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Escritos

Crônicas, desabafos, contos. Espaço livre para nossos colaboradores.

“Vai trabalhar, vagabundo!”

I. O Malandro.  Nos compêndios de economia política, numa sociedade onde o modo de produção capitalista é hegemônico, existem duas classes, dois importantes agentes de produção antagônicos: o capital (que detém os meios de produção) e o trabalho (força laboral dos trabalhadores). Com a intensificação da industrialização nos anos 1930, uma grande massa de trabalhadores migra do campo para a cidade nas áreas urbano-industriais, onde o populismo estatal é incapaz de incorporar ao sistema produtivo toda a população urbana em idade de trabalho. É nesse contexto de aclimatação capitalista que surge o jeitinho, o quebra-galho, o pistolão, a panelinha, a malandragem como instituições, formas de burlar o universalismo contido na ideologia burguesa, em oposição à identidade nacional de cada indivíduo. No ensaio clássico “Dialética da Malandragem”, o mestre Antônio Cândido, ao analisar o romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, desvincula a malandragem (traço de caráter da cultura brasileira) da organização econômico-social, demarcando a obra entre a correspondência dualista da malandragem literariamente figurada no romance e o comportamento malandro existente na realidade, flutuando entre as vagas da ordem (lícito) e desordem (ilícito). II. O Ócio.  Longe desse conceito romântico/econômico é que se apresenta o chamado “Malandro Oficial” ou com patente de oficialidade tão comum na atual horda militar palaciana, bem distinto da maioria da população obrigada a batalhar, a ingressar nos meios de produção e sobreviver à custa do suor do seu trabalho e exigências laborais codificadas. O atual presidente da República, apenas dá continuidade à sua idolatria ao ócio iniciada desde a tenra infância de passarinhagem e estilingue, passando pela indolência nas escolas militares e prosseguindo na preguiça aquartelada, talkey? Afinal de contas, que trabalhador conseguiria se aposentar com 33 anos de idade, com um salário respeitável de capitão após onze anos de aquartelamento “il doce far niente”? Como sabemos o gaudério transformado em presidente, conclui o curso de formação na AMAM em 1977, e em 1988 já estava transferido para reserva remunerada, fora dos quartéis, para assumir o posto de vereador do Rio de Janeiro, após abertura de processo militar, acusado de planejar a explosão de bombas em instalações militares. O espantoso é que anos mais tarde o pianíssimo Bolsonaro, costumeiro de tantas bravatices, tenha negado tudo ao então ministro do Exército, Leônidas Pires, o general a que acusara de frouxidão e de tratar os militares como se “vagabundos” fossem (sic). III. A Pavulagem.  Esticada a sua larga rede em consecutivos mandatos parlamentares, a sua malha de incursões pelos meandros do submundo do peculato e concussão das rachadinhas, compra suspeita de imóveis, uso indevido de verbas de gabinete para viagens pessoais e cartão corporativo (R$ 5,8 milhões gastos somente neste ano), além dos indícios do íntimo envolvimento com a milícia do Rio de Janeiro. Os consecutivos mandatos de 1989 a 2019 (2 como Vereador e 7 como Deputado Federal), apenas reforçam a sua notória inação laboral, a fleuma ladina, com apenas um único projeto transformado em lei, em 1996, prorrogando benefícios fiscais