Zona Curva

Política

Uma luz para você entender um pouco sobre o imbróglio político em que o país está metido.

Face autoritária do neoliberalismo

Por paradoxal que pareça, a lei se tornou ferramenta do neoliberalismo para enfraquecer a democracia. O Estado de Direito vem sendo demolido por dentro, de modo a servir apenas aos interesses da elite. O tão esperado abalo do neoliberalismo, a partir da crise financeira de 2008, não ocorreu. Ao contrário, ele se fortalece com novas estratégias. O neoliberalismo é mais do que imposição de políticas de austeridade, privatização do patrimônio público, ditadura dos mercados financeiros. Ele implica uma racionalidade de abrangência mundial, que vai da economia de mercado à subjetividade das pessoas. Anula a soberania dos países aos submetê-los aos ditames do FMI, do Banco Mundial e da União Europeia. Demarca a linha divisória entre a parcela da humanidade com acesso ao consumo e a imensa multidão excluída até mesmo de direitos elementares, como alimentação, saúde e educação. O neoliberalismo já não necessita fazer concessões ao Estado de bem-estar social, pois desapareceu a ameaça comunista. Já não precisa posar de democrata. Agora, a imposição de um único modelo econômico deve se coadunar com a imposição de um único modelo político, o autoritário, de modo a favorecer a acumulação do capital e conter a insatisfação de amplos setores da população sem direito aos bens essenciais à vida digna. Os estrategistas do neoliberalismo sabem que suas políticas causam exclusão e sofrimento. Sabem também que é preciso conter a insatisfação dos excluídos, de modo a evitar a explosão que resultaria em caos político ou revolução. Assim, canalizam a miséria e a pobreza para o alívio virtual da religião, tornando-a, de fato, “ópio do povo”, capaz de aplacar a revolta e incutir espírito de sacrifício. Concentram o ressentimento e a descrença na democracia, e transformam em bodes expiatórios partidos e políticos críticos ao neoliberalismo. Fazem convergir a baixa autoestima e a atual tendência à adoção de pautas identitárias para um amplo sentimento de identidade nacional marcado pela xenofobia. Em suma, encobrem as causas dos males sociais, e recobrem seus efeitos com ideologias que, ao tornar opacas as causas, acirram os ânimos diante dos efeitos. Por isso, o neoliberalismo mostra agora a sua face mais autoritária, com a construção de muros que separam nações e etnias; a supremacia do poder executivo sobre o legislativo e o judiciário; a desinformação via redes digitais; o culto à pátria; e a ofensiva descarada contra os direitos humanos. Por outro lado, reduz impostos para os mais ricos, precariza as relações de trabalho, suprime políticas sociais, corta investimentos na educação, acelera as privatizações e considera estorvo aos interesses do capital a proteção socioambiental. Henry Giroux qualifica de “fascismo neoliberal” essa formação política caracterizada por ortodoxia econômica, militarismo, desprezo por instituições e leis, ódio aos artistas e intelectuais, repulsa ao estrangeiro pobre, desconsideração pelos direitos e pela dignidade das pessoas, e violência para com os adversários. As reformas propostas pelo novo neoliberalismo, como, no Brasil, a trabalhista e a previdenciária, tendem a extinguir as redes de proteção social: sindicatos, ONGs, movimentos populares e instituições corporativas (OAB, ABI, CNBB etc.) de defesa dos princípios democráticos. Como reagem os vencidos? Articulam as forças de oposição e se posicionam em favor de democracia? Antes fosse. De fato, os vencidos são como moscas presas no globo da lâmpada, cegos pelos encantos da sociedade de consumo. Não conseguem encontrar a saída e sofrem por estarem ali presos. Reagem ao se abster nas eleições, refugiar-se em suas bolhas digitais, dar apoio a quem vocifera em tom bélico. Toda raiva é a violência introjetada na alma. Resta aos críticos saírem de suas redomas acadêmicas para ajudar os vencidos a descobrir que possuem uma força capaz de virar o jogo e instaurar a democracia. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. http://www.zonacurva.com.br/a-verdade-sobre-a-verdade/ Pós-democracia Os carregadores de voz   O que pretendem esses manifestos?    

