Zona Curva

Política

Uma luz para você entender um pouco sobre o imbróglio político em que o país está metido.

Terror na terra guarani

por Elaine Tavares Desde o Morro dos Cavalos, em Palhoça, em Santa Catarina, ecoa um grito que poucos ouvem. Não porque não seja forte, mas porque quem grita são gentes do povo Guarani. Gente indígena, originária, que a maioria das pessoas prefere ignorar. Tanto que desde 1992, quando surgiu a proposta de demarcação da área para que as famílias Guarani pudessem ter um lugar para viver, a terra e os Guarani vivem sob constante ataque do Estado, dos políticos, e até das chamadas “pessoas de bem”. Ao longo desses anos são incontáveis as ações violentas, preconceituosas e discriminatórias. E desde que as famílias empreenderam uma luta mais potente pela posse da sua terra ancestral a violência aumentou, a ponto de no último feriado do dia 02 de novembro, a mãe da ex-cacica Kerexu, Ivete de Souza, 59 anos, ter sua mão decepada por dois adolescentes, provavelmente incitados e pagos pelos inimigos de sempre. Os Guarani comprovadamente ocupam as terras catarinenses desde antes da invasão portuguesa. Os registros são inúmeros. A etnia se movia no território que vai do Rio Grande do Sul até a Bolívia, sendo o centro do seu mundo o que hoje é o Paraguai. E, como é sabido, toda essa gente foi sendo exterminada no processo de conquista. A chegada dos portugueses varreu as famílias do seu lugar original. Os que escaparam da morte foram se escondendo no interior. Até que os colonizadores também chegaram lá. Foi a brutal invasão que desalojou os Guarani. Foi um roubo. Uma violência. Mas, ao contrário do que objetivavam, os portugueses e os espanhóis não conseguiram exterminar o povo inteiro. Os Guarani sobreviveram e com o passar do tempo foram reivindicando seu território original. Em Santa Catarina não foi diferente. Famílias Guarani que por aqui permaneceram, isoladas e em fuga, foram se juntando. E essa união gestou a força para a luta. Foi assim que começou a se constituir o processo para a demarcação das terras. A batalha tem sido dura porque a Constituição de 1988 estabelece um marco temporal. Para reivindicar terra os indígenas teriam de estar nelas antes dessa data. O que é uma farsa completa, pois se a maioria andava fugindo da dizimação, como poderia estar ali? E foi em nome desse marco que o Estado de Santa Catarina começou a colocar empecilhos para a demarcação da terra do Morro dos Cavalos. No ano de 2008 foi expedida uma portaria (771/2008) pelo Ministério da Justiça, garantindo aos Guarani a posse de 1.988 hectares na região do Morro dos Cavalos. Mas, a Procuradoria do Estado pediu anulação, justamente se referindo ao tal do “marco temporal”.  E desde aí o processo se arrasta, ainda que os Guarani sigam vivendo no local. O mais dramático é que, no processo de anulação, o próprio Estado admite que desde 1970 tem Guarani vivendo na área, conforme mostra um trabalho desenvolvido por pesquisadores da UFSC. Mas, a alegação cretina é de era uma única família de oito guaranis, com origem no Paraguai. Ora, se já está mais do que comprovado de que o território Guarani se estendia do RS à Bolívia, é mais do claro que, para essa etnia, as fronteiras desenhadas pelos invasores não fazem sentido. Os Guarani se movem conforme os perigos que enfrentam. O fato é que nos anos 70 havia Guarani na região. E mesmo que não existissem ali naqueles anos, essa é sua terra originária e eles têm direitos sobre elas. De qualquer sorte, por conta dessa polêmica, a demarcação ainda não saiu. Hoje, vivem na região mais de 300 Guarani. E sobre eles pesa a mão forte da especulação e da renda da terra. Políticos da cidade onde está a terra indígena, e também de cidades vizinhas, têm promovido campanhas violentas de difamação e de enganos, levando a população ao ódio e ao preconceito. Essa incitação contra os indígenas provoca ações de protesto e ataques. É comum aos moradores da aldeia Itaty conviver com tiros disparados a esmo desde a BR 101 no meio da madrugada. Caminhonetas possantes passam e seus ocupantes, escondidos pela noite, disparam na direção das casas. Barcos são queimados na madrugada, plantações são destruídas. É uma longa, cruel e sistemática tortura. Durante o cacicato de Kerexu Yxapyry as coisas recrudesceram. Além de indígena, é uma mulher. E guerreira, e valente, defendendo sem medo sua gente de toda a canalha que quer colocar a mão nas terras que hoje são dos Guarani. Como é comum numa sociedade transpassada pelo machismo, ela passou a ser o alvo principal, não apenas dos já conhecidos políticos, como também dos jagunços que são financiados para semear o terror na aldeia. A ação desse feriado de novembro, que terminou com a mão da mãe de Kerexu decepada, foi mais um evento nessa sequência de barbaridades. A intenção dos adolescentes que atacaram Ivete era fazer com que ela sangrasse até morrer. Não conseguiram. Mas, até quando? Qual deverá ser o limite do terror para que o Estado intervenha e garanta a proteção da gente Guarani? A campanha contra os indígenas agora cresceu para a cidade de Enseada de Brito, na qual as pessoas são levadas a acreditar que a presença dos Guarani na nascente do rio que leva água ao lugar, será contaminada. Como se os Guarani fossem alguma doença. É de horrorizar. Ora, os povos originários são os que mais protegem a natureza. Não há qualquer possibilidade de essa gente sujar o rio. Pelo contrário. Ele será ainda mais cuidado. O fato é que a demora na demarcação só aumenta a quentura do caldeirão. Com essa carta na manga, os políticos ligados à especulação das terras vão insuflando a população não-índia e provocando conflitos. O que querem é aterrorizar as famílias e garantir a expulsão. Agora, com mais essa ação violenta contra sua família, Kerexu está convocando os lutadores sociais da região para que se unam aos Guarani na proteção da aldeia. Se o estado não garante a segurança e sequer se importa com o destino das gentes, eles haverão de encontrar caminhos.

