de pré-natal e parto. Um valor irrisório, mas que podia significar a diferença entre a vida e a morte. Cerca de nove bilhões eram destinados ao programa, mas esse valor vem diminuindo consideravelmente, deixando muitas mães de fora desse benefício. A gerente executiva da Fundação Abrinq, Denise Cesario, disse, em entrevista a um jornal de São Paulo, que o governo não tem reajustado os valores, que já perdem para a inflação, e que a crise econômica, aliada ao desemprego estrutural e crescente, é causa fundamental para a mortalidade de crianças. Não bastassem os cortes nos programas já consolidados, o governo federal também conseguiu aprovar a proposta de congelamento dos investimentos públicos por 20 anos. Isso acaba repercutindo na saúde também. Sem investimento nos serviços básicos de prevenção como saneamento, água tratada e limpeza, o impacto negativo na saúde é imediato. Setores de prevenção de doenças das vigilâncias epidemiológicas foram destruídos e mesmo com os surtos de dengue, zika e chucungunha, o trabalho de vigilância diminuiu. No ano passado, a febre amarela também voltou a assombrar o Brasil, doença que já estava praticamente erradicada. Segundo pesquisadores da Fiocruz, esse espantoso ressurgimento, que já vinha apresentando casos desde 2001, na região Centro-Oeste, se deve ao processo de destruição ambiental. Com o desmatamento sistemático ou desastres ambientais pontuais, a doença reaparece. Mas, desde 2010 não tinham sido registrados casos em humanos. Em 2017, o surto se deu na região do desastre provocado pela empresa Samarco (rompimento da barragem de resíduos tóxicos), que simplesmente culminou com a morte de um rio inteiro. E foi justamente em Minas Gerais, na região da bacia do rio Doce, que aconteceu o maior número de mortes por febre amarela: 32 das 99 registradas. O sarampo, que era uma doença infantil erradicada desde 2016, voltou a apresentar casos no Brasil, inclusive com características de surto. Até o mês de maio já tinham sido comunicados 995 casos, a maioria na região norte. E o mais aterrador: a poliomielite, erradicada desde 1994, também voltou, sendo que o Ministério da Saúde apontou alerta em pelo menos 312 cidades brasileiras. O governo alega que as doenças voltaram porque houve queda na vacinação. Muitas famílias deixam de vacinar os filhos, algumas delas inclusive, movidas por questões religiosas que apontam as vacinas como “coisas do diabo”. O processo de privatização dos serviços públicos,  a sistemática destruição ambiental promovida pelo agronegócio, a diminuição crescente dos recursos para saúde, educação e políticas sociais, aliadas ao empobrecimento da maioria da população, que é quem acaba pagando a conta do modelo de desenvolvimento definido pelo governo, completam o dramático quadro social. E, ainda que estejamos num ano de eleições presidenciais, muito pouco tem sido debatido pelos partidos e pelas lideranças políticas sobre a grave situação da saúde do povo brasileiro. Nos meios de comunicação, as notícias aparecem como casos isolados, desconectadas do todo. E as lutas que são travadas pelos trabalhadores públicos da saúde, muitas vezes heroicas e solitárias, também não são levadas em consideração pelos demais trabalhadores, que acabam acreditando na ideologia vomitada pela televisão e pelos jornais, de são apenas reivindicações singulares e corporativas. Pelo contrário, as batalhas contra a privatização dos serviços, contra a gestão das organizações sociais, e o desmantelamento dos setores públicos, são lutas que deveriam interessar e envolver a toda gente.  Principalmente àquelas pessoas que dependem dos serviços públicos para garantir um mínimo de vida. É mais do que chegada a hora de os sindicatos, centrais de trabalhadores e movimentos sociais encontrarem as pontas soltas dos grandes problemas nacionais e atuarem no sentido de informar, formar e organizar as lutas necessárias à maioria da população. É o povo em luta que avança e muda a vida.

