Zona Curva

Memória

Um povo sem memória é um povo sem história.

Dez anos sem Chávez

Hugo Chávez – Foi em 1815 que Simón Bolívar escreveu sua famosa Carta da Jamaica, na qual estava plasmado o seu sonho de uma Pátria Grande, com a união de todos os espaços que estavam sob o jugo da Espanha. Um sonho que ele tratou de concretizar com sua saga libertadora voltando para a Venezuela e recomeçando o processo de independência. E foi na ponta da espada que ele e os demais que o seguiam foram liberando país por país. Depois, em 1826, Simón chamou um Congresso Anfictiônico no Panamá, no qual pretendia então tornar real a proposta da união deste imenso espaço geográfico que vai desde o México até a Patagônia. Obviamente que não queria os Estados Unidos nesse bloco, porque já sabia que a vocação deste país era imperial. Mas a ambição e a traição de muitos que haviam caminhado com ele acabaram por fazer ruir essa proposta e, em 1830, Bolívar morre sem ver a Pátria Grande. Desde aí os países das Américas Central e do Sul, mais o México seguiram suas histórias individuais, imediatamente abocanhados pelo império inglês e, mais tarde, pelos Estados Unidos. Dependência e subdesenvolvimento, isso foi o que nos restou. Bolívar estava esquecido, bem como sua generosa e visionária proposta. O tempo passou e em 1992, a Europa, já bastante golpeada pela ação imperialista dos Estados Unidos, decidiu criar a União Europeia, unificando os países para melhor enfrentar o titã. Já na América Latina, unidade era palavra que não se escutava. O máximo que se chegou foi a uma tentativa de integração comercial, mas apenas com os países do sul. Tudo isso mudou em 1999 quando, na Venezuela de Bolívar, surge um líder político absolutamente fora da curva: Hugo Chávez. Ele vence as eleições e começa o que vai chamar de uma “revolução bolivariana”. Assim, 184 anos depois da libertária Carta da Jamaica, finalmente outro político venezuelano ousa falar de soberania e unidade para os países abaixo do rio Grande, tendo como horizonte o socialismo. Bolívar ressurgia em todo o seu esplendor. Com Chávez começa então outro  momento único para a América Latina. Até então, apenas a pequena ilha de Cuba sobrevivia, heroicamente, acossada e bloqueada pelos Estados Unidos. O grito de unidade da Pátria Grande vinha agora de um país petroleiro, riquíssimo, mas no qual sua população agonizava massacrada pelos velhos partidos políticos que se alternavam no poder, legando apenas à classe dominante os ganhos astronômicos do petróleo. Com Chávez, tudo muda. Os ganhos do petróleo passam a ser usados para o benefício de toda gente venezuelana e o presidente ousa enfrentar o império estadunidense acercando-se de Cuba e anunciando que o país iria avançar para o socialismo. Sacrilégio, heresia. Imediatamente toda a máquina ideológica do capital e do império passou a atacá-lo usando a velha tática de alcunhar ditador, antidemocrático e autoritário tudo aquilo que não está aos seus pés, ajoelhado e a serviço. Chávez estava a serviço dos trabalhadores da Venezuela. Um crime! HUGO CHÁVEZ MORREU EM 5 DE MARÇO DE 2013 Ainda assim, atacado e difamado, de 1999 a 2013, tempo em que esteve à frente do governo, Chávez palmilhou o caminho prometido de soberania, unidade e socialismo. Deu início a uma série de ações no sentido de unificar os países, integrou pela primeira vez a América Central e o Caribe em um plano de Pátria Grande, realizou acordos, garantiu petróleo para os países menores, buscou o desenvolvimento endógeno, virou o jogo. Nunca, depois de Bolívar, havia existido um líder assim, capaz de pensar a América baixa na sua totalidade e capaz de atuar em consequência. Veio a Telesur, proposta de mídia integradora, Unasur, união dos países, Banco do Sur, um banco nosso, Petrocaribe, Celac e uma série de outras iniciativas que apontava para a unidade dos países na busca de um bloco que pudesse sair da dependência imposta desde há séculos. Chávez foi um furacão. Passou a ser, depois de Fidel, a figura mais odiada pelos poderosos do mundo. Por outro lado, sua voz poderosa, seu riso maroto, suas tiradas alegres, seu conhecimento sobre a realidade latino-americana foram amealhando o amor dos trabalhadores, das classes empobrecidas, que viam nele uma liderança verdadeiramente disposta a colocar “patas arriba” a velha forma de governar, invertendo as prioridades. Chávez andava pelo seu país, cada domingo num lugar, onde falava com a população, cara-a-cara, em um inédito programa de televisão, que chegava a durar oito ou nove horas. E desde os problemas estruturais até a falta de calçamento de uma rua podiam ser discutidos ali. Absurdamente popular. Ele prometia e cumpria. Chávez mudou a Venezuela e mudou a América Latina. Trouxe de volta Bolívar, Martí, Che, Sandino e todos os demais que haviam lutado para ver um continente unificado, um povo irmanado e soberano. E, mais do que esperança, trouxe ação concreta. Foi um furacão, uma locomotiva reluzente e alegre, disposto a mudar a vida de todos nós. Em 2013 o venceu um câncer, que alguns acreditam ter sido inoculado. Ele era considerado pior do que o demônio pelo império. A história talvez um dia nos dê estas respostas. Mas, o fato é que ele se foi. E depois disso, a grande máquina do sonho da Pátria Grande ficou mais lenta. Neste março completam dez anos de sua partida. E a América Latina que vemos hoje não se aproxima sequer palidamente daquela que ele ousou iniciar a construção. Mas, assim como Bolívar, ele vive no coração e nas mentes daqueles que continuam carregando esse sonho de soberania. Eu tive o privilégio de viver esses 14 anos do tempo de Chávez no comando dos desejos mais profundos dos trabalhadores latino-americanos. Pude vê-lo e ouvi-lo, sua cara mesclada de negro e índio, sua voz de trovão. Pude caminhar pela Venezuela bolivariana, vendo a luta de classes acontecer nas ruas, o povo – antes esquecido – assomando no controle de suas comunidades. E, hoje, quando se completa uma década de sua semeadura, ainda me descem gordas lágrimas de profunda saudade. Quanta falta nos faz.