A realidade da renda básica no Brasil pós-Lula

por Giuseppe Cocco e Silvio Pedrosa É bem difícil iniciar um balanço das políticas sociais dos quatro governos do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil (dois governos de Lula, de 2003 a 2011, e dois de Dilma Rousseff, de 2011 a 2015) neste momento em que o mandato em curso enfrenta não somente uma contestação popular maciça, mas também uma dramática depressão econômica, um gigantesco escândalo de corrupção e um processo de impeachment recente. Apesar disso, essa situação realmente catastrófica não impede que as políticas sociais do governo Lula tenham legitimado socialmente um poder que poderia ter perdurado, uma vez que o PT planejava a recandidatura de Lula em 2018. Ao mesmo tempo em que o poder do PT desmorona, suas políticas sociais e, sobretudo, o programa mais popular, o Bolsa Família, são objeto de consenso. Ninguém ousaria, hoje, querer reduzi-las, reformulá-las ou extingui-las. No entanto, trata-se de um consenso paradoxal, no momento em que essas políticas sociais são abaladas por três processos. Primeiramente, a violenta recessão associada à inflação muito elevada dos últimos anos reduzem progressivamente essas políticas sociais: tanto a seleção dos beneficiários quanto o montante dos repasses estão atualmente congelados, sem acompanhar a enorme inflação. Além disso, enquanto os programas minguaram nos últimos dois ou três anos, as populações a serem beneficiadas aumentam constantemente. Por fim, o Brasil, assim como toda a América do Sul, retorna a políticas neoliberais, de modo que o segundo governo de Dilma Rousseff começou a implantá-las já desde sua ilusória vitória eleitoral. O PT e seus aliados não só efetuaram cortes drásticos nas despesas públicas e na proteção social (seguro-desemprego para os mais jovens, proteção dos pescadores e pensão por viuvez), mas também trabalharam para reformar especialmente o sistema de aposentadorias. Qualquer seja o cenário político institucional de saída da crise atual, até mesmo no caso – muito improvável – de sobrevivência do PT e de Lula, as aposentadorias permanecerão reduzidas com a adoção das receitas neoliberais. No entanto, veremos mais adiante que as aposentadorias constituem, junto com o salário mínimo instaurado já em 1938 pelo regime Vargas para o trabalho assalariado, o dispositivo fundamental de proteção social no Brasil. Hoje, portanto, o destino do Brasil, “país do futuro”, é muito imprevisível, e a evolução em curso suscita um pessimismo generalizado. Nessa extrema incerteza, as mobilizações da esquerda residual, que defende o governo, desempenham um papel extremamente perverso, correndo o risco de abrir caminho para um “lepenismo” tropical. Ao mesmo tempo, o vazio deixado pela derrocada do PT e da esquerda também pode transformar-se em brecha para a radicalização de certas experiências positivas dos últimos vinte anos, como ocorreu em junho de 2013. Este artigo tem como objetivo avaliar o alcance das políticas sociais realmente existentes no Brasil no período Lula do ponto de vista do debate geral sobre a Renda Básica de Cidadania. Ele inclui duas questões: 1. Essas políticas sociais – sobretudo os repasses monetários – foram pensadas na perspectiva de uma renda mínima? 2. A renda mínima poderia funcionar como vértice privilegiado de reorganização e integração dessas políticas sociais? Podemos adiantar nossas respostas: as diferentes políticas de repasses monetários não foram concebidas na perspectiva da renda mínima (nem de qualquer outra forma de renda garantida). Elas são o resultado imprevisto de uma hibridação de três dispositivos diferentes: o sistema de aposentadorias, proveniente do Estado corporativo e autoritário; o sistema de seguro-desemprego como elemento tardio do Welfare fordista articulado com o emprego formal; e, por fim, os repasses monetários de assistência social. Estes últimos reúnem os programas do Benefício de Prestação Continuada, instaurado em 1995, e do Bolsa Família, implantado em 2004 no âmbito do “combate à extrema pobreza”. Nossa análise seguirá dois eixos: a evolução dos debates em torno dessas políticas e a descrição das políticas de distribuição de renda. Esses dois eixos serão divididos em três fases: primeiramente, a realização do programa Bolsa Família, durante o primeiro governo Lula (2003-2006), a qual chamaremos de fase “católica” ou “esquerdista residual”; a segunda fase “lulista”, do segundo governo Lula e dos dois primeiros anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (2007-2012); e o “Lulismo selvagem” da guinada para os protestos de junho de 2013. A dívida de FHC e Lula “Lulismo selvagem” Os protestos de junho de 2013 puseram fim ao Lulismo enquanto dinâmica vinda não de fora, mas da outra face do conjunto das políticas sociais dos governos do PT. Porque o fenômeno do “populismo” (positivo ou negativo) e o apoio passivo ao líder carismático ocultavam uma dinâmica selvagem de produção de subjetividade no cerne das políticas sociais de Lula, bem como para além delas. O movimento de junho de 2013 foi a explicitação dos limites não somente do Lulismo (sociológico ou político), mas também, e sobretudo, das diferentes críticas externas e internas dirigidas contra ele. As políticas sociais (e o governo de modo geral) não podem ser avaliadas em si mesmas, de acordo com a coerência interna de sua concepção e execução, tampouco conforme seus discursos sobre a emergência de uma nova classe média. E muito menos segundo a crítica que as acusa de oferecer apenas uma inclusão pela integração no grande consumo. O que é preciso entender são os processos de subjetivação que se afirmam no e além de seu horizonte. Nas políticas públicas, o que importa não é tanto saber se elas podem “resolver” uma determinada situação (por exemplo, a extrema pobreza, a desigualdade), mas se elas dão acesso e se estão abertas às dinâmicas que podem mudar as relações sociais, dinâmicas horizontais e constituintes de mobilizações sociais capazes de transmutar os valores. Enquanto o Lulismo estava totalmente mergulhado na euforia da emergência de um “país sem pobres”, de uma “nova” classe média apta a consumir automóveis e megaeventos da guinada neodesenvolvimentista do governo Dilma, os protestos de junho de 2013 mostravam a formação de uma nova figura social do trabalho metropolitano, totalmente selvagem e irrepresentável.   O debate sobre as transferências de renda durante o governo Lula Dois grandes tipos de críticas gerais ou