A verdade sobre a verdade

A primeira reação da cúpula da Lava Jato diante das reportagens do Intercept residiu em obstruir a confirmação de sua autenticidade. Embora insinuassem sofrer calúnias, as supostas vítimas evitaram meios simples e eficazes de combatê-las: disseram ter apagado os arquivos originais e pouparam o veículo de acusações que o ônus da prova submeteria à perícia. O inquérito dos hackers dificulta ainda mais o acesso à verdade. Enfiou-a num labirinto de papéis que demandam meses de verificações fajutas e inúteis, sem base comparativa possível ou desejada. As evidências ficarão ocultas, supostamente para não consumar o crime, e a versão oficial tratará de solucioná-lo usando outros materiais. Tudo isso para esconder a nulidade da condenação que impediu a vitória eleitoral de Lula. Nenhuma revelação do Intercept possui semelhantes alcance e gravidade, tampouco o mesmo potencial de suscitar efeitos práticos imediatos. Segredo de Polichinelo da cobertura noticiosa, o tema alcança perplexa unanimidade nos círculos especializados. O maior desafio aos objetivos da Lava Jato é o sucesso da estratégia de parcerias do Intercept. A veracidade das informações vazadas, inicialmente sujeita a controvérsia, passou a ser admitida de maneira oficiosa por todas as instâncias midiáticas e judiciais. O benefício da dúvida terminou sucumbindo à constatação de sua própria inverossimilhança. Esse embaraço aflige as altas cortes e setores da mídia corporativa que, aderindo inicialmente à suspeita de falsificação, comprometeram-se a repudiar as conversas caso a soubessem reais. O mote da prova ilícita espana vernizes punitivistas, mas não alivia o desgaste de fingir ignorância acerca de algo repercutido em escala planetária. Provas, afinal, provam. O STF ganhou um problema e tanto. Sabe que não poderá abraçar o outrora confortável malufismo jurídico, pois os preceitos doutrinários e republicanos que tornam as conversas abjetas são fortes e evidentes demais. Por outro lado, tratá-las como duvidosas agora reduziria o arco de atitudes do tribunal caso ele precise reagir a futuras revelações constrangedoras. Acontece que não há saída para impedir a liberdade de Lula senão normalizando-se a ética profissional de Sérgio Moro e colegas procuradores. À luz do que ficou impossível não saber, parolagens sobre autenticidade são mera apologia ao delito. Qualquer posicionamento demanda juízos acerca dos valores constitucionais e democráticos afetados pelo escândalo. Mantendo Lula preso, o STF abrilhantará a narrativa histórica do período com a explicação definitiva para o triunfo impune do arbítrio. Restarão identificados os cúmplices de Moro, as mentes e o poder que sempre faltaram à sua mediocridade intelectual e hierárquica. E mesmo a origem da institucionalização do fascismo no país ganhará um nexo bastante elucidativo. Sejam quais forem os desdobramentos do episódio, e embora eles não pareçam alvissareiros, trata-se de uma derrota inédita do Regime de Exceção. Desta vez, os fatos escaparam a seu controle. A verdade sobre o golpe eleitoral da Lava Jato vazou, continuará vazando e ficará mais repugnante a cada tentativa de contê-la. Publicado originalmente no Blog do Scalzilli. Somos todos pós-verdade?

A Amazônia e os interesses em jogo

A região amazônica foi a última a ser invadida no período colonial. Era um espaço hostil para os espanhóis e portugueses e só apareceu como um lugar viável para os não-originários quando veio o ciclo da borracha, no final do século XIX. Ou seja, quando se descobriu que da seringueira brotava uma espécie de ouro, a borracha. Os povos que lá viviam começaram então a ser destruídos, assassinados, expulsos. Para os capitalistas, assim como fora para os portugueses e espanhóis, a Amazônia só aparecia como um espaço de roubo de riqueza e ponto. Com o ciclo da borracha, a migração de gente para a região ficou intensa e nesse processo a batalha era de índios contra os seringueiros, no geral gente pobre que também buscava encontrar ali alguma forma de sobreviver. Os donos dos seringais incentivavam então as famosas correrias, que eram as expedições feitas para espantar ou exterminar os povos que viviam na floresta. O nome correria é bastante ilustrativo sobre como eram as expedições. Os homens chegavam, armados até os dentes e botavam os índios para correr. Quem ficava era passado na faca ou no tiro. Edilson Martins, no livro “Nossos índios, nossos mortos” conta que muitas vezes acontecia de os homens jogarem as crianças para o alto, aparando com a ponta do facão. Era um massacre. Naquele início do século XX, os povos originários da região da Amazônia estavam praticamente nas mesmas condições que no momento do descobrimento e o avanço dos não-índios, representando o Estado capitalista dependente e predador, era feito com muita violência, visando a exploração dos seringais. Eles sequestravam as mulheres e crianças, obrigando os homens a trabalhar na extração da borracha. Não havia preocupação com a posse da terra, apenas com os seringais. As hordas se moviam pela floresta destruindo as comunidades, eliminando o modo de vida indígena, prostituindo mulheres e dispersando os homens pelos vários campos de colheita. O processo de dizimação e violência já estava acabando com os indígenas quando finalmente o ciclo da borracha colapsou. E, conforme diz Darcy Ribeiro, foi esse colapso que, de certa forma, possibilitou a salvação dos indígenas da região. Mas, o tempo passou e o capital descobriu outras riquezas, além da borracha. A floresta era uma riqueza em si, com toda a sua biodiversidade, os rios caudalosos poderiam gerar energia, as plantas medicinais, as riquezas subterrâneas, as terras sem fim. E, sistematicamente os povos originários tiveram de enfrentar a ofensiva do mundo capitalista. Chegaram os fazendeiros, os engenheiros, as obras monumentais, as represas. E o chamado pulmão do mundo começou a minguar. Portanto, o processo de destruição é longo e vem de muito longe. É fato que no atual governo, com o agronegócio sendo o principal aliado, a situação piorou. Há o incentivo explícito por parte dos governantes para a invasão dos territórios indígenas, seja para uso da agricultura ou da mineração. E também é fato que as liberações para desmatamento aumentaram significativamente. Outro fato inconteste é o interesse das demais nações do mundo – principalmente as ricas – pela imensidão de riquezas que comporta a floresta amazônica, para além de sua importância climática.  É de longa data a utilização de organizações de caráter social ou religioso para a ocupação dos espaços, garantindo o roubo de plantas e até de sangue indígena, na chamada biopirataria. Ou seja, é o saque perpétuo, o qual vem sendo combatido de maneira quase heroica pelas comunidades indígenas e tradicionais organizadas e por algumas organizações realmente sérias. Um trabalho feito cotidianamente, sem que o mundo não-índio faça alarde. A não ser quando ocorre um massacre ou uma tragédia mais visível. Então, quando, impotentes, observamos a Amazônia arder nesse período do ano que é potencialmente perigoso e passível de queimadas, não podemos engolir determinados discursos, nem dos governantes brasileiros, nem dos líderes mundiais que estão também de olho nas riquezas. Do governo brasileiro muito menos, porque infelizmente está tomando por gente que, além de ter uma posição política proto-fascista diante da vida, é completamente desqualificada técnica e intelectualmente para lidar com as questões nacionais. É de uma estupidez abissal apontar que os incêndios foram provocados pelas ONGs, porque mesmo as que querem se apropriar das bioriquezas da região não as destruiriam. Logo, a quem interessa a terra queimada? É só pensar. Então é preciso ter em conta esses elementos que apontei. A região é um espaço de disputa. De um lado, as comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas, tradicionais, que querem viver em equilíbrio com a floresta. E do outro, o mundo capitalista, que quer extrair o máximo das riquezas, mesmo que isso significa o extermínio completo de toda a vida. É uma queda de braço que vem sendo travada há séculos. Sendo assim, há que se clamar pela Amazônia sim, principalmente nesse momento particular. Mas, há que se entender que é preciso pensar a Amazônia dentro dessa disputa entre o bem-viver e o capital. Sem isso, nosso grito se perde no vazio enquanto lá, no palco dos acontecimentos, seguirão morrendo as gentes, as árvores e os bichos, no silêncio de nossas consciências apaziguadas depois de apagado o fogo. O verdadeiro inimigo é o capital. Vamos dar combate aos seus gerentes, sem esquecer sua face e sua verdadeira intenção. http://www.zonacurva.com.br/o-agrotoxico-mata-a-gente/ Agronegócio avança sobre a Amazônia  