para o setor de informática e automação, um mísero projeto após 30 anos de desfrute e gazetagem. No brilhante trabalho acadêmico “Malandragem e Ordem Social (Um estudo da Autoridade  Malandra através do Samba e da Literatura)”, tese de doutoramento de Rosenberg Fernando de Oliveira Frazão, o espaço de atuação do malandro está sempre envolto numa atmosfera de crise. É um ser completamente avesso a qualquer regra, pessoa ou instituição capaz de tolher ou ameaçar a sua liberdade, da qual não abre mão sobre nenhuma circunstância. IV. A Farra da Mamata.  É a expertise presidencial, a sua aversão ao trabalho que se insurge a vagabundagem aliada às regalias, o pedigree caviloso onde “a lei é feita para os inimigos e o trabalho para o otário”, resume o jargão exultante da “lei da vantagem” pelo mínimo esforço. Além dos cochilos em plenário, foi o deputado que mais gastou com correio nos seus últimos três mandatos, com custo aos (nossos) cofres públicos de R$ 870 mil. Mais recentemente, sua ex-esposa Ana Cristina Siqueira Valle voltou ao noticiário político-policial após a suposta compra de uma mansão em Brasília. Muito antes, Ana Cristina já inaugurava a conhecida fruticultura legislativa, a prática de “laranjas” em comissionados em gabinetes, alcançando uma evolução patrimonial incompatível com sua renda: somente entre 1997 e 2007, tempo em que ficou casada com presidente Bolsonaro, adquiriu 14 imóveis (casas, apartamentos e terrenos), avaliados em R$ 5,3 milhões em valores corrigidos. Segundo sites de acompanhamento legislativo, desde 1989, o então presidente Bolsonaro e sua casta de filhos – Flávio, Carlos e Eduardo – nomearam 286 pessoas em seus gabinetes, dentre elas, 102 familiares ou pessoas com algum vínculo de parentesco, compondo 32 diferentes famílias, na sua imensa maioria indivíduos que sequer compareciam ao trabalham, mas que mensalmente recebiam ou partilhavam os seus salários com o clã legislativo do citrosuco da mamata. V. O Madraço.  A vadiagem de covil, indolência, a sorna do seu “espírito” militar certamente representa a marca mais evidente da militarização da administração pública, onde mais de 6 mil agentes das Forças Armadas ocupam cargos e acumulam privilégios, espalhados por toda estrutura administrativa do Estado. Em meio aos inúmeros escândalos e denuncias de tráfico de influência, negociatas e propinas na compra de vacinas no Ministério da Saúde, mais de 1.300 militares, entre eles coronéis e o ex-ministro Eduardo Pazuello, estão envolvidos diretamente na catastrófica política de combate à pandemia da Covid-19 e no esquema criminoso de corrupção, conforme apurado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado. Paradoxalmente, enquanto buscou recentemente, através da MP 1045, aumentar a jornada de trabalho e o corte do descanso dos trabalhadores em mineração, o despresidente Bolsonaro insiste na vadiagem, pois, alegando um suposto cansaço físico e mental, não trabalha. Enquanto mais de 583 mil brasileiros foram mortos pela inércia da política de combate à Covid-19, a atividade presidencial limitou-se a “despachar” no “curralzinho” do Palácio da Alvorada por 40 minutos com correligionários igualmente desocupados, a manifestar-se pelas redes de Twitter e selfies e a bater pernas país afora, participando de motociatas, montarias de jumentos, criando pautas absurdas, no seu andejo aviltante da preguiça. No último