Fundamentalismo econômico

por Frei Betto O passado costuma ser conhecido por eras, como as dos coletores e caçadores, agricultores nômades e sedentários etc. Eras do cobre, do bronze, do ferro… A antiguidade grega se destaca como era do nascimento da filosofia (embora ela tenha outra mãe além da grega, a chinesa), assim como a República romana se destaca como a era do direito. Como a nossa contemporaneidade será conhecida no futuro? Meu palpite é que seremos conhecidos como a era do fundamentalismo econômico. Porque todas as nossas atividades giram em torno do dinheiro. Era do business. Time is money. Do lucro exorbitante. Da desigualdade social alarmante. Do império dos bancos. Era na qual apenas oito homens dispõem de renda superior à soma da renda de 3,6 bilhões de pessoas, metade da humanidade. Era na qual tudo tem valor de troca, e não de dom. Esse fundamentalismo submete a política à economia. Elege-se quem tem dinheiro. Todo o projeto político é pensado em função de ajuste fiscal, redução de gastos em programas sociais, cortes orçamentários, privatização do patrimônio estatal, redução da dívida pública. No altar das Bolsas de Valores, tudo é ofertado, em sacrifícios humanos, ao deus Mercado. É ele que, com as suas mãos invisíveis, abençoa paraísos fiscais, livra os mais ricos de pagarem impostos, eleva as cotações do câmbio, abarrota a cornucópia da minoria abastada e arranca o pão da boca da maioria pobre. A era das incertezas Outrora meus avós, ao despertar de um novo dia, consultavam a Bíblia. Meus pais, a meteorologia. Meus irmãos, as oscilações do mercado financeiro. Sucateia-se o ensino público para fortalecer a poderosa rede de educação particular. Propõe-se a reforma da Previdência para desobrigar o Estado de assegurar aposentadoria e transferir o encargo aos planos de previdência privada. A saúde há tempos está privatizada: médicos preferem fazer parto por cesariana; cirurgias desnecessárias são recomendadas; o SUS não funciona; os planos de saúde e os medicamentos têm aumentos sazonais. O mais nefasto efeito do fundamentalismo econômico é, de um lado, a acumulação privada e, de outro, a exclusão social. Quem tem dinheiro prefere guardá-lo no banco e aplicá-lo no cassino financeiro a usufruir uma vida mais saudável e solidária. Quem não tem padece a humilhação da pobreza, da carência de bens e direitos essenciais, do salário minguado e do desemprego. A exclusão reforça as vias criminosas de acesso ao dinheiro e ao fetiche das mercadorias: narcotráfico, roubo, sonegação e corrupção. Agora o rei já não proclama “L’État c’est moi”. Ele brada “In Gold we trust”. Publicado originalmente no Correio da Cidadania.

Crianças em jaulas nos Estados Unidos