A luta contra o genocídio indígena

“E vocês, da sociedade dos brancos, também podem ajudar  nessa luta. Primeiro, procurando se informar mais sobre a realidade de cada povo. Compreender o povo indígena. Os brancos precisam buscar, lá no fundo do coração deles, a verdade que existe e que tentam esconder”. Aurivan dos Santos Barros, líder Truká O assassinato do cacique Emyra Wajãpi, da etnia Wajãpi, desta vez no Amapá e por milícias de garimpeiros, é a sequência brutal da tentativa sistemática de destruição do mundo indígena para o roubo de suas terras ancestrais. A questão central sempre foi e continua sendo a terra. Essa é uma história que tem seu início em 1492, quando aqui chegaram os espanhóis dando início à invasão, a qual vem provocado profundas transformações ao longo de mais de cinco séculos. Nessa linha do tempo houve momentos mais duros, outros nem tanto, mas, no geral, a proposta tem sido a da submissão dos povos originários ao conceito de identidade nacional. Aplastam-se as diferenças, a cosmovivência, o modo de vida, na invenção de um sujeito nacional, integrado, que, sabemos, nunca se constituiu de verdade. Mesmo nos tempos em que as etnias quase desapareceram (anos 1960), a chamada integração foi uma farsa. O índio integrado ao mundo capitalista (de maioria branca) sempre carregou a marca de sua identidade, vivendo sujeitado ao preconceito e a discriminação. Não há saída: se está na aldeia é um incivilizado e se vem para a “civilização” é um índio sujo. É uma via sem saída. Justamente por isso que desde os anos 1980 os povos originários estão em luta pelo território original, fortalecendo suas culturas e sua maneira de viver, apontando outros caminhos para a convivência, já que é impossível desfazer o que já foi feito nesses cinco séculos. E, nesse caminho, assomam as ideias de autonomia e de plurinacionalidade. Mas, a se considerar o sistema de produção no qual estamos todos mergulhados (índios e não-índios), que é o capitalismo, obviamente não há lugar para essa discussão. Ao 1% que domina pouco importam as lutas dos povos para seguir vivendo dentro de sua cultura. Há um fato inconteste: essa gente ocupa largas extensões de terra que estão na mira da exploração mineira, petroleira ou do plantio de grãos e pastoreio do gado. Para o capital, os povos indígenas são um atrapalho, uma pedra no sapato e, se tiver de arrancá-la a força, ele o fará. Agora, em 2019, quando o Brasil retoma com força sua cara dependente, aprofundando sua condição de mero exportador de matéria prima, o ataque aos povos indígenas tende a se aprofundar. E, com o governo federal nas mãos do latifúndio, a situação fica ainda pior. Jair Bolsonaro disse em bom som num encontro com os representantes do agronegócio: “esse governo é de vocês”. Não é sem razão que desde o primeiro mês de governo os indígenas estejam alçados em luta. Foi o primeiro movimento social a se levantar e nesses sete meses já protagonizou vários momentos de efetivo ataque, com alguns ganhos pontuais. Mas, apesar desses ganhos, a questão central segue sendo intocável: a terra. As comunidades podem ganhar uma ambulância, uma escola, um posto de saúde, mas enquanto isso jagunços armados estarão fazendo o trabalho principal que é o de expulsar as comunidades da terra. Abrindo espaço para o capital. Jair Bolsonaro acabou de indicar o filho para embaixador nos Estados Unidos justamente porque quer abrir caminho para as empresas que quiserem minerar no Brasil. Tudo está dito, claramente, sem véus. É por isso que os ataques às comunidades vão continuar e com mais força. Nos cantões mais distantes, onde as milícias e jagunços puderem atuar com mais liberdade, a violência vai ser desatada, corporal. E onde os indígenas estiverem mais protegidos e organizados atuará o terrorismo de estado, via ministérios ou via judiciário. Todos os espaços onde houver possibilidade de exploração de minério ou da agricultura serão tomados. Os povos indígenas farão o que sempre fizeram. Resistirão na luta, ainda que as forças sejam tremendamente desiguais. E é aí que devem entrar os demais trabalhadores não- índios. Há que se aliar aos indígenas na luta contra o capital. Sim, porque essa batalha é contra o sistema capitalista de produção, o que envolve também os trabalhadores sistematicamente explorados. No campo, o capital mata índios e sem-terra, visando tomar o território. E na cidade, vai retirando direitos, aumentando o tempo de trabalho, destruindo as conquistas sociais. É uma guerra de classe na qual estão todos envolvidos. Infelizmente, pouco se vê da solidariedade concreta nas entidades dos trabalhadores. Não há ação das Centrais sindicais, dos sindicatos, dos movimentos ligados a outras lutas específicas, não há nada. O que há é a indignação individual expressa nas redes sociais cujo resultado é zero. Desgraçadamente os indígenas terão de retomar a velha estratégia de buscar apoio fora do país, nas entidades internacionais, o que só nos empobrece ainda mais como povo, incapaz de realizar a aliança necessária para proteger os verdadeiros donos desse território. É fato