Acender uma vela pelo Brasil

Na gravidade da hora deste presente, em mais de um sentido, em todos os sentidos, penso que deveríamos acender muitas velas, milhões de velas pelo Brasil. No povo, principalmente entre os seguidores dos cultos afro-brasileiros, é costume acender uma vela para a realização de um desejo. Se uma filha vai fazer um concurso, se um filho tem uma prova difícil, no mesmo dia, ou antes, a mãe acende uma vela em lugar discreto, para que tudo ocorra bem. Esse é um ato de fé onde se inclui a beleza da chamada dos deuses, como há séculos os poetas invocavam para escrever uma obra mais alta. Também se acende uma vela para agradecimento a uma santa ou santo por uma graça alcançada. Isso é comum entre as pessoas católicas, espíritas e crentes dos terreiros. No morro da Conceição, no Recife, tem sido assim, aos pés da grande imagem, com pequenas fogueiras de cera que todos devemos respeitar. Lá no Padre Cícero no Juazeiro, e para a Aparecida também em São Paulo. E como uma característica nacional, em todos os lugares do Brasil onde habite o desejo de vencer situações difíceis, acendem-se velas. Acendem-se velas ainda em memória dos mortos, com afeto e tristeza. Mas na gravidade da hora deste presente, em mais de um sentido, em todos os sentidos, penso que deveríamos acender muitas velas, milhões de velas pelo Brasil. Pelo bem do povo brasileiro, tão sem saúde e machucado. Pelos indígenas, sem saúde e sem terra. Pelos negros, sem saúde e mortos nas ruas. Pelas mulheres, sem saúde e desrespeitadas como animais odiados. Pelos intelectuais, artistas, pelos cientistas, que emigram em busca de um lugar onde possam trabalhar. Por todo Brasil enfim, talvez fosse a hora de se acenderem muitas velas. Se a chama do voto pudesse tudo fazer, de voto no sentido de urna eletrônica, e neste caso, de oferenda aos santos do Brasil, uma grande fogueira deveria subir até os céus brasileiros. Diferente em tudo dos incêndios das florestas, diferente em tudo do fogo do calor que seca os rios e represas, em tudo diferente do fogo de armas nas mãos dos bárbaros, bilhões de velas deveriam arder em luminosas chamas até as nuvens do azul do Brasil. Se assim pudesse, a luz votiva faria no espaço mágico a derrubada, a destruição de Bolsonaro, do fascismo de todo o seu governo. Mais que derrubar, puniria com, no mínimo, a prisão dele e de todos os seus ministros, criminosos por covardia, corrupção ou ideologia fascista. Então, as chamas das velas realizariam um “queima Bolsonaro”, uma superação do inferno em que vivemos pelo fogo do povo brasileiro. Ah, por Deus e por todos os deuses, poderíamos ser então merecedores do que manda o coração? Abaixo Bolsonaro em procissões de círios que falassem e agissem, com atos e realizações o que até aqui não temos conseguido, oprimidos que estamos por um congresso vendido em troca de verbas, enquanto afundam os direitos básicos e inalienáveis da gente brasileira. Se assim pudéssemos, o STF em peso o jogaria em impedimento e posterior cadeia, por todos os motivos de imoralidade, descumprimento da Lei e escárnio contra a democracia. Ah, se os nossos desejos pudessem ser mágicos como a crença da melhor gente do Brasil! Mas, como as chamas unidas não podem trazer a felicidade, e como o fogo em cera não realiza o que é concreto da ação política, façamos então um trato com a fé: acendamos uma vela pelo Brasil, enquanto levemos afora de todas as maneiras o nosso protesto. E depois do próximo 7 de setembro fascista, poderemos cantar um hino com estes versos de Vinícius de Moraes: “Vontade de beijar os olhos de minha pátria De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos… Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos E sem meias, pátria minha Tão pobrinha! Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho Pátria, eu semente que nasci do vento Eu que não vou e não venho, eu que permaneço Em contato com a dor do tempo, eu elemento De ligação entre a ação e o pensamento Eu fio invisível no espaço de todo adeus… Tenho-te no entanto em mim como um gemido De flor; tenho-te como um amor morrido A quem se jurou; tenho-te como uma fé Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito” Antônio Maria em Vento Vadio  