Atentado na Somália: A morte do outro não importa

por Elaine Tavares O mundo ocidental se move por uma premissa que vem da cultura grega: o ser é, o não-ser não é. E o que significa essa frase tão enigmática? Que só é reconhecido como ser aquele que é igual. O outro, esse não existe. Não-é. Não tem importância. Sendo assim o que é para o mundo ocidental europeu/estadunidense? Aquele que é igual a eles: branco, rico, capitalista, guardião da ordem e da moral. Tudo o que sai desse script não-é. E, não sendo pode ser destruído sem dó. Sobre a morte desse outro que não-é, não se fala, porque não importa. É por isso que o massacre perpetrado pelos Estados Unidos nos países do Oriente Médio não tem a menor importância para o mundo ocidental. Todos os dias, os “mariners e seals” matam 20, 30, 40 iraquianos na sua já eterna campanha contra o “mal”. E as pessoas seguem vivendo sem se importar. O picoteamento do continente africano em inúmeros países, criados pelos interesses dos povos europeus, sem que fossem levadas em consideração as histórias e tradições dos povos do lugar é outro exemplo. Todos os dias morrem milhares por conta da ocupação colonial e sua herança. Poucos se importam. Nessa semana, na capital da Somália, Mogadíscio, dois caminhões bomba explodiram causando um massacre, matando cerca de 300 pessoas e ferindo outras tantas. Foi o pior ataque nos últimos anos, em um país que foi completamente destruído por conta dos interesses dos Estados Unidos. Guerras internas, fomentadas na disputa socialismo x capitalismo destruíram o país no início dos anos 1990, depois de um golpe contra o presidente Siad Barré, alinhado ao socialismo. Desde então, grupos locais se revezam no poder. E como sempre acontece, por conta dos conflitos internos, e sendo a região estratégica para a navegação, com grandes reservas de minério de ferro, estanho, gipsita (gesso natural), bauxita, urânio, cobre e sal, além da suspeita da existência de reservas de petróleo e gás, o governo dos Estados Unidos decidiu ir para lá, “promover a paz” com seus soldados. Desde então vem promovendo ações para garantir o controle da área. De certa forma, como nos países do Oriente Médio, acaba por incentivar cada vez mais o aparecimento de grupos radicais. Agora, no último mês de março, o presidente Trump autorizou a intensificação dos ataques aos grupos em luta, que eles chamam de “terroristas”, e foi isso que acabou provocando o ataque. Mas a Somália é um lugar onde vivem não-seres, gente pobre, negra, muçulmana, que, por um azar do destino, nasceu num ponto estratégico para os “donos do mundo”.  Fica numa região chamada de “chifre da África”, ponto mais oriental do continente africano. Então, a morte de centenas e centenas de somalis aparece como apenas uma estatística, exatamente como a dos iraquianos, os afegãos, os paquistaneses etc. Então, não adianta clamar nas redes sociais para que coloquem a bandeira da Somália no Facebook. Isso não muda em nada o drama que se desenrola naquele despedaçado país. O melhor a se fazer é tentar sair da armadilha filosófica que acaba dominando a realidade na qual o que não é igual é passível de destruição, sem que se sinta remorso ou empatia. E isso é uma pedagogia que está na tele da TV todos os dias, em programas como A Fazenda, Big Brother, e outros afins. Lá, as pessoas que não se encaixam no perfil do público são “eliminadas”, em rede nacional, no grande coliseu eletrônico. E é assim que todos vão aprendendo a eliminar os não-seres, consolidando essa forma de pensar. Enrique Dussel, filósofo argentino, construiu outro modelo de pensamento que ele chama de filosofia da libertação. Nele, o pressuposto grego muda radicalmente. Se para o mundo ocidental/burguês o ser é, e o não-ser não-é, para a proposta de libertação, o ser é e o não ser são reais. Isso muda tudo. Aquele que é diferente existe, tem nome e sobrenome, precisa da nossa empatia. E é essa atitude que permite que possamos sentir na pele, como dizia el Che, a dor do outro, caído e oprimido. Só assim poderemos caminhar para um mundo de bem viver. Há um episódio, da famosa série televisiva Black Mirror, que mostra a lógica grega/ocidental na sua forma mais terrível. Nele, soldados estadunidenses aparecem sendo treinados, com manipulação psicológica e física, para ver os inimigos como baratas. Eles então são mandados à guerra e matam sem dó nem piedade tudo o que encontram pela frente. Eles não enxergam pessoas, enxergam baratas gigantes, monstros. Por isso não se apiedam. Essa lavagem cerebral é a que vivemos todos nós. Ao ver um negro, um árabe, um pobre, um gay, um travesti ou qualquer outro ser que não-seja igual ao que temos por “normal”, o que vemos são baratas gigantes, que podem ser amassadas sem que vertamos uma lágrima. Pessoas há que estão fora da bolha. Que conseguem ver os homens, as mulheres, as crianças, de olhos graúdos e sorriso largo, querendo viver. Esses se importam. Mas, ainda assim, não basta clamar no facebook. É necessário o trabalho político sistemático e organizado para mudar a filosofia e ordem das coisas. Ação concreta na vida, bem aqui, na vida cotidiana, no sindicato, no partido político, no movimento social. Porque se mudamos a forma de pensar e fazemos esse pensamento avançar, a vida dos iraquianos, afegãos, palestinos e somalis também pode mudar. A tarefa é essa, entender que o não-ser é real, que o opressor é real, que o sistema que nos aniquila é real e sobre isso temos de atuar. Acolhendo o diferente, o caído, o real, e encontrando caminhos para mudar esse modo de organizar a vida, que transforma humanos em coisas para o enriquecimento de uns poucos. Entender que vivemos uma guerra de classes e que a primeira batalha a vencer é justamente a filosófica, embora ela pareça a mais distante. Seguiremos denunciando as atrocidades cometidas pelo mundo afora pelos “senhores da guerra”, liderados pelos Estados Unidos ou fomentados por eles. Mas, só denunciar