por Elaine Tavares Os Estados Unidos se auto-proclamam “mundo livre”, mas isso nada mais é do que ideologia. Liberdade mesmo só para um pequeno grupo que conforma a elite econômica e de poder. Para os demais, o que sobra é a submissão a um modo de vida marcado pela exploração. E, se entre os “demais” estiverem os imigrantes, que chegam todos os dias da América Latina ou de países árabes e asiáticos, a situação é ainda pior. Essa norma de separar filhos dos pais faz parte da política de tolerância zero anunciada pelo procurador geral Jeff Sessions, que aprofundou as detenções a partir de abril do ano passado. Nos EUA, qualquer família que tente passar a fronteira, sendo capturada, é considerada criminosa e a partir daí os adultos são levados para a prisão e as crianças para esses centros de detenção. Mas, essa prática não acontece apenas com quem tenta entrar de maneira ilegal. Mesmo aquelas famílias que chegam na fronteira e pedem asilo são desmembradas e separadas. Uma decisão desumana e dramática que só aumenta o sofrimento de quem já penou todas as penas no processo de travessia. Ao serem divulgadas as imagens das crianças detidas dentro de jaulas, o presidente Donald Trump se manifestou dizendo que a culpa de tudo isso não é de seu governo, mas dos democratas que foram os que garantiram a aprovação da lei que separa as famílias. Ainda segundo Trump, são eles os que precisam revogar essa norma e que enquanto a norma exisitir, será cumprida. A caixa de surpresas de Trump Na verdade mais um jogo de cena de Trump, uma vez que o Congresso estadunidense atual tem maioria republicana, logo, se realmente quiser, pode acabar com essa prática que amplia ainda mais o sofrimento dos imigrantes. O procurador geral Jeff Sessions, que tem sido leonino na aplicação dessa lei, declarou que cumprir a lei é um mandamento de deus e citou uma encíclica de Paulo aos Romanos, na qual o apóstolo afirma que é preciso obedecer a lei do governo porque deus foi quem ordenou ao governo seus propósitos. Ou seja, a Casa Branca também está tomada por fanáticos ou “espertinhos” que usam da Bíblia para fazer valer suas atrocidades. Fossem mesmo cristãos, seguiriam os mandamentos de Jesus que ensinou sobre o amor ao próximo. A fala do procurador usando a escritura sagrada dos cristãos para justificar as ações desumanas provocou um grande debate nos Estados Unidos envolvendo religiosos de vários credos e, claro, a maioria deles se colocando completamente contrários ao uso da palavra sagrada, considerando as práticas governamentais como imorais e anti cristãs. Mas, apesar do burburinho o governo de Donald Trump segue ampliando os centros de detenção para crianças, alegando que já está insuficiente o espaço. A notícia que circulou esta semana é de que se iniciará a construção de uma cidade de lona para encarcerar mais 450 crianças recolhidas em Tornillo, no Texas. Pelo visto, o deus de Trump não está nem aí para a solidariedade, humanidade, generosidade e partilha. Os imigrantes empobrecidos que chegam de qualquer parte do mundo são tratados como baratas, esmagados e devolvidos. E se não bastasse toda a desgraça de ver o sonho de uma vida melhor se desfazendo, ainda têm suas famílias destruídas e separadas, muitas vezes para sempre. O mundo livre mostrando sua verdadeira cara. A mesma cara que o governo teocrático de Israel mostra ao mundo, igualmente encarcerando e torturando crianças. Tudo em nome de deus. Com informações da mídia estadunidense e mexicana. Publicado originalmente no Instituto de Estudos Latino-Americanos.