A resistência de Gal Costa à ditadura civil-militar

Faleceu na manhã de 9 de novembro (quarta), a cantora Gal Costa aos 77 anos Nascida na Bahia, Gal Costa foi sinônimo de resistência durante a ditadura brasileira. Muito ativa nos movimentos contra o governo da época, ela lutou contra a censura e por pautas sociais como a defesa dos direitos LGBT. Após o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, coube à cantora manter acesa a chama da contracultura no cenário musical brasileiro. Pouco tempo após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em dezembro de 68, Gil foi preso junto com Caetano. Liberados na quarta-feira de cinzas de 1969, os dois partiram em julho para o exílio em Londres. Em outubro de 1971, aos 26 anos, Gal estreava o show “Gal a Todo Vapor”, conhecido também como “Gal Fa-Tal”, no Teatro Tereza Rachel no Rio, que se tornou um tapa na cara da caretice dos generais no poder. Mais de 600 pessoas iam todos os dias assistir suas apresentações, divididas em dois atos, em um palco avermelhado, onde lia-se “FA–TAL” (palavra que nomeou o disco do show) no fundo, e “VIOLETO no chão, palavras retiradas de poema de Waly Salomão, diretor do espetáculo. No primeiro ato, ela se apresentava com o violão em tom solitário, já no segundo, Gal surgia eufórica com sua banda. Em 1972, Gal a todo vapor foi apresentado em outras capitais pelo Brasil, como São Paulo, Salvador e Recife. … Enquanto nas ruas, os brasileiros viviam uma brutal repressão política, no show de Gal, o público crítico à situação do país encontrou a oportunidade de desbundar e respirar a liberdade da revolução tropicalista em um Brasil sufocado pela censura. Após o show na capital pernambucana, Jomard Muniz de Britto publicou uma crítica poética, em setembro daquele ano, sobre o papel político da artista, no Jornal do Commercio:  “Quem não viu a pérola negra de Gal?”  “Não tenham medo de ouvir um grito (há muito tempo preso na garganta…), grito primal, grito liberado nestas águas de setembro que agora derramarei. Pela necessária impureza do terror lírico. Amor/terror.  (…) Numa só noite, em menos de duas horas, Gal reviveu sete vezes sete seu itinerário como cantora mais que cantora. Como intérprete, como gracinha, como pessoa que não se assusta consigo própria. Como alguém que vem assumindo uma posição dentro da existência e da criação cultural brasileira.  (…) Gal devorou sua plateia, que nem ao menos desconfiava que estava sendo comida, num dos maiores banquetes da música viva popular livre brasileira”. Dez dias após a volta do exílio em 1972, em seu primeiro show, Caetano fez um aceno à imagem de Gal: um batom vermelho, cabelos ondulados repartidos ao meio e um colete justo. “Um retrato vivo de Gal, pensado como uma homenagem a ela ter encarnado os tropicalistas expatriados durante aqueles anos”, comentou o cantor, em 2011. Em 1976, a artista realizou o show Doces Bárbaros, com Caetano, Gil e Maria Bethânia, pelo Brasil. Tamanho foi o sucesso que virou disco e documentário. Em sua longa carreira, Gal incorporou em sua essência tropicalista performances mais refinadas e abraçou outros ritmos brasileiros.  O longa “Meu nome é Gal”, protagonizado por Sophie Charlotte, tem lançamento previsto para 2023. A cinebiografia segue Gal desde sua ida da Bahia para o Rio de Janeiro e, em seguida, São Paulo, entre o fim dos anos 60 e início da década de 70. Gal nos deixa um legado de canções marcantes. Confira seus maiores sucessos:   Meu nome é Gal   Divino Maravilhoso   Vapor Barato   Vaca Profana   Brasil (canção de Cazuza regravada pela cantora) https://urutaurpg.com.br/siteluis/o-carnaval-da-tropicalia/ Julinho da Adelaide driblou a censura nos anos 70

