Zona Curva

50 anos do golpe militar

Presos políticos no divã

A luta contra o medo e a superação de traumas psíquicos causados pelas torturas e prisões no período do regime militar foram a tônica do evento Conversas Públicas da Clínica do Testemunho, semana passada, no Instituto Sedes Sapientiae. Parceria do Instituto, que há mais de 35 anos cuida da saúde mental dos paulistanos, com a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, a clínica atenderá todos os anistiados políticos afetados direta ou indiretamente pela violência do Estado. Com o colaboração de outras instituições, o projeto pretende ajudar até 700 pessoas nos próximos dois anos nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife, segundo o blog do Ministério. Dois relatos mostraram como o medo ainda perturba às vítimas do regime de exceção, que governou o país de 1964 a 1985 (inexplicavelmente, a comissão da anistia retroage sobre os traumas dos perseguidos políticos entre 1946 a 1964 também). A ex-prisioneira da ditadura militar e integrante da comissão de anistia Rita Sipahi (integrante da mesa) contou que uma colega militante política escreveu texto teatral sobre as agruras do cárcere já na vigência do regime democrático e teve medo de assinar o texto com medo de nova perseguição dos torturadores. Em outro depoimento, Marta Nehring, integrante da mesa e que teve o pai assassinado no período, disse que durante muito tempo achou que era normal acordar, almoçar e dormir com medo. Um belo dia, Marta percebeu que a vida não precisava ser assim e buscou auxílio psicológico. Ao lado de Maria Oliveira, Marta é diretora do filme 15 filhos (1996), em que filhos de presos políticos narram suas histórias. Veja em:   Outros dois depoimentos também emocionaram o público, o da argentina Maria Cristina Ocariz, professora do Instituto, e de Ivan Seixas, que narrou as agruras que passou nas mãos do regime. Capturado com apenas 16 anos pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Seixas ficou preso por 6 anos. Ele e seu pai eram militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional). Seu pai foi assassinado, acusado de executar Henning Albert Boilensen. Segundo ele, “Boilensen era uma das tetas que mantinha financeiramente o aparelho repressor”. Formada por 90% de mulheres, a plateia que lotou o auditório do Sedes Sapientiae chegou a ocupar a escadaria do local. As demoradas salvas de palmas indicam que os relatos ainda emocionam. Próximo ao estacionamento, ouvi de uma senhora entendida nos meandros de Freud e companhia, “isso tudo é muito triste, até chorei”. Serviço: Para participar, os interessados podem se inscrever até o dia 30 de abril pelo email clinicas.testemunho@mj.gov.br