A crônica desigualdade social brasileira

por Fernando do Valle O Brasil ainda figura entre os países mais desiguais do mundo. Pessoas jogadas nas praças com seus cobertores, pedintes e crianças nos sinais de trânsito fazem parte do cotidiano das grandes cidades. Muitos preferem não enxergar o abandono de 16 milhões de brasileiros que ainda vivem abaixo da linha de pobreza. E o quadro tende a piorar: segundo projeções do Banco Mundial, o país produzirá mais 3,6 milhões de pobres até o final de 2017. Sem dúvida, nas últimas décadas, a desigualdade diminuiu, mas continua como um problema crônico no país, essa é a principal conclusão do relatório “A distância que nos une” divulgado ontem pela Oxfam, organização que trabalha na área da justiça social há mais de 60 anos. O Bolsa Família, ganhos educacionais (que impactaram na redução das diferenças salariais), ampliação da cobertura de serviços essenciais para os mais pobres e a política de valorização real do salário mínimo melhoraram o quadro de completo abandono social do período da ditadura militar e dos anos 80. Segundo a Oxfam, “entre 1988 – ano da promulgação de nossa Constituição – e 2015, reduzimos de 37% para menos de 10% a parcela de população brasileira abaixo da linha da pobreza. Considerando os últimos 15 anos, o Brasil retirou da pobreza mais de 28 milhões de pessoas, ao mesmo tempo em que a grande concentração de renda no topo se manteve estável”. Entre 1976 e 2015, o índice de Gini (parâmetro internacional usado para medir a desigualdade de distribuição de renda entre os países) variou de 0,623 a 0,51527, ou seja, a pobreza encolheu de 35% para menos de 10%, menos de um terço do que era há 40 anos. Depois de alguns dados positivos, vamos aos números que apontam o persistente problema social do Brasil. Para exemplificar, o nível de concentração de renda continua absurdo, apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres. Segundo o ranking de bilionários da revista Forbes deste ano, são esses os seis brasileiros: Jorge Paulo Lemann (investidor), Joseph Safra (banqueiro), Marcel Herrmann Telles (investidor), Carlos Alberto Sicupira (investidor), Eduardo Saverin (co-fundador do Facebook) e Ermirio de Moraes (do Grupo Votorantim). Juntos, eles possuem uma fortuna estimada em mais de R$ 280 bilhões. Desigualdade social: Ricos ganham 36 vezes mais que os pobres no Brasil, segundo IBGE E tem mais: os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os demais 95%. Por aqui, um trabalhador que ganha o salário mínimo de R$ 937 por mês (cerca de 23% da população) levará 19 anos para receber o equivalente aos rendimentos da fortuna de um bilionário em um único mês. No mundo, a situação também é extremamente desigual, ainda segundo a Oxfam, que estudou todos os indivíduos com um patrimônio líquido de pelo menos 1 bilhão de dólares, concluiu que 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da Forbes de 2016, dos quais 89% são homens, possuem um patrimônio de US$ 6,5 trilhões – a mesma riqueza detida pelos 70% mais pobres da humanidade. Neste momento, o 1% mais rico da população mundial possui a mesma riqueza que os outros 99%, e apenas oito bilionários possuem o mesmo que a metade mais pobre da população no planeta. Por outro lado, a pobreza é realidade de mais de 700 milhões de pessoas no mundo. Fonte: OXFAM Norte e Nordeste voltam a ser esquecidos no faminto Brasil de Bolsonaro País continua desigual, mas índices sociais melhoram entre 2010 e 2014