Meus votos a presidente

Eleições – Fiz 18 anos em 1962. A eleição presidencial tinha sido no ano anterior. Jânio Quadros vencera o marechal Lott e Adhemar de Barros. Torci por Jânio, embora meus pais tenham preferido o marechal, pois minha genealogia paterna é repleta de militares, com destaque para dois generais. Veio o golpe militar de 1964 e as eleições diretas foram canceladas. O Congresso Nacional, manipulado pela ditadura, elegeu cinco presidentes, todos militares, todos ditadores: Castelo Branco (1964), Costa e Silva (1966), Garrastazu Médici (1969), Ernesto Geisel (1974) e João Batista Figueiredo (1978). Acusado de subversão, estive preso por 15 dias sob o governo Castelo Branco e por quatro anos sob Médici. E meus direitos políticos foram cassados por dez anos. Com o fim da ditadura e o advento da Nova República, as eleições voltaram a ser diretas. Votei para presidente da República, pela primeira vez, em 1989, aos 45 anos de idade. Dei meu voto a Lula, que chegou ao segundo turno com Collor. Na véspera do debate entre os dois na TV Globo, fomos a Brasília visitar a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Ao retornar na manhã seguinte, durante o voo para São Paulo, sugeri a Lula refugiar-se em um hotel e dormir muito para chegar ao debate com a cabeça descansada. Preferiu ir para casa, em São Bernardo do Campo, onde um batalhão de repórteres o aguardava. Resultado: chegou ao debate como um goleiro estressado e deixou passar as bolas chutadas por Collor, que ganhou a eleição. Nas eleições de 1994 e 1998, que elegeram Fernando Henrique Cardoso, votei Lula de novo. E, como na campanha de 1989, atuei como assessor, embora nunca tenha sido filiado a partidos políticos. Até que, em 2002, na quarta tentativa, Lula conseguiu se eleger com quase 53 milhões de votos, quase 20 milhões a mais que o segundo colocado, José Serra. Votei Lula de novo em 2006 e Dilma em 2010 e 2014. Foram treze anos de governo do PT com políticas sociais que favoreceram a redução da desigualdade social e a inclusão dos pobres em universidades e cursos técnicos, além de tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU e da dependência do FMI. Foram os melhores governos de nossa história republicana. Temer, vice de Dilma, articulou o golpe parlamentar de 2016, tirou a presidenta e assomou-lhe o lugar, desbravando o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Naquele ano, votei em Haddad, candidato do PT. Neste ano, pela quinta vez, votarei Lula. Sou amigo dele, mas não devoto, como nunca prestei devoção a qualquer ser humano. Pelo contrário, todos os meus amigos sabem que sou uma pessoa dotada de senso crítico, sempre de modo racional e equilibrado, sem emoção ou hostilidade. Tenho por princípio: amigos se critica, inimigos se denuncia. Sobre os governos do PT publiquei dois livros de análise crítica: “A mosca azul” e “Calendário do poder”, ambos editados pela Rocco. Como não alimento nenhuma ambição, exceto a de viver o suficiente para realizar meus projetos literários e ver a derrocada do capitalismo, tenho a liberdade de expressar críticas a meus amigos que foram ou são chefes de Estado, como Fidel Castro, Lula, Daniel Ortega, Chávez, Mujica, Rafael Correa, Evo Morales, Raúl Castro e Diaz Canel. Fidel, com quem tive a mesma proximidade que tenho com Lula, escreveu no prólogo de minha biografia, autoria de Américo Freire e Evanize Sydow (Editora Civilização Brasileira): “Frei Betto impregna-se de alto sentido de lealdade e amizade. Defende com veemência Cuba e a Revolução, sem deixar de sustentar pontos discrepantes ou diferentes dos nossos. Procuramos analisá-los e discuti-los de modo construtivo entre revolucionários e verdadeiros amigos, como comprova o diálogo mantido entre nós dois, publicado por ele com o título “Fidel a e religião”. Este ano meu voto a Lula é meu voto à esperança de um Brasil livre do entulho militarista, neofascista, acumulado pela equivocada transição da ditadura à democracia, quando se evitou punir os criminosos responsáveis por tantas torturas, prisões ilegais, banimentos, exílios, desaparecimentos e cassações políticas ao longo de 21 anos de regime militar. Essa a causa de o Brasil padecer, hoje, sob o nefasto governo do Inominável. É hora de virar a página de nossa história e “incluir os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda”, como promete Lula. Publicado originalmente no Correio da Cidadania. Brasil avermelhou Dois toques sobre a eleição no Brasil No Brasil das maravilhas Querida democracia Retrocesso: efeitos de quatro anos de governo Bolsonaro no Brasil