que há comunidades indígenas integradas ao sistema e que apoiam as intenções do governo, acreditando que poderão se beneficiar com a cara do Brasil/Fazendinha. A ministra da agricultura e o ministro do meio ambiente já propagandearam sobre a terra indígena Utiariti, que fica no noroeste do Mato Grosso, uma das regiões mais cobiçadas do país por sua fertilidade. Nessa aldeia da etnia Pareci, os indígenas arrendam 18 mil hectares de terra a produtores não-índios que plantam soja transgênica e pagam uma porcentagem da safra para a aldeia. Justamente o modelo que o governo Bolsonaro quer implantar. Ainda que seja uma raridade na realidade indígena nacional, a publicidade que se faz dessa terra, à exaustão,  embota o pensamento do senso-comum que adere ao projeto, acreditando que índio não trabalha. Assim, o governo amplia o preconceito e os fazendeiros se apoderam das terras, pagando migalhas. A mesma proposta – de arrendamento de terra – o governo está apresentando para projetos de mineração. As mineradoras explorarão o terreno mediante um aluguel e os indígenas ainda poderão servir

Previdência por um fio

O governo de Jair Bolsonaro está conseguindo colocar em prática todas as propostas feitas em campanha eleitoral. Estava muito claro no seu programa de governo que a intenção era vender o país, destruir todos os ganhos dos trabalhadores e governar para o latifúndio. Foi o que prometeu e é o que vai cumprindo praticamente sem qualquer reação da oposição, a não ser a protocolar, com discursos inflamados no Congresso, sem conexão com a vida real. A maior de todas as perdas para os trabalhadores é a chamada Reforma da Previdência que aumenta a idade mínima, aumenta o tempo de contribuição e diminui o recurso a ser recebido. Um verdadeiro massacre para a vida de quem conseguir chegar à aposentadoria, visto que será necessário trabalhar 40 anos ininterruptos para pleitear o benefício. Ontem (09.07) a Câmara dos Deputados realizou a primeira sessão plenária para a discussão do projeto e, apesar das tentativas de obstrução da oposição, o processo seguiu tranquilo, sem grandes problemas. O debate está centrado na tentativa da oposição em “melhorar” a proposta, como se isso fosse algo possível. De qualquer forma a correlação de forças no plenário deixa bem claro que a aprovação do projeto é praticamente certa. Pelo menos 331 votos já estão garantidos, sendo que são necessários 308 para que a reforma passe. Agora de manhã a sessão continua e tudo deve ser definido com folga. Outra sessão deverá ser realizada, pois são necessárias duas delas para aprovação definitiva. Depois, a pauta segue para o Senado. Para o governo será uma grande vitória visto que essa reforma é a sua menina dos olhos. Ela desonera os patrões e enche as burras dos bancos e dos fundos de pensão. Os prejuízos são todos dos trabalhadores que, surpreendentemente, estão paralisados. Tanto que as Centrais Sindicais sequer chamaram manifestação para os dias de votação. O máximo que foi feito foi uma pressão junto aos deputados nos aeroportos e abaixo-assinados para que votassem contra a reforma. Obviamente uma estratégia absolutamente patética. Enquanto os sindicalistas buscavam acertar uma saída via os deputados, com pequenos grupos e faixas de protesto nos seus estados de origem, o governo federal liberou quase um bilhão de reais em emendas parlamentares, garantindo verbas aos deputados que as distribuirão conforme seus interesses eleitorais.  Não precisa ser muito esperto para saber qual ação renderá frutos. A derrota dos trabalhadores é certa. A maior central de trabalhadores da América Latina, a CUT, na sua página na internet orienta os trabalhadores a enviarem mensagens pelo whatsapp para os deputados, bem como ocupar o twitter e o facebook dos parlamentares com mensagens de protesto. Ou seja, a ação é meramente virtual e totalmente desprovida de sentido, pois podem ser olimpicamente ignoradas pelos parlamentares. A Força Sindical, outra central de trabalhadores, sequer indica ação virtual. Apenas explica quais serão as perdas e centra seu debate nas regras de transição, praticamente aceitando o processo. A Intersindical também discute na sua página as perdas dos trabalhadores, mas não articula mobilizações. A Conlutas está chamando manifestações para o dia 12, com assembleias nos estados e ato em Brasília, mas ao que parece está sozinha nessa proposta, pois não há articulação com as demais centrais. Ou seja, os trabalhadores estão à deriva. Nas redes sociais, individualmente, os trabalhadores expõem sua indignação e pedem ações coletivas, pois sabem muito bem que uma voz, sozinha, não tem força alguma. Apenas a pressão das ruas pode mudar o rumo da prosa no Congresso. De qualquer forma, os gritos solitários são absolutamente impotentes diante do dramático quadro que se desenha para o futuro. A luta tem de ser real, concreta. Mas, o que se vê é o abandono. Inexoravelmente a reforma vai passar. E será uma derrota gigantesca para todos nós. Previdência é fichinha, o inimigo é o capitalismo O ataque agora é contra os trabalhadores públicos  