E se não existissem as aulas de Educação, Moral e Cívica

Nos início dos anos 80, o adolescente classe média que não estava diretamente ligado ao combate ao regime de exceção que os militares nos impuseram por 21 anos, percebia algo errado quando ia assistir ao seu programa favorito e era avisado que o mesmo tinha sido liberado por uma tal de censura federal. Para quem não se lembra: Noutro dia pela manhã, entre as aulas do colegial, o estudante estranhava os livros recheados de bandeiras, símbolos pátrios e palavras de ordem daquelas duas matérias de nome pomposo: Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Ele não sabia que ambas foram impostas por um decreto lei a partir de 1969 em substituição às aulas de Filosofia e Sociologia, consideradas subversivas pelo regime. Ao assistir ao documentário O dia que durou 21 anos, imagino como teria sido diferente o destino brasileiro sem a censura federal e o OSPB. Como viveríamos hoje se os milhares presentes no histórico comício de Jango na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que exigiam mudanças na estrutura do Estado brasileiro, tivessem suas demandas atendidas? E, se, a Reforma Agrária tivesse sido feita no início dos anos 60? Com respostas não tão fáceis, recorro à máxima de um folclórico comentarista de futebol que sempre dizia que no esporte bretão o ‘se’ não entra em campo, na política, também não. Leia mais sobre o Comício de Jango na Central do Brasil O filme de Camilo Tavares, filho do jornalista Flávio Tavares (um dos 15 presos trocados pelo embaixador norte-americano Charles Elbrick em sequestro de 1969), poderia ser adotado nos colégios para elucidar o adolescente de hoje sobre como se deu o golpe militar de 1964. O forte envolvimento do governo Lyndon Johnson no golpe militar foi provocado em grande parte ao medo patológico do perigo vermelho por parte do governo dos Estados Unidos e da possibilidade do surgimento de uma revolução semelhante à cubana (1959) na América do Sul. No filme, John Kennedy, que foi assassinado em 22 de novembro de 1963, poucos meses antes do golpe, discursa no sentido de que tudo seria feito para impedir que os aliados do governo norte-americano se aproximassem do comunismo. Detalhe: Jango nunca foi comunista. Em conversa do embaixador americano Lincoln Gordon, um dos artífices do golpe de 64, e o presidente Kennedy, antecessor de Johnson, Gordon alerta que é melhor dar um basta em Jango já que ele pode ser um novo “ditador populista como Perón”. Os áudios originais das conversas entre a alta cúpula da Casa Branca e, principalmente, Gordon, e os telegramas entre a embaixada ianque e a Casa Branca, presentes no documentário, são testemunhos históricos irrefutáveis da ingerência dos Estados Unidos na política interna brasileira. Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em fortalecer a espinha militar. É preciso deixar claro, porém com discrição, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique claro o motivo. (Lincoln Gordon) Em 20 de março de 1964, Johson autorizara a formação de uma força naval para intervir no Brasil. A decisão foi tomada em reunião na Casa Branca e contou com a presença de Gordon e a cúpula do Departamento de Defesa. Assista ao trailer do filme: O mentiroso discurso pela democracia e liberdade de Kennedy (sensação déjà vu de ter ouvido o mesmo na boca de Bush, pai e filho, Ronald Reagan…) justificou a criação de institutos de pesquisa pelos Estados Unidos como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) para o financiamento das campanhas de deputados federais e estaduais e de até 8 candidatos a governador. O professor Peter Kornbluh explica que essa é a política “feijão com arroz da CIA para desestabilizar governos”. Os vídeos produzidos pelos institutos e exibidos em cinemas e empresas criaram o pânico que levou às senhoras da Tijuca e do Catete a lotar as ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em oração contra Jango e Brizola. A marcha deu coragem ao general Mourão Filho, que reuniu uma pequena tropa e resolveu antecipar o golpe. O cômico depoimento da filha de Mourão conta que seu pai tomou um pito de Castelo Branco pela pressa. Mourão não esmoreceu e foi entregar o golpe a Costa e Silva, que segundo ela, “estava dormindo, de cuecas”. Segundo presidente do regime militar, Costa e Silva deslumbra-se em cena do filme ao ser recebido na Casa Branca. De certa forma, somos um país mais moderno ao menos pelo fato de não convivermos mais com figuras dantescas como Costa e Silva no coração do poder. Políticos lamentáveis como Jair Bolsonaro e Coronel Telhada infelizmente são eleitos, mas são mantidos bem distantes dos centros decisórios de nossa política. Hoje, após mais de uma década dos fatos narrados no documentário de Tavares, a história deve ser contada com detalhes às novas gerações para que estudantes não tenham que aprender EMC, somente o E= mc². (texto atualizado em 31 de março de 2015)   O grito da Passeata dos Cem Mil contra a ditadura militar

As atrocidades da tortura na ditadura militar

O realismo do documentário Brazil: A Report on Torture (1971) nos relembra dos atos de barbárie cometidos pela ditadura. Os métodos violentos utilizados pela tortura na ditadura militar não tinham limites. Realizado pelo jornalista americano Saul Landau em parceria com o diretor de fotografia Haskell Wexler, o filme é composto de uma sequência de relatos e simulações das sessões de tortura realizadas pelas próprias vítimas, exilados políticos que viviam no Chile. O grupo de prisioneiros do regime de exceção libertado em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher havia chegado a Santiago do Chile quando conheceram Landau, que aguardava na cidade sua entrevista com o presidente Salvador Allende. Entre outros, o documentário entrevista Frei Tito, na época com 25 anos. O religioso da ordem dominicana foi sequestrado em 1969 no convento em que vivia e levado ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), onde foi torturado por 3 dias seguidos. Tito suicidou-se em 1974 na França. Outra protagonista do documentário, que também suicidou-se, em 1976 na Alemanha, é a estudante de medicina Maria Auxiliadora Lara Barcelos, que descreve em meio a risos nervosos os intensos choques que sofreu nos seios e na vagina. A brutalidade da tortura do regime militar não tinha limites. O advogado de defesa de alguns militantes de esquerda, Antonio Expedito Pereira, de 40 anos, um dos mais velhos do grupo, narra que sua filha apanhou de torturadores. Sua mulher também foi seviciada para forçar a quebra de sigilo de Pereira sobre os depoimentos de seus clientes. As vítimas citam vários nomes dos covardes agentes da ditadura. Por onde andam esses sádicos? Garanto que muitos vivem como cidadãos comuns tranquilamente gozando suas aposentadorias. http://www.zonacurva.com.br/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/  