A terceira morte de Trotsky

Trotsky – Conta a história que, em função dos atentados sofridos, Leon Trotsky teve pelo menos 3 mortes. Na primeira delas, em 24 de maio de 1940, quando o pintor David Siqueiros liderou um ataque à casa onde Trotsky vivia. Mas apesar do fogo pesado de metralhadoras, fuzis automáticos de calibre 30 e bombas incendiárias, Trótsky escapou por um triz. “Nasci de novo”, teria dito. A segunda morte, que todo o mundo julgava ser definitiva em 21 de agosto de 1940, teria sido consequência de um golpe de picareta desferido por Ramón Mercader em 20 de agosto. Mas não. Nem Isaac Deutscher, o grande biógrafo de Trotsky, soube da terceira morte que se criou entre os comunistas populares no Recife. Assim foi e recupero. Noite de sábado, o bar de seu João, que chamávamos de barraca do caldinho, com as portas fechadas. Sete horas da noite, 1971. Eu, Spinelli e Zanoni estamos em nossas melhores roupas para a sessão de arte do Cine Coliseu. Em frente ao pequeno muro, que limita o terreno da casa e barraca do seu João, fazemos o nosso ponto de partida. O calor da noite do subúrbio de Água Fria faz seu João sair de camisa aberta sobre o ventre. Ele sai para nos ver, para um dedo de prosa, mas sai como se saísse por acaso, sem rumo, como se viesse apenas para descansar a vista na poeira da noite. Amiúda os olhos e, para melhor assegurar-se de que não existem estranhos por perto, começa a conversa por comentários irrelevantes, enquanto vira o rosto para um e outro lado. Recostado ao portão da casa. – Já “entropofogou”, Zanoni? – Tudo “entropofogado”, tio. “Entropofogar” é um verbo criado por seu João. O significado muda conforme as circunstâncias antenadas entre ele e seus íntimos. Pode significar “você já comeu?”, ou “deixou tudo arrumado, camarões, suco de limão, aguardente, para o domingo?”, ou ainda: “já pôs no bolso o pagamento da sua semana?”, ou, se a referência for a um cliente, “fulano estava bêbado?”. Mas quem sabe? Quem há de saber? Seu João já insinuou, nesses tempos da ditadura militar, a sua máxima definitiva de segurança: “Nunca se sabe”. Então ele se dirige a nós, presas e vítimas dessa noite: – Vão entropofogar? Entropofogar agora pode significar, possivelmente, vão ao puteiro, meninos? – Não, a gente vai ao cinema. Ao cine de arte – respondemos mui dignos. – Ah, voltam entropofogados. Voltam fodidos sem sexo, ele pode agora querer dizer. Engolimos seco. Não vamos discutir a volta, como se estivéssemos satisfeitos de alma e carne com a sessão do cinema de arte! Seu João agora mais se acerca, para estreitar melhor o laço. Mas ainda com cautelas. – Tá um calor danado. As folhas nem balançam. Olha para um lado, olha para o outro. – João Aticum-Cagão passou aqui hoje. Já chegou entropofoga. Queria porque queria puxar assunto sobre os Estados Unidos, sobre o americano, quer dizer, queria mesmo era meter o pau no imperialismo americano. Com o balcão cheio de gente. Fosse eu dar um pouquinho de corda, daqui a pouco ele estava falando… (baixa a voz) sobre o Vietnã, sobre Cuba, sobre Fidel. Hem? Eu sou menino?! Ora sebo. – Mas seu João – pondera Spinelli -, uma conversa assim, desde que se o limite o nível da abordagem… – Abordagem… E eu sou navio, Spinelli? Hem? (Dirige-se ao resto, em busca de apoio) Para a minha barraca vem todo o tipo de gente. Homem, mulher, velho, jovem, preto, branco, entropofoga de lá, entropofoga de cá… – Mas seu João … – Escute, preste atenção. Nunca se sabe. (E mais baixo) Ou você acha que eles vêm pra barraca de farda e baioneta? Tinha graça! Corre um murmúrio entre nós que não se articula em som mais inteligível. Esse murmúrio quer significar que discordamos do seu João, mas não temos muita força para soltar uma resposta que o contrarie. Para contornar o impasse, um de nós aponta uma saída: – Vamos? Se não, a gente perde o filme. Mas é claro que seu João não está satisfeito. Por nosso murmúrio, ele sabe que a sua tese não obteve concordância. E, mais claro ainda, ele não vai ficar sozinho a olhar as pedras da Rua Zeferino, na altura do número 178. A um nosso movimento: – Escutem. Psiu! Vocês entenderam? – Claro, seu João. Nós entendemos … – Não é isso não, meu filho. Vocês ainda não entenderam. Só mais uma coisa. E nos chama com gestos, enfáticos e enfático, para um último segredo junto ao murinho da barraca de caldinho. Em voz baixa: – Tem muito quinta-coluna por aí, vocês estão entendendo? Com essa gente só o bigode de aço. O bigode de aço não tinha mas mas mas com ele não. À medida que sua voz baixa, no seu rosto sobem cores sanguíneas. A quem passa pela margem do Colégio Alfredo Freyre, no outro lado da rua, parece que ele nos passa uma inflamada crítica. – Vocês sabem como morreu Trotsky? (Murmúrios) Psiu, escutem! Calamo-nos, à sua volta. – Desde Lênin que Trotsky pregava a contrarrevolução. Mas Lênin era meio diplomata, muito intelectual, era Trotsky desfazendo e Lênin conversando, “pode ser Trotsky, vamos ver, Trotsky”… Seu João respira fundo, como quem chega ao fim de uma longa corrida. – Lênin morre. Lênin morre e assume Stalin, o bigode de aço. Aí a conversa já era outra. Era ação! Vocês estão entendendo? A situação mudou. Os capitalistas tudo querendo, ó, botar nos russos, fazendo o cerco, hem, que é que vocês querem? É a mesma coisa que seu doutor e a senhora madame chegarem aqui, na minha barraca, pra mudarem meu comércio, ao gosto deles. Hem? É deste muro pra fora! E volta à narração sobre Stalin e Trotsky: – Mas escutem. Então o que faz Trotsky? Se é de Trotsky mudar, não, ele achou que com o bigode de aço era mais fácil. Ele passou a querer, abertamente, derrubar Stalin. Escutem. Stalin, ainda

Cláudio Hummes, o cardeal defensor dos trabalhadores

Cláudio Hummes – O papa Francisco, ao apresentar-se na sacada do Vaticano, tinha a seu lado o cardeal Hummes, articulador de sua eleição. Nascido em Montenegro (RS), em 8 de agosto de 1934, Dom Cláudio morreu no último dia 4 de julho. Ele tornou-se frade franciscano e foi ordenado sacerdote em 1958. Sagrado bispo em 1975, João Paulo II o nomeou cardeal em 2001 e, em 2006, prefeito da Congregação para o Clero. Conheci-o bispo de Santo André em 1979, quando incumbiu-me de assessorar a Pastoral Operária do ABC. Recatado nos gestos e comedido nas emoções, Dom Cláudio era um pregador incisivo e profético. Homem de convicções firmes, nada tinha de intransigente. Sabia dialogar e, ao contrário de muitos bispos, procurava manter-se teologicamente atualizado. Era, sobretudo, um religioso de vida de oração. Convivemos nas aflições das greves do ABC, no princípio da década de 1980. Instado pela Fiesp para atuar como mediador, Dom Cláudio postou-se decisivo ao lado dos trabalhadores. Se o que estava em jogo era a vida – dom maior de Deus – ameaçada pelos índices econômicos falseados pela ditadura, não havia como esperar do bispo uma posição de suposta neutralidade. Dom Cláudio autorizou que a matriz de São Bernardo do Campo mantivesse as portas abertas aos metalúrgicos, inclusive para a realização de assembleias, enquanto o sindicato permanecesse sob intervenção federal. Instou padres, religiosas e fiéis a participarem do Fundo de Greve. Na manhã em que prenderam Lula, telefonei imediatamente a Dom Cláudio, que se mobilizou contra a arbitrariedade. Como arcebispo de Fortaleza e depois de São Paulo, Dom Cláudio empenhou-se em preservar, na Igreja a unidade na diversidade. Dotado de sensibilidade social, homem de hábitos simples, trazidos da colônia gaúcha, era avesso a salões e banquetes, e só se permitia um exagero: o trabalho excessivo. Encerrou sua carreira como vigário-geral da arquidiocese de São Paulo, orientador das pastorais sociais e presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia. Capitalismo é religião? Papa Francisco defende preservação do meio ambiente em nova encíclica Arquivos da ditadura e memória subversiva  