O agrotóxico mata a gente

Agrotóxicos no Brasil – Uma pessoa é literalmente o que come, já dizia o velho Bataclan, atleta negro e figura lendária em Porto Alegre que desde os anos 1950 pregava a necessidade de uma alimentação saudável, baseada em legumes e hortaliças. Seu lema era “não comemos cadáveres”. Chegou a andar pelo estado fazendo propaganda da alimentação natural, dando cursos e palestras. Uma das coisas engraçadas que ele dizia era que seu cocô era perfumado, porque não tinha nele nenhum vestígio de carne putrefata. E nos desafiava a mudar totalmente os hábitos. Bataclan viveu até 1990, mas se hoje estivesse ainda na sua luta pela vida vegetariana, imagino que teria muita dificuldade em convencer as pessoas, já que alimento saudável é coisa para muito pouca gente. Os que não têm recursos para garantir uma comida verdadeiramente orgânica – a maioria – estão num beco sem saída. Se a opção for comer carne, entopem-se de gordura ruim, hormônios e toxinas. Se decidirem ser vegetarianos estarão ingerindo quilos e quilos de agrotóxicos, cancerígenos e provocadores de outras tantas doenças. Cultivar a própria comida não é opção para a maioria também e mesmo aqueles que têm alguma terra e conseguem criar animais e plantar legumes ou hortaliças acabam entrando na cadeia do veneno, seja pelo ar ou pela água. E ainda assim é uma saída individual. O Brasil tem sido desde há tempos um espaço privilegiado para as empresas de veneno. E , agora, no governo de Jair Bolsonaro, a coisa tem piorado bastante. A tal ponto que nos primeiro seis meses de governo já foram autorizados 239 novos venenos para uso nas lavouras. O argumento utilizado pelo Ministério da Agricultura é de que boa parte das substâncias autorizadas seguem fórmulas que já existem no mercado. Apenas uma delas nunca havia sido introduzida no Brasil. Mas, mesmo assim, as fórmulas dos agrotóxicos são cheias de venenos e muitas dessas fórmulas foram totalmente banidas na União Europeia, por exemplo. O motivo: são muito perigosos para o meio ambiente, logo, para as pessoas também. A ministra Tereza Cristina, que é representante do latifúndio, diz que os agrotóxicos não estavam sendo liberados nos governos anteriores por “motivos ideológicos” e que agora, com os novos venenos vai ser possível aumentar a concorrência e baratear o custo da comida. Então veja bem: a comida ficará mais barata, mas terá mais agrotóxico. Logo, haverá mais doenças. Isso é bom para quem? Em discurso na FAO, a ministra defendeu a democratização do acesso ao alimento para que se acabe a forme no mundo. Mas, é fato que essa tal democratização não pode ser a produção de comida envenenada. A menos que esse seja o projeto, matar a população ou então engordar as receitas da indústria farmacêutica, que enche as burras com tanta doença nova no pedaço. É fato também que os agrotóxicos permitem maior produtividade e também garantem uma aparência bonita aos produtos. Mas, quem de nós já não se surpreendeu com a aparência e o gosto de plástico de uma alface verdinha demais para ser real? O resultado da ação dos agrotóxicos na vida de todos nós é algo que só vai aparecer em longo prazo. O aumento dos casos de câncer, por exemplo, é uma consequência direta da alimentação contaminada, seja ela vegetariana ou não, afinal os animais são alimentados com ração, e a ração é feita com produto que consumiu muito agrotóxico. Não há escapatória. Nesse país perverso, no qual para que pouco mais de mil grandes proprietários de terra possam ter lucros astronômicos, milhões tenham de ser contaminados, estamos todos aprisionados.  E, mesmo que só comêssemos folhas e legumes e nosso cocô fosse perfumado, tal como queria Bataclan, ainda assim seguiríamos na trilha da morte. Uma triste morte, envenenados. Irremediavelmente envenenados. Agrotóxicos: Cuidado com o que você come

