Zona Curva

#ditaduranuncamais

Marighella, imortal no Tempo, nas vozes de Whitman, Maiakovski, Neruda, Shakespeare e Nietzsche

Marighella – Algum predador poderia tê-lo visto desembarcar ou farejado seu corpo que se esgueirava pelo caminho que conduzia ao Tempo naquela noite escura, do dia quatro de novembro de 1969. O homem atacado, desconfiado, alerta, caminhava com esforço. Vinha do sul e também do norte, do oeste e também do leste, de todas as direções de sua Pátria que fora desde sempre toda a Terra. Quando se deteve frente a mim percebi que, a cada passo dado, as feridas das balas recebidas cicatrizavam; as unhas se recompunham. A respiração ofegante, sossegava. Os lábios, então, se abriam para mim num sorrir franco. Agora ele todo, Carlos irradiava felicidade, aquela que tem um náufrago ao chegar num porto seguro. Olhou-me e descortinei olhos duros da decisão e ternos no mirar, que naquele momento não expressavam medo ou amargura, tristeza ou dor. Um olhar onde a pureza e a transparência se abrigavam, num arder que não havia visto outro igual. Intuí que, finalmente, no Tempo onde aportara, era lhe concedido o direito ao repouso, a salvo dos predadores tão universais. Predadores que inúmeras vezes o atacaram, com ferocidade inaudita. No Tempo, estes haviam perdido a batalha. Marighella era aquele que escolhera ter na vida a obrigação exclusiva de sonhar e lutar para tornar suas utopias realidades e para que outros homens compartissem do mesmo sonho. Homens que, dos próprios devaneios, retiravam o alimento único para a alma combalida e a conduziam a tremendos embates. Sentei-me a seu lado. O que se passaria por trás dos olhos dos quais eu não conseguia despregar os meus? Num instante, naquele olhar, descortinei uma fileira de outros seres, homens e mulheres livres de todas as amarras, caminhando de mãos entrelaçadas pela senda sem fim da vida, entregues à aventura do existir, do compartir, desfrutando de uma experiência coletiva, de um gozar, de um amar que é o viver, o sofrer e o morrer. Agora para ele, o recém-chegado, a corrida e o labor haviam terminado, mas não o projeto mágico ao qual se dedicara desde todo o sempre. Projeto de um espírito que desesperadamente busca por iguais em todo o universo, seres libertos para compartirem, juntos, sonhos imortalizados. E a cada sonho, ele e seus companheiros de viagem combateram forças muito superiores que os destruíam, que os matavam, esquartejavam, mas que jamais os impediam de tornar a reviver, de se multiplicarem em outros corpos, prendas únicas de um sonhar coletivo. E então, de forma lenta e cuidadosa, fui caminhando para dentro daquele universo, até sentir-me incluído em seu sonhar. Percebi que ele também me penetrava, e ambos nos descortinávamos no mais íntimo de nossa intimidade. E nesse instante vi em seu olhar emergir a luz tão resplandecente da aurora: compreendera que não sonhava mais só, não havia nenhum segredo a nos separar, num ápice do seguir irmanado. Expressei-lhe meu desejo de que me desse um nome pelo qual pudesse