Carlito Maia, senhor cidadania

Meu querido Carlito, você partiu há 20 anos. Viver não pode ser sinônimo de sofrer, e a sua agonia se prolongou por muito tempo. A última vez que nos vimos foi na terça, 18 de junho de 2002. Você estava muito sereno quando, ao lado de Tereza, dei-lhe a bênção da despedida. Agradecemos ao Pai/Mãe de Amor o dom de sua existência. Agora, no colo de Deus, você ri de suas inquietações quanto aos mistérios que, para nós, se escondem do outro lado da vida. Lamentamos a sua partida. Com a sua ausência, ficamos órfãos de quem nos ensinou a lutar por cidadania. “Brasil? Fraude explica”, bradou você diante de tanta corrupção. Você era a cidadania em carne e osso. O último pré-socrático. Com suas frases curtas e certeiras, proverbiais e irônicas, construiu uma obra literária e contestatária de inestimável valor, inclusive filosófica, com o mérito de proferir axiomas que todos entendem. Viramos cúmplices desde 1966, quando nos conhecemos no convento dos dominicanos, no bairro de Perdizes, na capital paulista. Convidado por um dos padres, você veio pronunciar palestra sobre TV. Contou como funcionava a sua agência de publicidade, a Magaldi, Prosperi & Maia; como descobriu Roberto Carlos num show de calouros da TV Tupi; como desenhou o perfil da Jovem Guarda, que se tornou, naquela década, o programa da TV Record de maior audiência nacional. Desde então, não perdemos mais contato, mesmo porque sua irmã Dulce se tornou minha companheira no Teatro Oficina, na resistência à ditadura e no cárcere. E a minha admiração só cresceu, pois você jamais pôs a alma a leilão. Depois de beber tudo a que tinha direito num coquetel de indignações, transformou-se num ébrio de utopias. “Sonho, logo existo”, era o seu lema. Espelhado em Chaplin, seu alter-ego, você combateu o regime militar sem perder o humor e o amor. Virou contrabandista de gente, produtor de fugas, alcoviteiro de guerrilheiros, semeador de esperanças. Acionou sua metralhadora giratória de frases e citações, e fez da ironia uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas. Poeta do cotidiano, socialista compulsivo, sempre partilhou com amigos e amigas a irreverência de seus textos e recortes de jornais e revistas. Artífice da vida, jamais esqueceu aniversários e homenagens, celebrados por você com a alegria das flores, como quem semeia primavera ainda que reine rigoroso inverno neste país e em nossos corações. E agora, quem nos mandará “beijares e abraçares” em papéis timbrados da Rede Globo, com a sua assinatura acompanhada de uma estrela vermelha? Quem, como você, soube fazer amigos? Betty Milan retratou esse dom em “O Clarão”, sua biografia afetiva. Você, que viveu “livre e solitário como uma árvore, porém solidário como uma floresta”, sabia e nos ensinava que “nós não precisamos de muita coisa. Só precisamos uns dos outros.” Mineiro como eu, você nunca foi daqueles que ficam em cima do muro para ver melhor os dois lados. Homem de opções e ações, teve a dignidade embonezada pelo MST, que sempre contou com o corajoso apoio de quem soube enfatizar que “a luta é entre os sem-terra e os sem-vergonha”. Fundador do PT, você cunhou as expressões “Lula-lá” e “Sem medo de ser feliz”, e preferia “perder com as bases a vencer sem elas”. Desconfiado, sabia que “quando a esquerda começa a contar dinheiro, converte-se em direita”. Sua vida, coerente e bela, foi o brado maior de quem jamais teve medo de algo tão simples e, no entanto, hoje raro: vergonha na cara. Fiel às suas raízes, você sempre nos recordava que “é de pequenino que se torce o destino”. Tanta coerência refletia esta sua autodefinição: “Sou o que de mim fiz, porque assim quis.” Louvo a Deus, pleno de gratidão, pela dádiva de sua existência. “A esperança já perdi várias vezes. A fé jamais”, dizia você. Ainda bem, meu querido amigo, tão amado por Deus e por todos nós que, nesta terra de papagaios, sentimos muito a falta de quem não desperdiçava palavras e esbanjava bom humor. Em um dos bilhetes que me enviou, você transcreveu esta frase de Antonin Artaud: “Parto à procura do impossível. Vamos ver se o encontro.” Guardo a certeza de que, aqui nesta Terra, valeu o esforço de quem, em vida, teve a honra de ver o próprio nome batizando o Troféu Cidadania da revista Imprensa. No avesso desta existência sei que, agora, não há mais nada impossível para você. Para sempre, sua vida é terna. Mais uma vez, a Deus, Carlito. Paulo Freire, educador do mundo Paulo Freire, 100   Arquivos da ditadura e memória subversiva  

História na veia com professor Vitor Soares

Colaborou Isabela Gama O CONVERSA AO VIVO ZONACURVA recebeu no dia 26 de maio o professor de história e podcaster, Vitor Soares. Ele falou sobre seu podcast, o História em meia hora, onde explica eventos históricos em 30 minutos. Vitor foi entrevistado por Fernando do Valle, editor do Zonacurva. O História em meia hora nasceu em 2020, porém o professor conta que a vontade de produzir conteúdo em formato de áudio surgiu há quase 10 anos, quando ele retornava um dia da faculdade. Hoje, a boa repercussão do podcast fez Vitor deixar as salas de aula por um tempo, para que pudesse se dedicar ao projeto. “Sinto falta do ambiente escolar, de ter um contato direto com os alunos”, confessa. Ele planeja retornar a lecionar em escolas ou em universidades. Vitor também participa de outros dois programas: Aventuras na História e o História pros Brothers. O professor comentou sobre a tragédia envolvendo Genivaldo de Jesus, que foi morto pela polícia após ser trancado em uma viatura junto a uma bomba de gás lacrimogêneo na cidade sergipana de Embaúbas. A atitude da polícia chocou os brasileiros e muitos compararam a ação com as câmaras de gás usadas nos campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial. O professor explica que, apesar do atual governo flertar com alguns discursos fascistas como o nacionalismo exacerbado, a eleição de um inimigo comum à nação e o discurso pró armas, é importante apontar que essas ações não fazem do governo Bolsonaro diretamente fascista devido às especificidades dos dois períodos históricos. Além disso, Vitor relembra que classificar e chamar os eleitores de Bolsonaro de fascistas é uma estratégia ruim de tentar fazer política e revela um academicismo vindo da elite intelectual. Principalmente, quando isso é direcionado às classes menos favorecidas da sociedade, que encaram a política de maneira mais prática como, por exemplo, nas altas dos alimentos e da gasolina. “Chamar uma apoiadora do Bolsonaro, que mora na periferia e só quer colocar comida na mesa, de fascista é extremamente problemático” afirma Vitor. O revisionismo histórico foi também um assunto abordado na conversa. Segundo Vitor, a estratégia de Bolsonaro e seus apoiadores em dizer que a ditadura nunca existiu e que o comunismo e a esquerda vão acabar com o país são a repetição de um plano do período da guerra fria inventado pelos Estados Unidosj, justamente o país que financiou e apoiou ditaduras na América Latina entre os anos 60 e 80 do século XX. Segundo ele, um povo que teme o comunismo e suas mazelas não se rebela contra a desigualdade social, esse sim um problema grave que existe no Brasil. Sendo assim, atitudes absurdas como homenagens ao Coronel Ustra e a deslegitimação de centenas de vidas perdidas na ditadura brasileira nada mais são do que mais uma cortina de fumaça deste governo, completa o professor. Ditadura Nunca Mais com Urariano Mota A ditadura brasileira e os dois demônios