FARC, um novo partido na Colômbia

por Elaine Tavares Foram 53 anos de luta armada nas montanhas colombianas, a guerrilha mais antiga da América Latina. Primeiro, chegou como defesa mesmo das famílias e das comunidades num país devastado pelo caos político iniciado com o assassinato de Jorge Gaitán. Um exército popular nascido em 1964, em resposta à violência desatada pelo governo sobre a região de Marquetalia. Um grupo que, atuando de maneira mais sistemática, foi então se articulando como uma proposta de libertação, marxista. Mais de meio século enfrentando o poder de um estado militarizado e também de paramilitares e narcotraficantes. A Colômbia e seu caldeirão, recheado de mortes, desaparições, desalojamento de gente. Um país marcado pela proximidade política com os Estados Unidos, parceiro na luta contra qualquer possibilidade de vitória de uma proposta socialista. Era preciso varrer do mapa as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e muito foi investido nisso. Mas, apesar de toda a ajuda dos EUA e da ação permanente do paramilitarismo, o mercenarismo e o narcotráfico, as FARCs resistiram. E ao longo de quase meio século nunca faltou gente para engrossar as fileiras do sonho da liberdade e da soberania. Só que mais de 50 anos de guerra civil também conseguiram esgotar a população. Era tempo demais vivendo sob o medo e o terror de estado. Por isso, a proposta de um cessar fogo e de consolidação da paz começou a ganhar músculo. Várias tentativas já tinham sido feitas, todas infrutíferas, mas dessa vez, com a mediação de Cuba, as partes se entenderam. Não sem conflito. A ponto de, depois de assinada a paz, no final de 2016, um plebiscito realizado no país decidiu pelo não ao acordo, fruto de campanha massiva das forças mais reacionárias, comandadas por Álvaro Uribe, ex-presidente com ligações próximas ao narcotráfico. O fato é que, acertados alguns interesses, o acordo vingou e as armas da guerrilha começaram a ser entregues. A paz começou a tecer seus primeiros arranjos numa caminhada que não será curta nem fácil. E uma dessas tessituras foi a possibilidade de transformar toda aquela organização popular nascida na guerrilha em uma instituição partidária capaz de atuar na vida cotidiana, às claras, amarrando os laços construídos por todo o país. Assim, foi-se costurando a organização do Primeiro Congresso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo. E o congresso aconteceu agora em agosto de 2017, na capital do país, reunindo mais de 1.200 delegados de praticamente todas as regiões da Colômbia. Vieram os combatentes das montanhas e os milicianos da cidade. Vieram ainda delegações de movimentos revolucionários de mais de 20 países. Foram cinco dias de acaloradas discussões e ao fim, ali estava um novo partido político, uma organização fora da clandestinidade, pronta para disputar o jogo político na Colômbia da paz. Assim, o que eram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) se transmudaram em Força Alternativa Revolucionária do Comum (FARC). Um nome e tanto, capaz de plasmar na mesma sigla os desejos de meio século: um país no qual os bens comuns pudessem ser desfrutados por todos e não apenas por uma elite. A voz da montanha pode soar sem medo, e da junção dos caminhos da luta armada com a paz, pode nascer a rosa vermelha que, a partir de agora, anunciará a luta da FARC partidária, civil. Já na abertura do histórico congresso, a fala de Rodrigo Londoño, o Timochenko, então dirigente máximo das FARC, deixava claro que entrar para a legalidade não significava abandonar os pressupostos que levaram tantos colombianos às armas: “não renunciamos aos nossos fundamentos ideológicos, nem ao projeto de sociedade. Seguiremos sendo revolucionários. Nossa missão fundamental será ganhar as massas, sem as quais o adversário fará o que quiser conosco”. Durante os cinco dias de congresso os delegados construíram o estatuto e o programa do partido, elegendo também a primeira diretoria, com 111 membros. Dentro desse grupo ficaram incluídos os antigos componentes do Estado Maior das FARCs, bem como aqueles que representarão o partido como senadores e deputados, cinco em cada casa, conforme garantiu o acordo. Para aqueles que durante anos viveram no terror da guerra, agora está colocada a possibilidade de construir uma alternativa que expresse a construção do mundo sonhado, de justiça, de terras repartidas, de cuidado com as gentes, de democracia real. Um grande desafio, como afirma o relatório do congresso fundacional: “Pedimos perdão às vítimas do conflito, fizemos ações de reparação e continuaremos a fazê-lo. Acreditamos que a reconciliação é possível, ainda num contexto político de polarização instigada por aqueles que a repudiam, sim, persistimos na necessidade de estabelecer diálogos e outras ações que permitam compreender que a construção da paz é um propósito coletivo. A paz tem que ver com todos: com os partidos políticos, com os governantes, com os diversos ramos do sector público, com os ex-contendores, com os empresários e os povos indígenas, os grandes meios de comunicação e as comunidades afro, com os habitantes das cidades e os camponeses, com os jovens e as mulheres, enfim com as pessoas comuns, com o povo. Chegar ao coração da população também significa compreender como, de facto, já o fizemos, que a solução dos problemas lancinantes da população não se encontra, exclusivamente, na implementação dos acordos e que estes, se bem que representam um indiscutível avanço democrático, têm que dialogar com o conjunto de iniciativas e propostas surgidas das mais variadas expressões organizativas políticas e sociais do campo popular”.  E esse caminho para o coração dos colombianos já se mostrou fecundo no grande ato de lançamento do partido que aconteceu ao final do congresso, na Praça Bolívar, em Bogotá, ao qual compareceram mais de 15 mil pessoas, para ouvir as decisões do encontro, cantar, dançar e compartilhar do ritual sagrado oferecido pelos povos originários, no simbólico cachimbo da paz. Agora, a luta seguirá por outras vias. Existem ainda muitas pontas soltas para serem amarradas. Afinal, é uma mudança radical a que milhares de pessoas estão vivendo, saindo da guerrilha para a vida civil. A rotina na montanha não encontra similaridade

O filme ruim da Lava Jato

por Guilherme Scalzilli Sei que deveria ignorar “Polícia Federal: A lei é para todos”, o tal filme sobre a Lava Jato, como fazemos com essas excrescências de mau gosto que proliferam em todas as mídias. Mas há algo incômodo na coisa, um absurdo original difícil de definir, que fica pedindo para ser decifrado. Talvez a incongruência fique mais clara se imaginarmos um filme de viés oposto: uma produção que retratasse a Lava Jato sob prisma conspiratório. Com atores globais representando um Sérgio Moro provinciano, rancoroso e maquiavélico, delegados patifes, promotores desastrados e imaturos, policiais toscos e vaidosos. Quanto tempo demoraria até que um juiz do Paraná embargasse a produção? Até que os responsáveis fossem processados por calúnia, difamação, desacato, ofensa a valores republicanos? Até que a imprensa destruísse a reputação dos envolvidos, suscitando protestos, abaixo-assinados, textões? Não acho que essas medidas caberiam ao filme da Lava Jato, ainda que suas mentiras sejam danosas à imagem de alguém. Mesmo sabendo que vivemos sob um regime judicial que cerceia a liberdade de expressão cotidianamente, sob os mais estapafúrdios pretextos, jamais devemos cair na armadilha de apoiar a generalização do espírito censório. Os furos da Lava Jato Isso não quer dizer que tenhamos de fingir que aquele filme anti-Lava Jato seria viável. Porque não seria. A sensação de “excepcionalidade”, tão apropriada ao caso, torna o filme real uma espécie de agressão impune, que não poderíamos revidar nem se quiséssemos. Acontece que o problema foge ao plano do conteúdo. Refletindo sobre as circunstâncias irrepetíveis do filme lavajateiro, chegamos ao apoio institucional que ele recebeu. E concluímos ser óbvio que a Polícia Federal jamais concederia instalações, funcionários ou até dados sigilosos para uma produção que a criticasse. Mas achamos razoável que o faça em qualquer ocasião? Que um órgão público incentive a apologia de ações tidas como ilícitas e abusivas? Que o Estado auxilie a propaganda negativa contra um réu em plena disputa judicial? Que magistrados envolvidos no processo participem de evento que pode influenciá-lo? Que eles prestigiem um produto empresarial de inegáveis pendores político-partidários? Eis o rei peladão, passeando em carro aberto diante dos democratas embasbacados. Todos achando muito normal que juízes, promotores e delegados apareçam mascando pipoca e gargalhando diante de uma peça publicitária de cunho eleitoreiro, que exalta ilegalidades e arbítrios, que legitima um golpe parlamentar. É interessante verificar que a Lava Jato precisa desse tipo de promoção: uma farsa de aspirações hollywoodianas, pródiga em canastrices e clichês, com heróis folhetinescos e vilões caricatos. Afinal, os recursos narrativos não servem apenas para suavizar os desvios morais dos protagonistas. Servem também para criar efeitos de verossimilhança. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. https://urutaurpg.com.br/siteluis/delacao-de-palocci-e-o-dilema-do-pt/  