chamá-lo. Ele que já tivera diversos, os próprios e os emprestados. Possuo tantos nomes, mas se sentir que isto lhe é importante chame-me Carlos, Marighella, Ramón, Menezes, o que importa? Dei-me conta que o leve acinzentado de sua pele desaparecia, transformando-se em branco, depois na cor mulata de Carlos, numa tez que adquiria todos os matizes que o são da humanidade. Ele agigantara-se ao estender-me a mão, que apertei nas minhas. Seu porte avolumado levou-me a percebê-lo numa dimensão superior a todos os seres que eu jamais conhecera e conhecerei. Vamos, meu amigo, precisamos seguir, disse-me baixinho. Mas não faça ruídos, não tropece, permaneça bem junto a mim, pois nos sonhos como na vida muitos são os caminhos e os descaminhos, os vãos e desvios pelos quais podemos deixar escapar nossa alma. E, então, tal qual Dante, segui o meu Virgílio atentamente, em silêncio. Percorremos um longo corredor onde tudo era escuro, ausência, caminho repleto de portas fechadas onde poucas se abriam ao nosso passar. Ao final de um tempo sem tempo, aquilo que parecia ser uma senda infinita abriu-se como que por um passe de mágica numa clareira luminosa e o ar puro trouxe-nos o perfume de todas as flores e o som da água cristalina a correr num rio, o da Memória. Não foram necessárias palavras, eu sabia que chegáramos ao lugar que ele desejara desde o princípio encontrar. Pressentidas presenças, não estávamos mais sós. Espectros, sombras foram adquirindo formas e aproximavam-se. Carlos colocou uma mão em meu ombro, amparando-me sem o que talvez eu tivesse me dissolvido. Meus encontros com Marighella De uma Sombra ouvi em forma de poema, “Nossos atos são os nossos anjos bons e maus a andarem ao nosso lado”. E, antes de afastar-se, dissolvendo-se no éter, a sombra ainda sussurrou: “Nós somos essa matéria de que se fabricam os sonhos, e nossas vidas efêmeras têm por acabamento o sono”. Carlos, então, parando disse-me: “Não existem no mundo dos poetas nem relatos e nem poemas imparciais, porque cada qual vê o mundo de seu próprio modo. Eu sou parte desta sombra, como de todas as que lutaram o bom combate do conhecer a si mesmo, do deslumbrar os limites de cada individualidade, tornando o homem livre das correntes que o escravizam às tradições, aos preconceitos e aos outros homens. Creia-me, sempre a humanidade necessitou e necessitará de uma luz, de um sinal que a conduza no sentido inverso da animalidade, pois ‘se as estrelas se acendem é porque alguém precisa delas, é porque, em verdade, é indispensável que sobre todos os tetos, cada noite, uma única estrela, pelo menos, se alumie’”. Pressenti nova Sombra a aproximar-se e um suave e agreste perfume de gerânios a acompanhava. Num instante a senti amável, doce, e se fosse permitido a um espectro sorrir e abraçar sei que ele o faria com certeza: “Aqui temos só a sombra e a morte, mas lá longe, do outro lado da montanha, o sol ainda irá se levantar sobre um mundo novo! Lá, além da planície, sempre o solo estremecerá sob os passos inumeráveis de homens impávidos