A Lava Jato produziu o governo Bolsonaro

Os antigos defensores da Lava Jato, que festejaram quando a prisão de Lula impediu sua vitória eleitoral, reagem com perplexidade às estultices do governo Jair Bolsonaro. Ignorando a óbvia relação causal dos fenômenos, fingem que o jabuti subiu na árvore sozinho, como se a tragédia anunciada fosse um mero acidente de percurso na Cruzada Anticorrupção. É fácil notar que a Lava jato enriquece delatores, advogados e multinacionais estrangeiras. Já considerá-la benéfica para o povo que a financia depende do repertório de valores de cada um. Se derrotar o lulismo compensa quaisquer sacrifícios, colapsos e prejuízos, maravilha, deu certo. Se nada justifica eleger milicianos e dementes obscurantistas, a conta não fecha. O meio-termo, usado por muitos para fugir do dilema, disfarça a escolha pela primeira opção. Um dos apelos do imaginário fascista reside justamente em prender (e matar) bandidos. Não é outra a origem do discurso de que a corrupção supera negativamente a desigualdade social, a incompetência administrativa e o racismo institucionalizado. Ou o próprio fascismo. E precificar os lados da balança não ajuda a equilibrá-la. Quantas fortunas recuperadas pagam a destruição da universidade pública, da cultura, dos direitos individuais? Quantos larápios aposentados ou irrelevantes compensam a inelegibilidade de um candidato favorito a presidente da República, o único capaz de impedir a escalada reacionária? A agenda saneadora jamais precisaria da Lava Jato e do resultado eleitoral que ela gestou. As condenações de burocratas e políticos metidos em esquemas antigos e notórios seriam resolvidas há décadas, sem rótulos espalhafatosos, desde que policiais, procuradores e juízes cumprissem suas prerrogativas básicas. Todos esses casos dispensariam os arbítrios aplicados a Lula em nome da impunidade alheia. Só a excepcionalidade atingiria o petista. Nisso a Lava Jato, porque ideológica, foi eficaz: partidarizou a constitucionalidade, tornando o antipetismo um alento moral para a naturalização do arbítrio. Nada mais explica o silêncio das cortes superiores diante dos métodos aplicados a Lula, cheios de vícios primários, que teriam derretido qualquer processo “comum”. O fato de não criar precedentes, mas exceções pontuais irrepetíveis, mostra o caráter deliberado e sistemático dessa covardia. Basta resumir a trajetória de Sérgio Moro para sabermos que não houve mera coincidência entre as suas atividades e a ascensão fascista. O juiz vazou grampos ilegais para derrubar um governo, condenou por “crime indeterminado” o candidato do mesmo partido, manteve-o incomunicável na disputa eleitoral, ajudou a campanha do seu maior adversário e se tornou ministro da chapa vencedora. A de Bolsonaro, que lhe prometeu uma vaga no STF. lava Esse pragmatismo oportunista só faz sentido como estratégia de poder. Não há justificativa técnica para encenações midiáticas e vazamentos de dados sigilosos. E é ilustrativo o gosto contraditório pela publicidade numa operação que resguarda seus próprios segredos tão bem, inclusive negando às defesas o acesso a documentos dos inquéritos. A evidência final de que a Lava Jato pariu o monstro está na afinidade ética de ambos. O recurso de Moro ao espetáculo obscurantista e a manobras clandestinas sempre que algo ameaça seus interesses é típico do governo que o abriga. As pressões de militares sobre o STF na campanha e a desobediência às ordens de soltura de Lula têm a mesma essência. Refém da desgraça bolsonariana, incapaz de sobreviver a uma CPI bem feita, a Lava Jato virou parte do sistema viciado que prometia destruir. É impossível separar cruzados judiciais e administrativos, pois o elo populista que os une também lhes confere sua única fantasia de legitimidade. Eles dependem do mesmo contingente raivoso e vingativo. A normalização do país exige, portanto, que todos os articuladores do golpe que tirou Lula da disputa presidencial respondam juntos pelo desastre resultante. Permitir que os indignados tardios reciclem a agenda salvacionista, quiçá em torno do próprio Moro, seria um aval para novas aventuras tenebrosas da “gente de bem” que o idolatra. Os arrependidos de hoje sabiam, desde o início, aquilo que a Lava Jato preparava. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. O golpe preventivo contra Lula

Por que o ódio a Jesus?