Brasil: tempo de lutar

por Elaine Tavares Não é de agora que o governo brasileiro vem arrochando a vida do trabalhador. O processo começou bem antes de o vice, Michel Temer, dar o golpe. A presidenta Dilma Rousseff, que se elegeu com um programa, vinha já aplicando outro, mais adequado aos interesses das grandes agências de fomento internacionais, do agronegócio e da pequena parcela da elite produtiva. Sempre é bom lembrar que Dilma escolheu Joaquim Levy para Ministro da Fazenda, um ex-funcionário do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ou seja, uma raposa cuidando do galinheiro. E logo que entrou já veio com a conversinha de metas para o superávit primário, baixando duas medidas provisórias de ajuste fiscal, que mexia com trabalhadores e empresários de médio porte. Essa memória é necessária para que se perceba que o governo do PT estava respaldando as medidas, ainda que um ou outro dirigente fizesse críticas públicas ao ministro. O fato é que em 2014 já estava em andamento uma crise mundial do sistema capitalista e ela iria atingir a periferia, motivo pelo qual o governo já se preparava para enfrentar, sempre jogando a conta para a maioria da população e para os trabalhadores, como sempre ocorre  nos países periféricos. O respiro de “desenvolvimento” vivido no governo Lula estava indo pelo ralo e o Brasil teria de voltar ao velho patamar de país subdesenvolvido e dependente, de onde só saíra por conta de uma conjuntura favorável de curta duração. Dilma não teve dúvidas sobre iniciar esse processo e, claro, com isso tocou nos interesses da tal “classe média” que havia sido criada no tempo das vacas gordas. E, como dizia Milton Santos, a classe média não quer direitos, mas privilégios, não haveria dúvidas de que essa fração de classe iria se bandear para o lado de quem oferecesse mais, ainda que mentindo. Quem não se lembra dos protestos dos proprietários de automóvel por conta de o preço da gasolina estar em quase três reais? O setor da população que havia conseguido – via expansão do crédito – ter acesso a bens e viagens arreganhou os dentes e grande parte desse povo foi às ruas com a camiseta da seleção pedir o impedimento da presidenta. No desejo de vantagens imediatas, esse povo todo pensou que a simples saída da presidenta resolveria as coisas, sem compreender o jogo da economia que se desenrolava no mundo. A direita brasileira, que conhece as regras do jogo, e sabe jogar, aproveitou o descontentamento e procurou incentivar ainda mais a pressão, incitando os brasileiros e brasileiras no ódio ao PT, colando no partido o selo de “comunista”, o que definitivamente é a mais deslavada mentira. Nada menos comunista do que o governo Dilma, tendo sido ela mesma a presidenta a sancionar a inominável Lei Antiterrorismo, que hoje é um eficaz instrumento de domesticação das lutas. E foi assim que a onda de neofascismo que toma conta do mundo todo no ódio aos pobres, aos negros, aos índios, a tudo que tenha cor popular, também cresceu a crista no Brasil e ajudou a empurrar Dilma para o abismo. Um golpe, seguro, mas quase que um desdobramento natural no contexto de recuperação de poder por parte da direita tradicional. Estava tudo escrito. Dado o golpe e assumindo o governo o vice Michel Temer, que já antecipara a traição na famosa carta na qual reclamava ser apenas um bibelô, o ajuste necessário – na lógica fria do capital – veio a galope. Não haveria mais nada a impedir o aprofundamento das medidas de arrocho contra os trabalhadores, contra a maioria da população. É fato que uma parcela significativa da população resistiu ao golpe, apoiando a presidenta Dilma. Houve manifestações massivas, protestos. Mas não houve força suficiente para impedir o que já estava traçado. E, desde então, a classe trabalhadora vem amargando perda de direitos e recessão. No campo da disputa partidária o golpe também aprofundou a perseguição contra o PT, chegando ao ápice com a prisão do seu líder mais popular: Luiz Inácio Lula da Silva. De certa forma, o grupo que planejou o golpe vem conseguindo o que planejara: amarrar a militância petista na batalha pela libertação de Lula, tirando-a do centro dos acontecimentos que aprofundam os prejuízos aos trabalhadores. Foi assim que a Reforma Trabalhista passou, destruindo direitos conquistados há décadas sem que a reação fosse proporcional ao tamanho do prejuízo. O certo é que entre os trabalhadores há imobilismo, medo e perplexidade, o que torna bem mais difícil uma reação contundente contra os novos governantes. Na internet, a peleia é acirrada, mas essas batalhas não podem ser ganhas só no campo virtual. Há que haver materialidade no mundo da vida. O ano de 2017 registrou mais de 1100 greves de trabalhadores, segundo dados do DIEESE. Isso não é pouca coisa nesse cenário de apreensão no qual o desemprego cresce de maneira vertiginosa e o trabalho temporário virou moda. Mas, debruçando-se sobre os números, pode-se perceber que a maioria dos movimentos paredistas deu-se na defensiva. Quase 70% das greves aconteceram por conta de atrasos no pagamento, ou seja, não foi para ampliar direitos, foi para garantir o que é o mínimo no contrato capitalista: o salário.  Apenas 16% das paralisações foram por reajuste salarial. É certo que uma greve, seja por qual motivo, sempre ajuda a ampliar a consciência de classe, mas ainda teremos de vencer muita estrada para que a indignação ultrapasse o corporativismo. Uma olhada nas páginas dos sindicatos de Santa Catarina, por exemplo, de trabalhadores privados e públicos, e o que se vê são notícias sobre pautas bem intestinas. As categorias não conseguem sair de suas zonas de conforto. E também investem muito mais no debate sobre a prisão x liberdade de Lula do que nos grandes temas nacionais. Isso mostra que os dirigentes estão armadilhados nessa arapuca montada pelas forças conservadoras. Resta saber se é uma captura no campo da consciência ingênua ou se há o interesse em não mexer no vespeiro que poderia ser