A ditadura brasileira e os dois demônios

Aqui, continuamos com os dois demônios no discurso da direita: “Se houve assassinatos, houve assassinatos dos dois lados”. Pior, temos continuado sob o demônio do terror de Estado, pois volta o negacionismo da ditadura Leio na SWI swissinfo.ch: “Buenos Aires, 8 dic (EFE).- El presidente argentino, Alberto Fernández, homenajeó este miércoles a las doce personas secuestradas entre el 8 y el 10 de diciembre de 1977 en la Iglesia de la Santa Cruz, uno de los episodios más recordados de la última dictadura cívico-militar argentina (1976-1983). Entre los desaparecidos se encuentran tres referentes de Madres de Plaza de Mayo (Azucena Villaflor de Vicenti -fundadora de la agrupación-, María Ponce de Bianco y Esther Ballestrino de Careaga), así como dos monjas francesas (Léonie Duquet y Alice Domon). “Acá no hubo dos demonios. Hubo un terrorismo de Estado que se llevó la vida de miles y miles de argentinos y argentinas. Este es un homenaje que la Argentina le debe a cada víctima del terrorismo de Estado”, aseguró Fernández en declaraciones recogidas por Presidencia” (1) E mais leio, em notícia da Casa Rosada: “El presidente Alberto Fernández señaló esta noche que ‘hoy lo central es la memoria, lo central es mantener en pie la exigencia de la búsqueda de la verdad y la justicia’, al participar del homenaje a las 12 personas secuestradas entre el 8 y 10 de diciembre de 1977 por la dictadura cívico militar”. (2) Que diferença para o Brasil! Aqui, continuamos com os dois demônios no discurso da direita: “Se houve assassinatos, houve assassinatos dos dois lados”, falam, enquanto omitem os prisioneiros torturados e mortos de um só lado. Pior, temos continuado sob o demônio do terror de Estado, pois volta o negacionismo da ditadura. O governo fascista chama de heróis autores de crimes contra a humanidade. Sobre nós, como um Pentecostes do terror, desce uma nova língua que zomba da civilização. Então sou obrigado a voltar à memória do que a extrema direita do Brasil quer esconder. Isto é, vou a uma página do meu romance “A mais longa duração da juventude” em um trecho que narra o ano de 1973: “Nas pessoas que vi não houve mártires. Nelas jamais existiu a dor, a morte como um estágio para a vida futura, deles próprios, indivíduos, nunca. O futuro era para todos, seria para a humanidade. É difícil, um satanás me sopra, ter mudança apoiada em ideias gerais. Espanto essa dispersão do satanás. Tenho a visão de que os militantes massacrados foram heroicos, mas o heroísmo não estava nos seus planos. Ainda que proclamassem, em panfletos e discussões acaloradas, que a repressão não passaria, que eles, os guerreiros, iriam até as últimas na defesa das suas convicções, ainda assim, uma coisa é o que se fala, outra é o momento mesmo da definição real. E para essa última realidade nunca estamos preparados. Age-se ou morre-se. Pior, agimos e morremos. Vargas estava apavorado. ‘Pavor, pavor, os olhos de Vargas eram só pavor’, registrava a advogada Gardênia no diário. E por ela, por sua palavra de verdade, registro nunca desmentido das páginas do seu diário, bem podemos vê-lo. Quando Vargas subiu no elevador daquele edifício Ouro, ele era um homem apenas desesperado. Sem a certeza dos passos que daria a partir de então. Para ele havia ficado claro que Daniel, o simpático, prestativo e corajoso Daniel, não passava de um agente infiltrado. A informação lhe fora confirmada por pessoa de confiança, o primo Marcinho. E a sua pista e confirmação era a de que o ‘bravo’ Daniel usava o carro de um coronel do Exército, militar anticomunista. Então Vargas soube que seria o próximo a cair. Mas não sabia para onde, nem a extensão precisa da altura do precipício de onde seria empurrado. Ele era o ‘terrorista’ a ser preso a seguir. ‘Preso’, era a sua esperança frágil e incerta. Ele se via no elevador como uma chama de vela soprada por vento numa noite escura. A sua vida era uma chama que se curvava, diminuía, e ele com as mãos procurava proteger. Na verdade, nem tanto a ele próprio, porque já se via mesmo jogado na bagaceira como um resto de cana moída, mas a chama que não queria apagar era a da sua companheira, a terna e indefesa Nelinha, a pequena e única Nelinha. Que os malditos, os fascistas chegassem até ele, isso era previsível. ‘Eu sou um homem’, ele se diz no íntimo, mais como um desejo do que como uma certeza. ‘Se não sou um homem, eu o serei’, ele se diz depois, antes de apertar a campa do apartamento da advogada Gardênia. Mas como as coisas, mesmo ali, possuem um acento irônico. ‘Campa’, ele aperta com as mãos trêmulas, que pode dar na outra campa, do cemitério. O que se passa com um homem quando caminha para a sua morte? Entrou no prédio quase de um salto, como quem entra no consulado em área livre da guerra civil. Subiu no elevador como as pessoas sem saída vão, e agora aperta a campa da advogada com a sua chama trêmula. Vida açoitada pelo vento em suas mãos. ‘Eu sou um homem’, e de tanto ódio pela tremedeira incontrolável, fecha os punhos, trinca a boca, pressiona os maxilares. ‘Eu sou um homem, porra. Eu não traio. Eu não trairei o que eu sou. Porra!’. E a porta se abre. À sua frente surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem, e nem