Brizola, 100 anos

Brizola – De tudo o que se fala sobre Brizola pouco se diz de sua práxis anticapitalista, anticolonial e nacionalista. Esse ano, ao celebrar os  100 anos de seu nascimento, as lembranças, na mídia comercial, ficaram na superfície, sem apontar suas ações decisivas no sentido de garantir a soberania do povo brasileiro. Aqui reunimos algumas ações de Leonel Brizola antes do golpe de 1964 para que as novas gerações conheçam um pouco melhor esse homem extraordinário. Leonel conheceu a realidade do trabalhador bem cedo, quando, com 10 anos de idade foi morar sozinho na cidade de Carazinho, vivendo no sótão de um hotel no qual lavava pratos e também carregava malas até a estação. Depois, com 12 anos, já em Porto Alegre, onde foi estudar, se virou sozinho como engraxate e ascensorista. Formou-se como técnico rural e sempre conseguiu aliar muito bem o estudo com a sobrevivência. Nunca teve nada de mão-beijada e sabia o quanto era difícil para um trabalhador superar os obstáculos da vida. Tanto que só conseguiu estudar por conta da ajuda de uma família metodista que lhe garantiu uma bolsa de estudo numa escola da igreja. No ensino médio já era um líder estudantil e foi um dos fundadores do Grêmio do Colégio Júlio de Castilhos. Saiu do ensino médio direto para a Faculdade de Engenharia, e trocou a luta estudantil pela militância no partido político, o PTB. Ele queria mudar a vida de todos. Foi assim que ele se meteu na vida política e, em 1947, já elegeu-se deputado estadual, defendendo as pautas estudantis e melhorias na educação básica. Começava aí a sua saga e quase obsessão com a educação pública. Ele sabia bem o quanto era difícil para um filho da classe trabalhadora estudar, tendo de depender de caridade, e queria que fosse o Estado o responsável pelo ensino. Isso marcaria sua vida para sempre. Em 1952, quando Secretário de Obras Públicas do Rio Grande do Sul, ele colocou para andar o Primeiro Plano de Obras do estado, com obras de infraestrutura, principalmente de saneamento básico e rodovias. Em 1956, quando começou seu mandato de prefeito de Porto Alegre, deu início a concretização de sua promessa de campanha que era “nenhuma criança sem escola”, aumentando significativamente as vagas na rede municipal e a inclusão dos dois turnos, permitindo assim que as crianças ficassem mais tempo na escola e os pais pudessem trabalhar com tranquilidade. Também deu sequência às obras de saneamento porque considerava que educação e saúde eram coisas fundamentais para a população. Em 19598, na sua campanha para governador, apresentou um programa de governo no qual defendia priorizar as escolas, habitação, energia elétrica e preços justos aos produtores. Eleito, criou seis secretarias: Administração, Trabalho e Habitação, Economia, Transportes, Energia e Comunicações e Saúde. Toda sexta-feira à noite, na Rádio Farroupilha, ele prestava contas de seu governo, falando com a população e sua voz marcada ecoava por toda a pampa. Em 1961, Brizola organizou os gaúchos e, com o povo armado, criou a Campanha da Legalidade para garantir que João Goulart assumisse a presidência da República depois da renúncia de Jânio Quadros. Organizando uma cadeia de rádios, ele comandou uma resistência nacional contra o golpe. Entregou o comando da Brigada Militar ao comando do Exército regional, organizou comitês paramilitares de resistência e distribuiu armas aos civis. Desde o Rio Grande ele defenderia a legalidade. Vencida a batalha nacional com a posse de Jango, Brizola seguiu seu trabalho no Rio Grande do Sul criando um plano para industrializar o estado e um programa de serviços públicos. Nacionalizou empresas estadunidenses que lucravam com os gaúchos e levantou a ira do então presidente dos EUA, John Kennedy. Sem ligar para os achaques ianques, ele mandou embora a Bond and Share, que monopolizava a energia elétrica na região metropolitana e criou a Companhia de Energia Elétrica Riograndense, a CEEE, empresa mista de capital nacional que existe até hoje. Fez o mesmo com a International Telephone and Telegraph, que dominava a telefonia, e criou a Companhia Riograndense de Comunicações, a CRT. Seu nacionalismo não era de discursos, era de ação. Exatamente como fez quando era prefeito, Brizola aumentou o número de vagas públicas na educação riograndense e durante seu mandato criou quase sete mil novas escolas, conhecidas à época como “brizoletas”, por conta de sua arquitetura simples, tipo uma casa familiar. Com isso abriu quase 700 mil novas vagas, tendo o Rio Grande a maior taxa de escolarização do país. Ainda como governador, Brizola criou um programa de reforma agrária, o primeiro no país, e criou o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária que garantia assistência técnica e ainda atuava em parceria com o Movimento dos Agricultores Sem-Terra, o Master, que organizava acampamentos de sem-terra no estado na luta por um chão para produzir. Essa luta garantiu assentamento a centenas de famílias e até uma fazenda do próprio governador foi desapropriada para a reforma agrária. A caminhada que fazia no Rio Grande era uma preparação para o governo federal. Ele queria chegar à presidência e fazer no país tudo o que já havia começado no sul: todo apoio à educação, à reforma agrária e à nacionalização das empresas estrangeiras. Brizola queria um país industrializado e caminhando com as próprias pernas. Foi barrado pelo golpe de 1964. Brizola: “julgamento de Lula foi um teatro” Como Brizola adiou o golpe militar após a renúncia de Jânio Quadros