A escandalosa isenção do Judiciário brasileiro

por Guilherme Scalzilli Lula é um prisioneiro político porque sua condenação visou tirá-lo de uma disputa eleitoral que ele venceria. As fragilidades da sentença desqualificam a natureza “comum” do julgamento. Os ritos processuais foram meras formalidades, com recursos praticamente ignorados e manobras para ceifar os direitos do réu. O esforço das cortes em seguir a agenda sucessória e o bloqueio de visitas no cárcere possuem idêntica motivação. O homem de 72 anos que o regime judicial de exceção tenta confinar em solitária é o candidato indesejado, o líder partidário de influência perigosa, e não um indivíduo com prerrogativas humanitárias reconhecidas mundialmente. Condenar meia dúzia de figuras menores, decadentes ou aposentadas, jamais equilibrará o gesto inigualável de obstruir uma candidatura favorita à presidência da República. E a comparação de Lula com bandidos célebres só evidencia ainda mais a disparidade financeira, legal e probatória dos respectivos casos. A lisura ideológica do Judiciário termina antes da aplicação do “paradigma Lula” aos processos em trânsito. Que tal meter na cadeia os ex-secretários de Transportes de São Paulo, até que entreguem os chefes? Grampear conversas de Aécio Neves com seus advogados? Enquadrar José Serra no “ato de ofício indeterminado” e colocá-lo em prisão preventiva? Criar uma figura jurídica para incriminar FHC pelas origens do esquema na Petrobrás? Pois é, “veja bem”. Mas o oportunismo das ações judiciais já havia quebrado qualquer fachada de isonomia. A ausência de Eduardo Azeredo viabilizou o rito sumário de Joaquim Barbosa contra os petistas do “mensalão”. Cunha, Aécio, Temer e asseclas eram inocentes até a consumação do golpe que levou o tucanato ao governo federal. Geraldo Alckmin garantiu dois mandatos seguidos, escapou da Lava Jato e percorre o país fazendo campanha. Nunca é demais lembrar que o inquérito contra Serra por crime eleitoral foi extinto no STF. Que o Ministério Público suspendeu o acordo para que os réus da Odebrecht delatassem propinas a Alckmin, Serra e Kassab. Que a operação Castelo de Areia, envolvendo a Camargo Corrêa, o Tribunal de Contas e o governo paulista, foi anulada por supostas irregularidades em grampos telefônicos (!), tendo suas provas destruídas. Depois do impeachment, do trágico governo Temer, da sobrevivência do PSDB paulista e de umas tantas prescrições, é ridículo afirmar que a prisão ilegal de Lula foi o “começo da faxina”. Em vez de seguir as gravíssimas evidências delituosas de seus protegidos, o Judiciário preferiu um apartamento sem dono trocado por favores incertos. A “faxina” é tão imparcial que teve início na única via que tirava o petista das eleições. A isonomia da Lava Jato não passa de um construto simbólico do ideário salvacionista, seletivo e antidemocrático da Cruzada Anticorrupção. Faz parte de sua estratégia inventar simulacros amenos, tardios e insuficientes de uma violência que só atingiu Lula e seus eleitores porque não atingiu mais ninguém. A mancha do partidarismo judicial jamais sairá da memória desses tempos sombrios. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. O golpe preventivo contra Lula Balanço do golpe I  