Meus encontros com Marighella

Marighella – Vi o filme dirigido por Wagner Moura. Um importante documento sobre a resistência à ditadura militar e a trajetória do destacado revolucionário brasileiro dos movimentos de luta armada Carlos Marighella. Nos ensaios, falei a atores e atrizes do filme sobre a ALN (Ação Libertadora Nacional), da qual fui militante. Sei dos desafios que Moura enfrentou para superar a falta de recursos e a censura do governo Bolsonaro. O filme é uma preciosa peça histórica. Baseado no livro de Mário Magalhães, “Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo”, a mais completa biografia do líder revolucionário. Faltou, no entanto, contextualizar melhor, como fez Magalhães, as circunstâncias do envolvimento dos frades dominicanos com o assassinato de Marighella pela ditadura. Em meados de 1967, frei Oswaldo Rezende — meu colega na Ordem Dominicana e, então, aluno da Faculdade de Filosofia da USP — acertou recebermos no parlatório do convento do bairro de Perdizes, em São Paulo, um professor interessado em conhecer melhor a renovação da Igreja Católica. O encontro com o professor fora marcado a pedido de João Antônio Abi-Eçab, colega de Oswaldo na USP. O professor, alto, corpulento, pele morena escura, boca larga e faces alongadas, rosto firme, musculoso, cabelos pretos e ralos recuando na testa grande, dizia-se marxista e fazia-se chamar pelo nome de “Menezes”. A conversa girou em torno da história da Igreja, a importância do Concílio Vaticano II, e da visão social e política dos cristãos. Ao despedir-se, entregou-nos um embrulho em papel cor-de-rosa: — São uns livrinhos que andei escrevendo — disse num tom de inusitada modéstia. Vimos, tão logo deixou o convento, tratar-se de obras de Carlos Marighella — nome que, aos nossos ouvidos, não tinha, à época, qualquer ressonância especial. Eram dois livros de poesias e um opúsculo, “Críticas às teses do Comitê Central”. Dias após o primeiro encontro, Oswaldo e eu estivemos de novo com Marighella nos fundos da sapataria da família de João Antônio, no bairro da Liberdade. Conversamos, então, sobre o apoio logístico que um grupo de frades dominicanos poderia oferecer à ALN, organização revolucionária fundada por ele após romper com o PCB. Nossos contatos com Marighella amiudaram, mas as pessoas que nos serviam de ponte encontraram uma pedra em seus caminhos. João Antônio Abi-Eçab morreu em acidente de trânsito, em companhia de sua mulher, Catarina Helena Xavier Ferreira, após participar, no Rio, do assalto – comandado pelo próprio Marighella, a 13 de novembro de 1968 – ao carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara. No retorno a São Paulo, o carro de João Antônio colidiu com um caminhão, próximo a Vassouras. No Fusca, a polícia encontrou uma metralhadora e pentes de balas. Reencontrei Marighella em pleno Jardim Europa nos primeiros dias de maio de 1968. Esperei-o à noite, em um ponto de ônibus da rua Colômbia. O bairro de mansões, guardado por seguranças particulares, dispensava a vigilância das viaturas policiais. Não