Meus encontros com Marighella

Marighella – Vi o filme dirigido por Wagner Moura. Um importante documento sobre a resistência à ditadura militar e a trajetória do destacado revolucionário brasileiro dos movimentos de luta armada Carlos Marighella. Nos ensaios, falei a atores e atrizes do filme sobre a ALN (Ação Libertadora Nacional), da qual fui militante. Sei dos desafios que Moura enfrentou para superar a falta de recursos e a censura do governo Bolsonaro. O filme é uma preciosa peça histórica. Baseado no livro de Mário Magalhães, “Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo”, a mais completa biografia do líder revolucionário. Faltou, no entanto, contextualizar melhor, como fez Magalhães, as circunstâncias do envolvimento dos frades dominicanos com o assassinato de Marighella pela ditadura. Em meados de 1967, frei Oswaldo Rezende — meu colega na Ordem Dominicana e, então, aluno da Faculdade de Filosofia da USP — acertou recebermos no parlatório do convento do bairro de Perdizes, em São Paulo, um professor interessado em conhecer melhor a renovação da Igreja Católica. O encontro com o professor fora marcado a pedido de João Antônio Abi-Eçab, colega de Oswaldo na USP. O professor, alto, corpulento, pele morena escura, boca larga e faces alongadas, rosto firme, musculoso, cabelos pretos e ralos recuando na testa grande, dizia-se marxista e fazia-se chamar pelo nome de “Menezes”. A conversa girou em torno da história da Igreja, a importância do Concílio Vaticano II, e da visão social e política dos cristãos. Ao despedir-se, entregou-nos um embrulho em papel cor-de-rosa: — São uns livrinhos que andei escrevendo — disse num tom de inusitada modéstia. Vimos, tão logo deixou o convento, tratar-se de obras de Carlos Marighella — nome que, aos nossos ouvidos, não tinha, à época, qualquer ressonância especial. Eram dois livros de poesias e um opúsculo, “Críticas às teses do Comitê Central”. Dias após o primeiro encontro, Oswaldo e eu estivemos de novo com Marighella nos fundos da sapataria da família de João Antônio, no bairro da Liberdade. Conversamos, então, sobre o apoio logístico que um grupo de frades dominicanos poderia oferecer à ALN, organização revolucionária fundada por ele após romper com o PCB. Nossos contatos com Marighella amiudaram, mas as pessoas que nos serviam de ponte encontraram uma pedra em seus caminhos. João Antônio Abi-Eçab morreu em acidente de trânsito, em companhia de sua mulher, Catarina Helena Xavier Ferreira, após participar, no Rio, do assalto – comandado pelo próprio Marighella, a 13 de novembro de 1968 – ao carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara. No retorno a São Paulo, o carro de João Antônio colidiu com um caminhão, próximo a Vassouras. No Fusca, a polícia encontrou uma metralhadora e pentes de balas. Reencontrei Marighella em pleno Jardim Europa nos primeiros dias de maio de 1968. Esperei-o à noite, em um ponto de ônibus da rua Colômbia. O bairro de mansões, guardado por seguranças particulares, dispensava a vigilância das viaturas policiais. Não foi difícil adivinhar que Marighella era o homem corpulento a caminhar lentamente pela calçada, como quem dá um passeio após o jantar. A troca de olhares bastou para que eu abandonasse o ponto de ônibus e o acompanhasse. Ninguém parecia atento a nós, o que, se de um lado me tranquilizou, de outro deixou-me a dúvida se, de fato, Marighella possuía um esquema de segurança. Aliás, achei precaríssima a peruca preta que usava. Temi que mais chamasse a atenção do que disfarçasse. Era uma peruca de mulher, cortada rente às orelhas. Os fios lisos pareciam sintéticos. Como ainda não se generalizara o livre penteado para homens, dir-se-ia que ele adotara um corte à moda indígena… Enveredamos pelas ruas escuras e arborizadas do elegante bairro, caminhando entre residências bem-protegidas por guaritas junto aos muros altos. “Lugar bem escolhido”, pensei. Como os moradores tinham carros, quase ninguém andava pelas calçadas, o que nos permitia dialogar sem o receio de ser escutado por quem passava. E certamente não seria ali, com tantos vigias armados, que a polícia se preocuparia em fazer ronda. Ele soubera que eu iria me mudar para o Rio Grande do Sul, para cursar Teologia na escola dos jesuítas, em São Leopoldo. Queria que eu aceitasse acompanhar, em Porto Alegre, a passagem de refugiados políticos que se destinavam ao Uruguai ou à Argentina para, em seguida, viajar à Europa. Seria uma ajuda a todos que precisassem deixar o país, independentemente de siglas políticas, e não um serviço exclusivo à ALN. Aceitei o encargo, ciente de que se adequava à tradição da Igreja de auxílio a refugiados políticos: — No momento oportuno – acrescentou Marighella – passarei a você nossos contatos nas áreas de fronteira. Agora, preciso que você assuma uma missão de urgência. Marighella pediu que fosse a Belo Horizonte levar uma mala. Deu-me dinheiro para alugar um táxi aéreo. No dia seguinte, a encomenda me foi entregue. Pesava. Não a abri, mas fiquei com a impressão de estar repleta de dinheiro. No aeroporto de Congonhas, fretei o avião, viajei a capital mineira e fui cobrir o “ponto” na rua Carangola, no bairro Santo Antônio, próxima à região em que morava minha família. Estava à espera do contato quando vi descer a rua o Alfa Romeo dirigido por minha tia Lígia. Abriguei-me numa loja, como se estivesse interessado nas mercadorias. Ela passou desacelerada, como se me buscasse. Voltei à calçada aliviado, ansioso para que o contato aparecesse logo. A posse da mala me deixava inquieto. Ao virar o rosto para o alto da ladeira, vi o carro de minha tia quebrando a esquina. Refugiei-me novamente na loja. Anos depois, indaguei a ela se havia me visto. Disse que não, fora mera coincidência. A mala foi repassada ao contato e retornei a São Paulo com a sensação curiosa de, por um dia, ter visitado clandestinamente a cidade em que nasci e onde moravam meus pais. Antes de me transferir para o Rio Grande do Sul, passei uma temporada escondido na mansão de Auxiliadora e Antônio Ribeiro Pena, banqueiro, aliado da ALN. Fui receber Marighella na porta