Unasul: golpeada a proposta de um bloco na América Latina

por Elaine Tavares A generosa ideia de Hugo Chávez, inspirada em Bolívar, de criação da União das Nações Sul-americanas (UNASUL) está se esboroando. Com a decisão de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Peru e Paraguai de saírem da organização, a construção de um bloco de poder autônomo e soberano perde força. E, perdendo força, cresce o poder dos Estados Unidos sobre os países do sul, voltando, mais uma vez, a proposta de recolonização da “américa baixa”. Tudo isso com o apoio incondicional das classes dominantes de cada país, sempre dispostas a trair os interesses da maioria da população em nome de ganhos pessoais e/ou de seus parceiros. Não é sem razão que países como Brasil e Paraguai sofreram golpes, e a Argentina tenha se rendido outra vez ao neoliberalismo. Colômbia, Peru e Chile  sempre foram países parceiros dos EUA e só estavam na Unasul enquanto foi benéfico para eles no campo econômico e comercial. Agora, com o ataque sistemático ao governo de Nicolás Maduro, os governos desses países resolveram assumir o lado dos EUA e buscam enfraquecer a proposta da construção de uma América Latina forte. Setembro de 1815 – Simón Bolívar está na Jamaica, exilado, depois de ter tentado – e fracassado – libertar a Venezuela do domínio espanhol. Ele pensa sobre o destino de todos os viventes dessa grande América, então ainda sob o jugo da colônia. É quando escreve sua famosa Carta da Jamaica, na qual propõe a ideia da união de todo o continente: “É uma ideia grandiosa e pretender formar de todo o mundo novo uma só nação, com um só vínculo, que ligue suas partes entre si e com o todo. Já que têm uma mesma origem, uma mesma língua, mesmos costumes e uma religião, deveria, por conseguinte, ter um só governo que confederasse os diferentes Estados que haverão de formar-se”. E acrescenta: “Eu desejo mais do que qualquer outro ver formar na América, a mais grande nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas, que por sua liberdade e glória…” Depois dessa missiva, na qual os sonhos são explicitados, Simón volta para a América do Sul e recomeça sua luta. A independência vira uma realidade. Então, ele decide chamar, em 1826, todos os dirigentes das novas repúblicas que se formam depois das lutas de libertação para um Congresso, no Panamá, no qual proporia a construção real de uma confederação hispano-americana. Na frente de seu tempo, Bolívar sabia que só juntos, os novos países da recém-liberta colônia, poderiam ser soberanos e livres. Nesse congresso estiveram presentes os representantes do México, da Federação Centro-Americana, da Grã-Colômbia (Colômbia, Venezuela e Equador) e do Peru (incluindo então, a Bolívia). Outros se fizeram ausentes: Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Brasil, Estados Unidos da América e Haiti. A proposta estava a frente do tempo e procurar fortalecer o continente frente às ações imperialistas da Europa e dos Estados Unidos. O congresso propunha a união de todos esses países num grande bloco, a Pátria Grande, para manutenção da paz, segurança coletiva, defesa recíproca e mútua ajuda contra qualquer agressão externa, garantia da independência política e da integridade territorial dos estados membros, solução pacífica das controvérsias internacionais, quaisquer que fossem suas naturezas e origens e codificação do Direito Internacional. A ideia era ter uma Assembleia Geral permanente, que se reuniria de dois em dois anos, funcionando como hoje funciona a OEA (Organização dos Estados Americanos) e o objetivo único era a manutenção da paz e da soberania das nações livres. O Brasil, como governo, sempre esteve fora do debate da soberania da Pátria Grande. Quando as guerras de independência foram travadas na parte espanhola, o Brasil seguia firme com a monarquia e só foi abalado bem mais tarde pela revolução farroupilha, que durou 10 anos, mas acabou sem vitória da república. Ainda que tivéssemos gente brasileira lutando nas guerras de libertação, como foi o caso de Abreu e Lima, esse foi um tema que não chegou à maioria das gentes que vivia na parte portuguesa. Quando Bolívar chamou o Congresso Anfictiônico do Panamá, procurou convidar o Brasil, afinal, era quase um continente incrustrado na América Latina. Só que o Brasil não compareceu. Mas, é bom lembrar que se a monarquia não queria saber de libertação ou união, o povo brasileiro queria. Tanto que em 1817, quando os irmãos hispânicos lutavam por independência explodiu em Pernambuco um movimento republicano, tentando acender uma labareda nacional. Foi aplastado. E foi dali que saiu Abreu e Lima.  No artigo “O Brasil e o Congresso Anfictionico do Panamá”, o professor de Relações Internacionais da UNB,  José Carlos Brandi Aleixo, aponta que outros políticos brasileiros também se manifestaram pela ideia de uma união de nações nos anos que se seguiram a independência. Araújo Carneiro, Almirante Rodrigo Pinto Guedes, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Bonifácio de Andrade e Silva foram alguns que se preocuparam com a defesa nacional e a necessidade de unir forças com os países vizinhos para enfrentar a Europa e o império nascente que representava os Estados Unidos. Em 1822 José Bonifácio escrevia: “…. o mesmo Senhor [ Príncipe D. Pedro ], como Regente do Brasil, não deseja nem pode adotar outro sistema que não o Americano, e se acha convencido de que os interesses de todos os Governos da América, sejam quais forem, devem se considerar homogêneos, e derivados todos do mesmo princípio, ou seja: uma justa e firme repulsa contra as imperiosas pretensões da Europa”. Por isso havia uma pré-disposição no Brasil ao chamado de Bolívar. Toda a diplomacia agia no sentido de garantir a participação no Congresso e Dom Pedro I chegou a destacar o Visconde de Inhambuque de Cima ( Pereira da Cunha) para representar o Brasil. Todavia, o Brasil acabou não indo. Muitas podem ter sido as razões. Há quem diga que foi porque o debate estaria centrado nas repúblicas, e o Brasil seguia monárquico. Havia disputa entre Brasil e Argentina pelo Uruguai e os governos talvez temessem essa discussão. O fato é que ficou de fora e não absorveu toda a riqueza do debate

Rolar para cima