foi difícil adivinhar que Marighella era o homem corpulento a caminhar lentamente pela calçada, como quem dá um passeio após o jantar. A troca de olhares bastou para que eu abandonasse o ponto de ônibus e o acompanhasse. Ninguém parecia atento a nós, o que, se de um lado me tranquilizou, de outro deixou-me a dúvida se, de fato, Marighella possuía um esquema de segurança. Aliás, achei precaríssima a peruca preta que usava. Temi que mais chamasse a atenção do que disfarçasse. Era uma peruca de mulher, cortada rente às orelhas. Os fios lisos pareciam sintéticos. Como ainda não se generalizara o livre penteado para homens, dir-se-ia que ele adotara um corte à moda indígena… Enveredamos pelas ruas escuras e arborizadas do elegante bairro, caminhando entre residências bem-protegidas por guaritas junto aos muros altos. “Lugar bem escolhido”, pensei. Como os moradores tinham carros, quase ninguém andava pelas calçadas, o que nos permitia dialogar sem o receio de ser escutado por quem passava. E certamente não seria ali, com tantos vigias armados, que a polícia se preocuparia em fazer ronda. Ele soubera que eu iria me mudar para o Rio Grande do Sul, para cursar Teologia na escola dos jesuítas, em São Leopoldo. Queria que eu aceitasse acompanhar, em Porto Alegre, a passagem de refugiados políticos que se destinavam ao Uruguai ou à Argentina para, em seguida, viajar à Europa. Seria uma ajuda a todos que precisassem deixar o país, independentemente de siglas políticas, e não um serviço exclusivo à ALN. Aceitei o encargo, ciente de que se adequava à tradição da Igreja de auxílio a refugiados políticos: — No momento oportuno – acrescentou Marighella – passarei a você nossos contatos nas áreas de fronteira. Agora, preciso que você assuma uma missão de urgência. Marighella pediu que fosse a Belo Horizonte levar uma mala. Deu-me dinheiro para alugar um táxi aéreo. No dia seguinte, a encomenda me foi entregue. Pesava. Não a abri, mas fiquei com a impressão de estar repleta de dinheiro. No aeroporto de Congonhas, fretei o avião, viajei a capital mineira e fui cobrir o “ponto” na rua Carangola, no bairro Santo Antônio, próxima à região em que morava minha família. Estava à espera do contato quando vi descer a rua o Alfa Romeo dirigido por minha tia Lígia. Abriguei-me numa loja, como se estivesse interessado nas mercadorias. Ela passou desacelerada, como se me buscasse. Voltei à calçada aliviado, ansioso para que o contato aparecesse logo. A posse da mala me deixava inquieto. Ao virar o rosto para o alto da ladeira, vi o carro de minha tia quebrando a esquina. Refugiei-me novamente na loja. Anos depois, indaguei a ela se havia me visto. Disse que não, fora mera coincidência. A mala foi repassada ao contato e retornei a São Paulo com a sensação curiosa de, por um dia, ter visitado clandestinamente a cidade em que nasci e onde moravam meus pais. Antes de me transferir para o Rio Grande do Sul, passei uma temporada escondido na mansão de Auxiliadora e Antônio Ribeiro Pena, banqueiro, aliado da ALN. Fui receber Marighella na porta