No sábado da semana que passou, fui abordado de modo abusivo, insistente, diante de sinal de trânsito. Um grupo de evangélicas me incomodou com a exigência de eu receber um panfleto da sua igreja. Mas de um modo tão antipático, que me deixou em dúvida se aceitaria o impresso Em condições normais, eu não vacilaria. Leitor que sou da Bíblia, tenho curiosidade em saber quais versículos são distribuídos para a doutrinação de pessoas. No entanto, a forma como me empurravam o folheto, que se tivesse cola ficaria pendurado em minha mão, me fez recusar em silêncio e atravessar a rua. Para quê? Ouvi gritos: – Jesus te ama!!! Então respondi, num impulso: – Eu odeio Jesus! E já na outra margem, pude ouvir: – Amém. Aleluia! Mas tanto o Aleluia quanto o “Jesus te ama” foram ditos com voz de raiva, de quem roga uma praga. Acredito mesmo que se a frase evangélica tivesse poder concreto, faria acionar um motorista louco sobre mim. De tanto amor à minha morte e salvação. Já depois, ao tomar uma cerveja, o desejo das irmãs fazia eco. Eu me perguntava: será que a maldição vai se cumprir já? E mais grave, me pergunto agora: por que eu, tão religioso na infância, amante das histórias e forma do Velho Testamento, simpatizante da vida de Cristo, como pude falar na rua do bairro onde moro: Eu odeio Jesus? É claro que nisso há razões subjetivas, que vêm também como uma libertação. Mas não sou louco de me abandonar em público à expressão de pensamentos mais íntimos. Não escrevo literatura em voz alta. A razão é objetiva, social. Ela vem da organização política que o Brasil sofre hoje, em que certas igrejas evangélicas apoiam o fascismo e o atraso de Bolsonaro. A razão vem do quanto evangélicos infestam o Congresso, a mídia, os bairros populares, com a sua pregação de atraso, de raiva contra a ciência e as artes. Se essas igrejas são Jesus, não pode haver paz entre os amantes da humanidade e evangélicos. Há pouco, num acréscimo às chamadas razões objetivas, recebi a notícia de que milhares de pessoas participaram de ato evangélico em São Paulo. E pude ler: “Nas imediações, um vendedor de camisetas colocou um totem com uma foto em tamanho real de Bolsonaro com a faixa de presidente. Participantes tiraram fotos —alguns faziam gesto de arma com os braços, outros faziam um coração com as mãos. Declarou um empresário: ‘é importante Bolsonaro vir para esta marcha e mostrar que Deus é quem comanda o governo dele’.” Para esses evangélicos, Cristo encarna o próprio anticristo, na medida em que nega o amor universal e se mistura aos perseguidores, na pior companhia e cia. Jesus entrou para a direita. Por isso, não perguntem mais por que um homem, qualquer homem de formação cristã, fala: eu odeio Jesus. Capitalismo é religião? Lógica do poder As mil mortes de Marielle  

O que é marxismo cultural?

A cultura não é neutra. É roupa que veste os fatos. Os fatos são fatos, e não se pode negá-los, exceto se você ostenta a suprema toga. Pode-se, porém, ressignificá-los. Ninguém nega que os militares derrubaram o governo democrático de João Goulart, em 1964. É um fato. Contudo, varia a hermenêutica. Para uns, foi golpe; para outros, simples movimento, contrarrevolução ou intervenção salvífica de Nossa Senhora Aparecida, invocada pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade, para livrar o Brasil da iminente ameaça comunista. O “marxismo cultural” dissemina a versão de que se tratou de um golpe cívico-militar, e ainda insulta a imagem de oficiais das Forças Armadas e agentes policiais aos acusá-los de torturadores e assassinos. Outro fato inquestionável é a existência do planeta Terra, no qual vivemos. No entanto, há quem afirme ser ele redondo, o que teria sido constatado pelo grego Eratóstenes no século III a.C. Contudo, há controvérsias. Para os adeptos do terraplanismo ele é plano, e há uma muralha de gelo nas suas bordas, o que impede o esvaziamento dos oceanos. E acima de nossas cabeças paira o domo com o Sol e a Lua. Porém, a Nasa gasta bilhões de dólares para nutrir a farsa globalista de que a Terra é redonda. No século XVI, o polaco Nicolau Copérnico concordou que a Terra é redonda, e ainda acrescentou que, integrada a um colar de planetas, ela gira em torno do Sol. O leitor certamente se pergunta: como o “marxismo cultural” influi nessa questão? Aparentemente trata-se apenas de uma divergência astronômica. Só aparentemente. O astrônomo polonês anteviu a tese do educador Paulo Freire de que mudança de lugar social tende a modificar o lugar epistêmico. Copérnico se deslocou virtualmente da Terra para o Sol e, dali, proclamou que o nosso planeta desenvolve uma dança sideral em volta do Sol. E, como se sabe, Paulo Freire era um cristão-marxista. O “marxismo cultural” é capcioso, sutil, subliminar. Não reside apenas nas ideias de um professor ou em livros didáticos. Está na cor vermelha de uma camisa, no cabelo afro de uma aluna, nos trejeitos efeminados de um homossexual, até mesmo na equivocada versão de que o nazismo teria sido um movimento da extrema-direita. O nazismo era, sim, um movimento de esquerda chamado nacional-socialismo. Foi derrotado pelo exército soviético para que Hitler, caso sobrevivesse, não fizesse sombra a Stalin. Outro efeito político do “marxismo cultural” foi o fascismo. Sabem por que Mussolini tinha o prenome de Benito? Porque seu pai, Alessandro, fervoroso socialista, quis homenagear o revolucionário mexicano Benito Juárez. Mussolini contatou Lenin na Suíça, em 1903. E em 1910 fundou, na Itália, o jornal “Luta de classes”. E dirigiu o jornal do Partido Socialista Italiano, em cuja redação trabalhou com o supremo mentor do “marxismo cultural”, Antonio Gramsci. Uma das áreas preferidas do marxismo cultural é a das estatísticas. Todos sabem que não há fome no Brasil, pois, como observou a ministra, há suficientes mangas caídas nas ruas. Se não são mangas, são goiabas. No entanto, órgãos do governo, como o IBGE, ou globalistas, como a ONU, insistem em anunciar que 52 milhões de brasileiros vivem na miséria. Ou que há 13,1 milhões de desempregados, quando todos sabem que toda a população trabalha, seja catando o que comer em latas de lixo, seja na árdua tarefa de planejar um assalto a banco. Para integrar o novo governo do Brasil não é necessário competência. Importa estar isento de qualquer influência do “marxismo cultural”. E fazer de conta que não tem ideologia. Essa vigilância quanto a vírus nocivos à nossa cultura deve ser exercida com lupa de caçar piolho em cabeça de pulga. Só assim teremos um país livre de influência comunista e purificado da sutil inoculação de ideias que contrariam o único poder capaz de nos garantir quando a verdade é mentira, e quando a mentira é verdade. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Mais vendidos na categoria Política, Filosofia e Ciências Sociais O que quer dizer populismo?  