Doença mental sob o desgoverno Bolsonaro

Me refiro ao desequilíbrio mental em brasileiros dignos, estudiosos, necessários para o desenvolvimento econômico e cultural em nosso país. Acompanhem, por favor, e vão notar que não exagero No momento em que escrevo, percebo mais uma trágica semelhança entre o golpe militar de 1964 e o fascismo em 2021 da presidência do Brasil. Eu me refiro ao desequilíbrio mental em brasileiros dignos, estudiosos, necessários para o desenvolvimento econômico e cultural em nosso país. De modo mais preciso, há uma relação direta entre Bolsonaro e ditadura militar, entre fascismo e doença mental em pessoas do Brasil. Acompanhem, por favor, e vão notar que não exagero. Em primeiro de abril de 1964, assim encontrei Ivan, amigo de adolescência. Ele era o meu amigo mais velho, e isso quer dizer: ele está sobre a cama, no 1º de abril de 64, agitado, movendo-se de um lado para outro do seu leito de capim seco. E me diz e geme: – Tem umas cobrinhas subindo pelas minhas costas. E bate com as mãos, para retirá-las. E mais se agita: – Eles vêm me pegar. Eles vão me levar. – Eles quem, Ivan? – Eles, eles – e eles se confundem às cobrinhas, que lhe sobem pelas costas. Este Ivan não é mais Ivanovitch Correia da Silva. O Ivan de antes era um jovem de 19 anos, estudante de Química. Passava o dia todo a estudar, todos os dias. Com um método sui generis, como ele gostava de dizer. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da sua casa. E se punha a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar, ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. Como um Chaplin que fosse Carlito. Se na vida da gente houver algo que nos perca, que mergulhe no abismo a natureza que já se acha perdida, ele contava, e contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que foi a sua perdição: – Na greve dos estudantes da Faculdade de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos estudantes. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto. E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em um brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem “viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra”. Sorrindo em queda livre o meu amigo na página da revista O Cruzeiro. Por isso ele gargalhava antes do golpe, porque saíra em edição nacional da revista. Por isso no primeiro de abril de 1964, ele se diz, esta é a lógica: “Umas cobrinhas atrás de mim… Eles vêm me pegar! As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas!” Assim foi. Perdemos Ivanovitch desde primeiro de abril de 1964. Eu pensava que a loucura em um amigo antes era coisa do passado. A gente é assim, tem sempre a esperança ingênua de que o trágico é passado. “Já passou, já passou, não dói mais”, não é? Mas eis que recebo em 28 de outubro de 2021 esta mensagem: “Conversei ontem, pelo telefone, com nosso amigo X. Ele não está nada bem. Ele ficou insistindo o tempo todo que ia ser preso. Que existem pessoas na porta, de tocaia, esperando para arrastá-lo até a prisão. Que vai ser preso, torturado e morto. Eu perguntei que crime ele havia cometido para ser preso. Mas ele me respondeu algo confuso, sem sentido algum. Depois, conversei longamente com a sua companheira. Então ela me disse que ele cria essas histórias fora da realidade. É uma situação desesperadora”. Notam a semelhança entre os dois casos? Com Ivan, os militares viriam buscá-lo. Com o amigo X. os fascistas agora vêm pegá-lo, porque é um homem de opiniões de esquerda. Ele é um mestre, doutor, professor universitário, portanto apto a perseguições dos fascistas. E tais casos de doença mental não são particulares. Especialistas afirmam que a pandemia da covid-19 deu origem a outra pandemia, a dos transtornos e doenças mentais. Mas há uma clara relação entre doença, desgraça e governo fascista, que se espalha até mesmo por territórios antes sagrados dos indígenas brasileiros, segundo relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário): “Em muitas aldeias, a pandemia levou as vidas de anciões e anciãs que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos, representando uma perda cultural inestimável. A responsabilidade principal está no âmbito federal, com um presidente que faz discursos dizendo que os indígenas têm que melhorar de vida a qualquer custo, que defende liberar garimpo, exploração econômica”. Pandemias e negacionismo do vírus pela presidência, com seus ataques à ciência e aos direitos humanos, perseguições a mestres e cientistas, muitas vezes acendem o medo, a ansiedade e comportamentos problemáticos. Quando o medo assume o controle, tanto o sistema nervoso quanto a parte emocional do cérebro ficam sobrecarregados, falam especialistas. Se uma pessoa possui doença mental ou histórico de ansiedade e depressão, pode piorar e se intensificar em momentos como este do Brasil de hoje. Agora, compreendem o que pude ver. Ivan em 1964, quando a extrema direita tomava o poder, o amigo X hoje, quando os valores do fascismo voltam, perseguem e destroem. A história não se repete, mas seus pesadelos são semelhantes. A pedra da loucura só está na cabeça do outro?   Governar pelo medo Ricardo Lísias e a catástrofe em curso no Brasil

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