Doença mental sob o desgoverno Bolsonaro

Me refiro ao desequilíbrio mental em brasileiros dignos, estudiosos, necessários para o desenvolvimento econômico e cultural em nosso país. Acompanhem, por favor, e vão notar que não exagero No momento em que escrevo, percebo mais uma trágica semelhança entre o golpe militar de 1964 e o fascismo em 2021 da presidência do Brasil. Eu me refiro ao desequilíbrio mental em brasileiros dignos, estudiosos, necessários para o desenvolvimento econômico e cultural em nosso país. De modo mais preciso, há uma relação direta entre Bolsonaro e ditadura militar, entre fascismo e doença mental em pessoas do Brasil. Acompanhem, por favor, e vão notar que não exagero. Em primeiro de abril de 1964, assim encontrei Ivan, amigo de adolescência. Ele era o meu amigo mais velho, e isso quer dizer: ele está sobre a cama, no 1º de abril de 64, agitado, movendo-se de um lado para outro do seu leito de capim seco. E me diz e geme: – Tem umas cobrinhas subindo pelas minhas costas. E bate com as mãos, para retirá-las. E mais se agita: – Eles vêm me pegar. Eles vão me levar. – Eles quem, Ivan? – Eles, eles – e eles se confundem às cobrinhas, que lhe sobem pelas costas. Este Ivan não é mais Ivanovitch Correia da Silva. O Ivan de antes era um jovem de 19 anos, estudante de Química. Passava o dia todo a estudar, todos os dias. Com um método sui generis, como ele gostava de dizer. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da sua casa. E se punha a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar, ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. Como um Chaplin que fosse Carlito. Se na vida da gente houver algo que nos perca, que mergulhe no abismo a natureza que já se acha perdida, ele contava, e contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que foi a sua perdição: – Na greve dos estudantes da Faculdade de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos estudantes. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto. E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em um brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem “viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra”. Sorrindo em queda livre o meu amigo na página da revista O Cruzeiro. Por isso ele gargalhava antes do golpe, porque saíra em edição nacional da revista. Por isso no primeiro de abril de 1964, ele se diz, esta é a lógica: “Umas cobrinhas atrás de mim… Eles vêm me pegar! As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas!” Assim foi. Perdemos Ivanovitch desde primeiro de abril de 1964. Eu pensava que a loucura em um amigo antes era coisa do passado. A gente é assim, tem sempre a esperança ingênua de que o trágico é passado. “Já passou, já passou, não dói mais”, não é? Mas eis que recebo em 28 de outubro de 2021 esta mensagem: “Conversei ontem, pelo telefone, com nosso amigo X. Ele não está nada bem. Ele ficou insistindo o tempo todo que ia ser preso. Que existem pessoas na porta, de tocaia, esperando para arrastá-lo até a prisão. Que vai ser preso, torturado e morto. Eu perguntei que crime ele havia cometido para ser preso. Mas ele me respondeu algo confuso, sem sentido algum. Depois, conversei longamente com a sua companheira. Então ela me disse que ele cria essas histórias fora da realidade. É uma situação desesperadora”. Notam a semelhança entre os dois casos? Com Ivan, os militares viriam buscá-lo. Com o amigo X. os fascistas agora vêm pegá-lo, porque é um homem de opiniões de esquerda. Ele é um mestre, doutor, professor universitário, portanto apto a perseguições dos fascistas. E tais casos de doença mental não são particulares. Especialistas afirmam que a pandemia da covid-19 deu origem a outra pandemia, a dos transtornos e doenças mentais. Mas há uma clara relação entre doença, desgraça e governo fascista, que se espalha até mesmo por territórios antes sagrados dos indígenas brasileiros, segundo relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário): “Em muitas aldeias, a pandemia levou as vidas de anciões e anciãs que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos, representando uma perda cultural inestimável. A responsabilidade principal está no âmbito federal, com um presidente que faz discursos dizendo que os indígenas têm que melhorar de vida a qualquer custo, que defende liberar garimpo, exploração econômica”. Pandemias e negacionismo do vírus pela presidência, com seus ataques à ciência e aos direitos humanos, perseguições a mestres e cientistas, muitas vezes acendem o medo, a ansiedade e comportamentos problemáticos. Quando o medo assume o controle, tanto o sistema nervoso quanto a parte emocional do cérebro ficam sobrecarregados, falam especialistas. Se uma pessoa possui doença mental ou histórico de ansiedade e depressão, pode piorar e se intensificar em momentos como este do Brasil de hoje. Agora, compreendem o que pude ver. Ivan em 1964, quando a extrema direita tomava o poder, o amigo X hoje, quando os valores do fascismo voltam, perseguem e destroem. A história não se repete, mas seus pesadelos são semelhantes. A pedra da loucura só está na cabeça do outro?   Governar pelo medo Ricardo Lísias e a catástrofe em curso no Brasil

Vai ter golpe?