Lógica do poder

Uma observação de Voltaire (1694-1778) ressalta por que tantas pessoas emitem ofensas nas redes digitais e, assim, revelam mais a respeito do próprio caráter do que do perfil de quem é desrespeitado. “Ninguém se envergonha do que faz em conjunto”, escreveu em “Deus e os homens”. Isso explica a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito, como bem demonstra o filme “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2019. Muitos de nós jamais ofenderíamos pessoalmente um interlocutor com injúrias e palavrões. No entanto, há quem seja capaz de replicar nas redes digitais ofensas a inúmeras pessoas, sem sequer se dar ao trabalho de apurar se a informação procede. Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento, atributo que lhe permite o exercício da liberdade. Há, contudo, quem prefira abdicar desse direito de optar livremente. Prefere deixar que as decisões sejam tomadas pelo líder, guru ou mentor do grupo social com a qual a pessoa se identifica. Opta pela “servidão voluntária”, na expressão de La Boétie (1530-1563). E todos que não comungam o seu credo são considerados inimigos, hereges ou traidores, e devem ser varridos da face da Terra. Essa submissão de si à vontade do outro ocorre em partidos políticos, empresas, associações e, sobretudo, em segmentos religiosos. No caso de Igrejas, a dominação ideológica é legitimada pela suposta vontade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, difunde-se uma perigosa teodiceia pela qual tudo se explica pela lógica divina, ainda que a humana não consiga digeri-la. Se há uma catástrofe como a de Brumadinho, se estou desempregado, se perco um filho atingido por bala “perdida”, não devo protestar ou lamentar. Deus tinha algo em mente para permitir que tais desgraças acontecessem. Assim a teodiceia se transforma em panaceia. É o recurso da apatia como anestesia da consciência. O exemplo paradigmático é o extermínio das vítimas do nazismo. A ordem genocida não saía da cabeça de um tresloucado, e sim de quem tinha plena (e tranquila) consciência do que fazia, como demonstrou Hannah Arendt. A ordem inicial se desdobrava em sequência. Um dirigia o caminhão até o alojamento dos presos; outro os encaminhava ao veículo; outro ordenava a se despirem e distribuía toalhas e sabão; outro apertava o botão vermelho; e, por fim, um grupo retirava os corpos da câmara de gás sem a menor ideia por que foram mortos. Processo confirmado pela descoberta, em 1980, dos relatos escritos pelo grego Marcel Nadjari e guardados no interior de uma garrafa térmica enterrada no solo de Auschwitz, onde ele, prisioneiro, fazia parte do Sonderkommando, a equipe que retirava os cadáveres das câmaras de gás. Isso se repete hoje em instituições que controlam o mercado financeiro mundial, como o FMI e o Banco Mundial. Ao propor ajustes fiscais, austeridade, teto de gastos a países periféricos, seus oráculos não são movidos por um sentimento de maldade com os povos que terão sua situação de pobreza agravada . Eles seguem a lógica do sistema: esses países tomaram dinheiro emprestado de credores nacionais e internacionais e, agora, precisam honrar suas dívidas. Ainda que isso signifique aumento da mortalidade infantil e do desemprego. Esta é a lógica do poder, que nem sempre leva em conta os direitos dos subalternos. Isso vale para os casos de feminicídio, nos quais o homem agride a mulher; dos neonazistas que odeiam negros e judeus; dos internautas que vociferaram porque a Justiça permitiu que Lula, prisioneiro, comparecesse ao sepultamento do neto. Como frisou Bachelard (1884-1962), “quanta amargura há no coração de um ser que a doçura corrói”. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Não sirva e encontre a liberdade, ensinou La Boétie

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