O desafio dos trabalhadores na conjuntura brasileira

por Elaine Tavares Passado pouco mais de um ano do golpe parlamentar/judiciário/midiático que tirou Dilma do governo, o Brasil segue um vertiginoso processo de entrega de riquezas e destruição de direitos. Uma guerra de classes, como diz o economista Nildo Ouriques, das mais violentas, na qual a proposta fundamental é aprofundar a exploração dos trabalhadores para gerar mais lucro para o capital. Na verdade, nada de novo, a não ser o desmascaramento. Ou seja, o sistema não usa mais as máscaras. Faz tudo às claras, sem medo da classe trabalhadora. Com o golpe, a face “humana” do capital se esboroa. Durante os governos de Lula e Dilma, a aposta foi na social-democracia. Uma tentativa de gerenciar a pobreza, mas sem conflito com o capital. As políticas públicas na área da educação, saúde, moradia e alimentação, ainda que utilizando pequenas fatias do orçamento, significaram muito para um contingente imenso de pessoas. Quarenta milhões saíram da ameaça da fome. Milhões de jovens sem acesso à universidade garantiram seu curso superior, milhares conseguiram casa própria e acesso à saúde. Esse legado é indiscutível. Pode-se criticar argumentando que as vagas nas universidades privadas enriqueceram os empresários da educação, que as moradias não são lá muito boas, e que garantir comida não é suficiente. Mas, para quem vivia no limbo, a melhora foi incrível. E são essas pessoas as que recebem Lula de braços abertos na caravana que corre o Brasil. Elas sabem que mudou, estão sentindo na pele. De qualquer forma, o discurso de candidato que Lula tem assumido nos lugares por onde passa não consegue sair do mesmo modelo que regulou os seus governos. “O Brasil vai melhorar”, “vamos garantir vida boa para todos”, “vamos regular a comunicação”. Nada de novo. A mesma velha práxis do “deixa que eu resolvo”. Isso sem contar as arrumações com velhos adversários, reproduzindo a mesma conciliação de classe que deu no que deu. Já sabemos como acaba. Por outro lado, a classe trabalhadora brasileira está desarmada, para usar a feliz expressão de Plínio de Arruda Sampaio Jr. Durante 15 anos tivemos um movimento sindical domesticado, movimentos sociais apaziguados, todos contando com a “boa vontade” governamental. Claro que houve exceções, mas apenas exceções. A regra foi o aplastamento das massas e a desorganização. Por isso, agora, diante dos ataques violentos do capital sobre os trabalhadores, o que se vê é a inação. “Os trabalhadores não estão apáticos. Eles querem lugar, resistir, mas estão desarmados”, diz Plínio Jr. O desarme é fruto dessa domesticação. Há uma geração inteira de trabalhadores que não viveu o período da ditadura, que não conheceu a batalha contra o neoliberalismo representado por Collor, Itamar e Fernando Henrique. E, por conta de não saber, não consegue encontrar o caminho para a resistência. Enquanto isso, os pequenos gerentes do capital, instalados no governo golpista e no Congresso Nacional vão passando o rodo, numa destruição aparentemente incontrolável. Destruição de direitos e entrega do patrimônio público. Privatização de empresas estratégicas e acumulação de riqueza sobre o corpo massacrado do trabalhador. No meio de todo esse violento processo de destruição da vida nacional, chegam as notícias que, num país sério, teriam o poder de desfazer o golpe: Ministério Público investiga e chega à conclusão de que Dilma não cometeu crime de pedalada fiscal (motivo principal para a destituição). Tribunal de Contas da União investiga e chega à conclusão de que o Conselho de Administração da Petrobras, presidido por Dilma Rousseff, não cometeu qualquer “ato de gestão irregular” no episódio da compra da refinaria de Pasadena. Ou seja: as denúncias – fruto de delação premiada – que geraram o golpe, não tem qualquer sentido. Num país sério, no qual a Justiça se pautasse pela investigação segura, e não por delações suspeitas, o impedimento de Dilma deveria ser anulado. Mas, nada acontece. As informações saem em notas pequenas nos jornalões, e a vida segue. O governo ilegítimo vai tirando direitos, privatizando empresas, bancos e até a Casa da Moeda, entregando as riquezas minerais, vegetais e humanas. Tudo como foi planejado naquele fatídico áudio do Jucá. “A gente tira a Dilma, bota o Michel e fecha acordo com o Supremo, com tudo…” Tudo incrivelmente às claras. Nas ruas, a reação teve seus momentos, mas agora estancou. E ainda que as pessoas estejam indignadas e querendo acabar com todo esse terror, essa indignação não se expressa em luta. E não é para menos. Foram anos e anos esperando que as coisas boas viessem do governo, acreditando que a conciliação de classe faria a elite abrir mão de alguma coisa para benefício das massas. Isso é impossível. Como na fábula do leão, as feras podem mudar em vários aspectos, menos nos hábitos alimentares. Assim, a classe dominante. Na primeira oportunidade de retomar o controle total do país, veio com tudo, sem pruridos. O desafio da classe trabalhadora é dar origem a novas formas de luta. Os tempos mudaram. Há que constituir também as novas armas. Isso não é coisa fácil, mas o tempo urge. Há que começar. Nesse processo faz-se necessário também compreender que é tempo perdido remendar roupa velha. O esgarçamento é incontrolável. Pois o modo de produção capitalista, esse sistema insaciável, já mostrou claramente qual é a sua proposta: exaurir o trabalhador, tirar dele toda a vida, até a última gota, na maior intensidade possível. E ainda que tente seduzir com mentiras do tipo: liberdade de ser quem se quer, possibilidade de comprar coisas com prestações a perder de vista, participar do banquete, ainda que comendo migalhas, é certo que isso não vai rolar. No capitalismo, o único lugar reservado ao trabalhador é o de explorado e ponto final. Mas, o capitalismo não é o modo de produção. Ele é um dos modos. Outros existiram e outros podem existir. Quem decide isso é a maioria, e a maioria são os trabalhadores. Logo, são os trabalhadores que têm o poder de mudar as coisas. O próprio capitalismo já gerou seu antagonista: o comunismo. Se no primeiro a propriedade é privada, no segundo,