Golpismo – Há algo estranho na conturbação institucional que aflige o país. Vivemos a ameaça permanente de uma ruptura que nunca se concretiza e que não sabemos definir, para além das bravatas enigmáticas e desconexas de Jair Bolsonaro. Tudo parece à beira do colapso, mas não vislumbramos suas possibilidades, nem ações efetivas para impedi-lo. Por um lado, o golpe já ocorreu e Bolsonaro é sua consequência. Isso o torna ilegítimo, portanto fora do alcance das normas legais, atropeladas exatamente para que ele chegasse ao poder. O fascista desconhece freios e contrapesos, gostaria de se perpetuar e não tem chance através do voto. Sabe que consegue ao menos bloquear estradas. Por outro lado, não creio em “golpe dentro do golpe”. Mesmo que fosse unanimidade entre os militares, Bolsonaro não teria recursos humanos ou técnicos para impor um regime despótico de escala nacional. Seu idílio de tomar o poder ocupando tribunais não dura uma semana de insubordinação, baderna e paralisia administrativa. E prisões. Sim, existe o perigo de policiais, milicianos e outros jagunços cometerem violências em nome de Bolsonaro. Mas esse tipo “comum” de banditismo pode ser evitado e punido a qualquer momento. Bastam esforços preventivos simples dos governos estaduais, para não citar sua costumeira eficácia em reprimir amotinados e manifestantes indesejáveis. Também é verdade que Bolsonaro goza de conforto jurídico inigualável. O STF sequer determina ao Congresso que analise o impeachment. A autonomia dos Poderes nunca impediu os ministros de vetarem nomeações do Executivo e até de enviarem deputados à cadeia. A balela das prerrogativas aparece para proteger um fascista que as despreza. Só que o golpe não depende de Bolsonaro permanecer no cargo. Ninguém é obrigado a buscar aval do Congresso para punir delinquentes, inclusive os das Forças Armadas. O bloqueio do impeachment, apesar de nefasto em muitos aspectos, recebe peso absurdo nos debates sobre a ruptura. E serve como desculpa esfarrapada à omissão institucional. As esferas capazes de conter o golpismo, aliás obrigadas a isso, limitam-se à defesa de suas autoridades formais. Exigem respeito a decisões que não tomam, a comandos que não exercem, a inquéritos que não terminam, a regras que não cumprem. Respondem às crises com paliativos e festejam o recuo alheio. Essas ambiguidades mantêm a ameaça golpista numa temperatura controlada, abaixo da ebulição, porém mais alta do que precisaria ficar. O fantasma da ruptura se normaliza a ponto de esquecermos que as instituições têm meios e motivos para dissipá-lo de vez. A verborragia de Bolsonaro consegue pôr em dúvida a ocorrência da disputa sucessória. Afastando as plumas cerimoniais, percebemos que a contenção do golpismo depende de alguns dos órfãos da “terceira via”. No STF, entre os defensores da Lava Jato, um ex-ministro do golpista Michel Temer. Nos estados, tucanos e outros círculos aspirantes à Presidência. Na mídia, a tropa da conciliação e das equivalências caluniosas. Então faz sentido. A paranoia com o golpe iminente serve para atiçar a piromania do bolsonarismo. Em vez de enfrentá-lo, seus contendores o provocam, deixando abertas as vias de um ataque fascista que desestabilize o processo eleitoral. Nada grave. Apenas o tumulto necessário para atropelar a disputa com a pacificação da direita sem voto. A estratégia do oportunismo incendiário se desnuda em alertas do tipo “não é hora de pensar em eleições”. Devemos esquecer a democracia para salvá-la, despolitizar a luta contra forças antipolíticas, abrir mão do candidato que pode vencer o fascismo no primeiro turno. O próprio Bolsonaro não formularia seus desejos com tamanha clareza. Publicado originalmente no Blog do Guilherme Scalzilli. O rabo que abana o cão Vamos falar de golpe?

As atrocidades da tortura na ditadura militar

O realismo do documentário Brazil: A Report on Torture (1971) nos relembra dos atos de barbárie cometidos pela ditadura. Os métodos violentos utilizados pela tortura na ditadura militar não tinham limites. Realizado pelo jornalista americano Saul Landau em parceria com o diretor de fotografia Haskell Wexler, o filme é composto de uma sequência de relatos e simulações das sessões de tortura realizadas pelas próprias vítimas, exilados políticos que viviam no Chile. O grupo de prisioneiros do regime de exceção libertado em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher havia chegado a Santiago do Chile quando conheceram Landau, que aguardava na cidade sua entrevista com o presidente Salvador Allende. Entre outros, o documentário entrevista Frei Tito, na época com 25 anos. O religioso da ordem dominicana foi sequestrado em 1969 no convento em que vivia e levado ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), onde foi torturado por 3 dias seguidos. Tito suicidou-se em 1974 na França. Outra protagonista do documentário, que também suicidou-se, em 1976 na Alemanha, é a estudante de medicina Maria Auxiliadora Lara Barcelos, que descreve em meio a risos nervosos os intensos choques que sofreu nos seios e na vagina. A brutalidade da tortura do regime militar não tinha limites. O advogado de defesa de alguns militantes de esquerda, Antonio Expedito Pereira, de 40 anos, um dos mais velhos do grupo, narra que sua filha apanhou de torturadores. Sua mulher também foi seviciada para forçar a quebra de sigilo de Pereira sobre os depoimentos de seus clientes. As vítimas citam vários nomes dos covardes agentes da ditadura. Por onde andam esses sádicos? Garanto que muitos vivem como cidadãos comuns tranquilamente gozando suas aposentadorias. http://www.zonacurva.com.br/em-1970-os-tupamaros-de-mujica-contra-dan-mitrione-o-mestre-da-tortura/  

Rolar para cima