Fantasmas à solta

            Sempre passo por um Uno cinza estacionado próximo à minha casa. No banco traseiro, folhetos com fotos de paradas militares, jornalecos com frases nacionalistas e bandeiras do Brasil. Outro dia, me assustei com um livro no banco traseiro, na capa, uma foto tosca do ex-presidente Geisel e o título: “A verdade sobre Ernesto Geisel”.              Fui comprar pão e defronte à casa, um senhor de uns 70 e alguns anos com esguicho na mão placidamente a molhar suas plantinhas. Blasfemei em pensamento: “torturador, milico desgraçado, deve ter aprontado todas durante a ditadura e agora aí como se nada tivesse acontecido”.             Pensei em denunciá-lo ao Levante Popular da Juventude para que recebesse o devido esculacho, mas odeio injustiças. E se ele for apenas um senhorzinho nacionalista em busca de uma ocupação na aposentadoria.             O Levante encontra a morada de agentes do regime militar e grita aos quatro ventos que naquele endereço habita um criminoso. Foi isso que o Levante fez com o coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi reconhecido pela presidenta Dilma Rousseff como torturador da Operação Bandeirante, no município do Guarujá, litoral de São Paulo. (saiba mais)             O reacionário de plantão pode me acusar de revanchista. Mas não acho certo um torturador comprar morangos de Atibaia na feira aos domingos numa buena. Cuidado, aquele seu vizinho inofensivo de quarta idade pode ser um sádico torturador. Se for, devia puxar, no mínimo, uns meses em cana comendo rango azedo.               O argumento de que os dois lados cometeram crimes e que os movimentos que lutaram contra o regime assaltaram bancos e infringiram a lei mostra apenas uma parcela da verdade. Centenas de”guerrilheiros” passaram o diabo nos porões da ditadura, isso não é pagar?              Se foi uma guerra, para dizer o mínimo, foi desigual. O poder do Estado e seu organizado sistema de repressão contra uma parte da população que revoltou-se contra a censura e a opressão com baixo preparo militar, com exceções.  (Leia texto “Esquerda já foi julgada e condenada, diz jurista” no blog do jornalista Roldão Arruda em http://tinyurl.com/cpylns8).             O recente lançamento do livro “Memórias de uma Guerra Suja”, em que o ex-agente da repressão, Cláudio Guerra, mostra como o regime militar não tinha limites. O ex-delegado, agora evangélico, afirma que uma usina de cana de açúcar, em Campos, no Rio de Janeiro, foi usada para incinerar 11 ex-prisioneiros políticos. (Leia mais sobre o livro em matéria “Auschwitz da ditadura” da revista Istoé em http://tinyurl.com/d48basc).             Mano Brown e seu Racionais Mc’s que acabaram de gravar cilpe de sua música Marighella (ouça em: http://tinyurl.com/7ds8f2d) nos faz relembrar de frase do guerrilheiro mulato: “o homem deve ser livre… O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo, e pode mesmo existir até quando não se é livre. E no entanto ele é em si mesmo a expressão mais elevada do que houver de mais livre em todas as gamas do sentimento humano. É preciso não ter medo” (Carlos Marighella).             Que a instalação da comentada Comissão da Verdade pelo governo nos faça um povo mais em paz com seu passado de terror e morte. Oxalá!

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