Dos tantos Rafaéis

 por Elaine Tavares Hoje no Brasil existem quase 800 mil pessoas encarceradas, 150 mil cumprem prisão domiciliar e existem mais de 300 mil mandatos de prisão que não são cumpridos por falta de vagas no sistema penitenciário. O que ultrapassa o número de um milhão de almas. O Brasil tem a quarta maior população carcerária no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia e China.  Mais de 250 mil pessoas estão presas de maneira provisória, com seus processos ainda não julgados. Menos de 1% dos encarcerados respondem por crime de corrupção, esse mote que levou milhares às ruas com suas camisas amarelas. 46% dos apenados foram presos por crime contra o patrimônio, 28% estão encarcerados por envolvimento com drogas, apenas 13 % são crimes contra a pessoa e os negros são a maioria nos presídios: 61%. Esses números são do Ministério da Justiça e dizem respeito ao ano de 2014, portanto já devem ter aumentado. Isso leva a seguinte reflexão: a impunidade, de que tanto falam, não existe. Pelo menos não para os pobres e negros, a maioria nos presídios, no geral pagando por pequenos furtos ou o tráfico de drogas de pouca monta. Porque os figurões, os que são donos da droga, os que são os donos dos helicópteros e dos aeroportos, esses não vão parar na cadeia nunca. Eles estão nos salões e nas telas de TV curtindo a vida ou destruindo países. Rafael Braga, pobre e negro, preso em 2013 por portar um vidro de Pinho Sol durante uma manifestação está na prisão, mofando. Com ele, outros tantos, possivelmente mais de 90% da população carcerária. E olhem que levar Pinho Sol na mochila não configura crime algum. Já os ricos e bem-nascidos que matam pessoas, por estarem embriagados ou que traficam drogas, não são tocados e saem da cadeia pelos braços de mães e pais bem posicionados.  A impunidade, portanto, tem um perfil de classe. As leis são feitas pela classe dominante, logo, servem a ela. De minha parte, sou contra o encarceramento, a não ser em casos extremos. E esses são mínimos. A justiça deveria ser pedagógica. Uma boa olhada nos crimes de uma sociedade nos leva a ver que muitos desses crimes se devem ao modo como a sociedade se organiza. Por que há tanta gente pobre envolvida com o tráfico de drogas? Por que as pessoas roubam? Essas são perguntas importantes. Sendo assim, não se trata de defender cadeia para os ricos que cometem crimes. Não. Há que acabar com os ricos que gestam uma sociedade dividida, de maioria oprimida. Há que acabar com a divisão de classes e o domínio de uma sobre a outra. Construir uma sociedade sem classes. Nesse modo de produção, não haverá ricos, nem pobres, todos terão o que precisarem na justa medida. E, vejam, o comunismo é apresentado como se fosse o diabo, enquanto o capitalismo – que é o diabo – é apresentado como o melhor dos mundos. Pois é mundo que está aí e que espelha esses tristes dados. Há que inverter a lógica, construir outra forma de organizar a vida. Ainda não chegamos a isso, e talvez demore muito para alcançarmos o comunismo (comum viver). E mesmo quando chegarmos ainda haverá crimes, pois o humano precisa de tempo para transcender. De qualquer forma, acredito que 90% ou mais desse trágico sistema prisional desaparece. Eu aposto nisso, e para isso caminho. Publicado originalmente no blog Palavras Insurgentes. A nova escravidão

Ligado no dois de agosto

por Frei Betto   ― Alô, deputado, aqui fala o presidente.   ― Presidente?!   ― Sim, o Michel.   ― Como vai, excelência?   ― Felizmente bem.   ― A que devo a honra de seu telefonema?   ― É sobre a votação do dia 2 de agosto. Como o senhor sabe, sofro uma acusação improcedente. Por isso, fui absolvido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. ― Mas vossa excelência não recebeu o dono da Friboi na calada da noite nos porões do Palácio Jaburu, e não avalizou junto a ele o ex-deputado Rocha Loures como homem de sua inteira confiança?   ― Ora, como eu poderia deixar de receber quem fez generosas doações às campanhas do PMDB?   ― E o Rocha Loures, o homem da mala?   ― Não era dinheiro que havia naquela mala. Eram pizzas. O deputado comprou setenta pizzas e, por isso, preferiu transportá-las numa mala de rodinhas.   ― Mas ele saiu correndo pela rua, afobado.   ― Sim, para evitar que as pizzas esfriassem. Como é um homem de bom coração, pretendia distribuí-las para moradores de rua.   ― E em que posso lhe ser útil, excelência?   ― Como o senhor anda de emendas?   ― Ora, presidente, emendo daqui, emendo dali, e não consigo tapar o buraco de minhas promessas eleitorais.   ― De quanto anda precisando?   O deputado faz o cálculo, diz ao presidente e pergunta:   ― De onde vossa excelência vai tirar o dinheiro se está cortando gastos até de programas sociais?   ― Do aumento dos impostos, evidentemente.   ― Bem que vi este adesivo em um carro: “Encha o tanque e salve o Temer”, data venia presidente.   ― Não quero pressioná-lo, deputado. Sei que o senhor votará pela estabilidade política do país. Quero é premiá-lo. Sua atividade parlamentar é digna de meu apreço.   ― Presidente, votarei com o meu partido.   ― Com todo respeito, deputado, partido já nada significa. Veja o Jucá, já foi do PSDB, do PDS, do PFL, do PPR e agora está no PMDB. O que importa é o homem, não a agremiação.   ― Presidente, se o senhor está tão convencido de sua inocência, por que teme o julgamento do STF?   A ligação é abruptamente interrompida.   Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Elis, o meu coração e a PEC do Temer Temer, o presidente-fantasma O governo tucano de Michel Temer  

A condenação de Lula

por Frei Betto O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado, em 12 de julho, a 9 anos e 6 meses de prisão, em sentença assinada pelo juiz Sérgio Moro. Ao contrário de outros condenados em primeira instância na Operação Lava Jato, Moro evitou decretar a prisão cautelar do mais notório líder político do Brasil. Alegou que “a prudência recomenda que se aguarde o julgamento” para se evitar “certos traumas”. Entenda-se, a mobilização popular em apoio a Lula. A defesa recorrerá, em segunda instância, ao Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, sediado em Porto Alegre (RS). Segundo o presidente do tribunal, o recurso deve ser julgado até agosto do próximo ano. Caso seja condenado, Lula será preso; não poderá disputar a eleição presidencial de outubro de 2018; e ficará inelegível por 7 anos. Em pronunciamento no dia seguinte à sentença, o fundador do PT declarou “quem acha que é o fim do Lula vai quebrar a cara. Quem tem o direito de decretar o meu fim é o povo brasileiro”. E confirmou ser candidato a presidente da República em 2018, em busca de seu terceiro mandato: “Se alguém pensa que, com essa sentença, me tiraram do jogo, pode saber que eu tô no jogo”. Acrescentou ainda que só a história poderá julgá-lo. O juiz considerou existirem provas de que Lula é o legítimo proprietário de um apartamento tríplex na praia do Guarujá (SP), no qual a construtora OAS teria investido R$ 2,15 milhões em troca de benefícios obtidos em contratos com a Petrobras. Pelo julgamento imediato de Lula Lula nega que o imóvel seja de sua propriedade. Admite que sua esposa, Marisa, falecida em fevereiro deste ano, havia demonstrado a intenção de adquirir o tríplex. A compra, porém, não se efetivou porque Lula considerou a localização inadequada à sua privacidade, pois o exporia a constante assédio público. A defesa insiste que a promotoria jamais mostrou a escritura do imóvel em nome da família Lula da Silva. Portanto, a acusação é infundada. Caso o tribunal de segunda instância mantenha a sentença de Moro, Lula poderá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e, em última instância, ao Supremo Tribunal Federal. A sentença aplicada ao líder do PT não se baseia em provas, e sim na delação de dois corruptores presos pela Lava Jato: Leo Pinheiro, dono da OAS, condenado a 44 anos, dos quais 10 anos e 8 meses de reclusão no processo conexo ao de Lula, e José Adelmário Pinheiro Filho, ex-presidente da construtora. Leo Pinheiro ganhou de Moro o benefício de cumprir apenas dois anos e meio de prisão em regime fechado e pedir progressão da pena antes de ressarcir o prejuízo causado à Petrobras. Segundo a Lava Jato, a OAS pagou R$ 87 milhões em propinas para obter vantagens contratuais com a Petrobras. Desse montante, R$ 16 milhões teriam sido destinados ao PT, e R$ 3,7 milhões beneficiado diretamente Lula, sendo que R$ 2,4 milhões aplicados na aquisição e na reforma do tríplex, e R$ 1,3 milhão no armazenamento de presentes que o ex-presidente ganhou durante o exercício de seus dois mandatos. Desta última acusação Moro absolveu Lula. Por quais crimes o condenou? Na sentença de 280 páginas, dividida em 962 pontos, o juiz escreve que “pelo recebimento de vantagem indevida da OAS em decorrência de contrato com a Petrobras” e “pela ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, tríplex, e do beneficiário das reformas realizadas”. LEIA a sentença na íntegra  Segundo Moro, “o grupo OAS, dirigido pelo acusado José Adelmário Pinheiro Filho, destinou o imóvel sem cobrar o preço correspondente, e absorveu os custos da reforma, tendo presente um benefício destinado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Para decretar a condenação de Lula, que deixou o governo no início de 2011, com 87% de popularidade, o juiz escolheu o momento adequado. No mesmo dia, o parlamento aprovou a reforma trabalhista proposta pelo presidente Temer, e que retira dos trabalhadores brasileiros direitos conquistados nos últimos 70 anos, como a Justiça do Trabalho arbitrar os conflitos. Pela lei aprovada, os conflitos serão decididos por negociação direta entre patrões e empregados… No mesmo dia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados rejeitou o relatório do deputado Sérgio Zveiter (PMDB-RJ), favorável a que se investigasse a denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra Temer por corrupção passiva. Novo relator foi indicado, tendo o deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) apresentado um texto em que pede o arquivamento da denúncia de Janot. A proposição foi aprovada pela Comissão e vai ser votada em 2 de agosto pelo plenário da Câmara. Para ser aprovada, serão necessários os votos de 342 parlamentares do total de 513. No mesmo dia em que esses episódios ocorriam na CCJ, o ex-ministro Geddel Vieira Lima, homem de confiança de Temer e preso pela Lava Jato, obtinha o direito de deixar a prisão e ficar retido em casa. A sentença a Lula ofuscou o noticiário desfavorável ao governo golpista de Temer. Para a defesa de Lula, evitar a prisão do ex-presidente representou o “reconhecimento da própria fragilidade da fundamentação da sentença”, e a “prudência” para evitar “certos traumas” comprovam o teor político da condenação. “É uma sentença meramente especulativa, que despreza as provas de inocência e dá valor a um depoimento prestado pelo senhor Léo Pinheiro na condição de delator informal, sem compromisso de dizer a verdade, e com manifesta intenção de destravar seu processo judicial”, declarou o advogado Cristiano Martins. O Brasil se encontra mergulhado em profunda turbulência política. Em menos de um ano ocorreram o golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma Rousseff; a denúncia da Procuradoria Geral da República contra Temer, atual presidente; e a condenação do ex-presidente Lula. O que se destaca como peculiar é que a Lava Jato só existe graças aos governos Lula e Dilma. A corrupção foi sempre fator endêmico no Estado brasileiro, da monarquia à República. O novo é o fato de ela vir à tona e haver punição de corruptores e corrompidos. Isso graças aos

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