O Brasil em tempos de Olimpíadas e chantagens

Olimpíadas – Os dias têm sido assim. De dia, a CPI da Covid no Congresso Nacional, um teatro de emoções simuladas, mentiras e atuações dramáticas que parecem ir para lugar nenhum. De noite, as Olimpíadas, onde atletas mal pagos, sem patrocínio e sem espaço para treinamento disputam os esportes individuais, alguns até arrebatando medalhas, o que faz a mídia entreguista vibrar e enaltecer o “esforço” pessoal. Correndo por fora, temos o presidente da nação, criando a cada minuto um novo factoide, ameaçando e chantageando o país, prometendo um golpe, sem que nenhuma instituição do chamado “mundo democrático” faça qualquer coisa. São dias fatigantes e desesperadores. Não se pode dizer que não há reação. Há. Mas ela é pequena e pontual. Nesse momento, se expressa apenas nas particularidades, em lutas corporativas, onde a perda de direitos caminha a galope. Os trabalhadores tentam entabular lutas, mas têm sido patrolados sem dó. E, quanto mais perdem, mais apáticos ficam. Porque não enxergam saídas. No mundo das redes, segue a mesma tática de fazer graça com as chamadas “maluquices” do presidente. E enquanto as pessoas ficam inventando “memes” e compartilhando postagens, no mundo da vida, os gerentes do governo vão passando o rodo. Em tudo. Já queimaram a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal. Já queimaram museu e cinemateca, na tentativa de destruir a memória, incentivam a morte dos lutadores sociais, aprovam projetos que permitem o roubo de terras de indígenas, quilombolas e ribeirinhos, já passaram as reformas mais importantes para o capital, faltando agora a reforma administrativa que mergulhará o serviço público em mais um amplo processo de desmantelamento. A mais nova investida presidencial está na proposta de tirar poderes do Tribunal Superior Eleitoral durante o processo de eleições, que ele quer que seja com o voto impresso, para garantir o curral eleitoral. E o factoide do dia é mais uma ameaça ao ministro do Superior Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, dizendo que “seu dia vai chegar”. Tudo noticiado pelos jornais e redes de TV como coisas normais, sem questionamento. Enquanto isso, a  Covid 19 segue cobrando mais de mil mortes por dia ao mesmo tempo em que a vacinação segue a passos de tartaruga. Isso que a variante Delta ainda nem chegou. Vivemos a trágica realidade na qual todos os dias o presidente do país anuncia que vai dar um golpe, sem que absolutamente nada aconteça. Tudo segue “normal”, ainda que o desemprego mantenha o recorde de 14,7%, com quase 15 milhões de desempregados, mais os seis milhões de desalentados, que nem buscam mais por emprego. Ou seja, 21 milhões de pessoas sem renda. O gás está em 100 reais e a gasolina logo chegará aos 10 reais, sem protestos. Os salários dos trabalhadores estão congelados enquanto o grupo de amigos que está no poder  – incluindo aí uma leva de militares – tem os salários triplicados. Não bastasse isso, conforme denúncia da revista Fórum, 100 generais vinculados ao governo receberam recentemente a patente de Marechal, extinta desde 1967, que volta à vida para privilegiar alguns. Uma farra. Os bolsonaristas gritam aos quatro ventos que a corrupção no Brasil acabou, mesmo com a CPI da Covid a revelar todos os dias casos escabrosos relacionados ao uso da pandemia para ganhar dinheiro. O presidente impôs 100 anos de silêncio sobre a presença de seus filhos  – que são vereador, deputado federal e senador – no Palácio do Planalto e também colocou sob sigilo seus gastos no cartão corporativo. Tudo que diz respeito a ele é segredo, até seu cartão de vacina. Ele certamente se vacinou, mas quer manter a fachada de “não-vacinado macho” para a sua claque que obviamente se mantém firme contra a vacinação. E assim vai indo a nave Brasil, que ao contrário do que todo mundo diz, não está desgovernada. Ela tem direção certa. Conforme o prometido em campanha, o presidente segue destruindo tudo o que estava aí, servindo ao grande capital, fazendo as reformas esperadas pelos empresários nacionais e internacionais, atendendo ao latifúndio e às mineradoras. Importante que se diga que não está sozinho nessa empreitada. Com ele está a maioria esmagadora dos deputados e senadores que conformam o Congresso Nacional  bem como os ministros do STF. Os três poderes caminham juntos em ordem unida e devem ser responsabilizados pelos danos. Essa não é jornada de um psicopata. É um plano bem urdido da classe dominante, escolhendo a rota mais perversa que pode encontrar o modo capitalista de produção para atender ao seu insaciável apetite. Resta saber até quando vamos suportar… Emoções olímpicas  

Estação Franco da Rocha

                                                                                                         I                                                                                                                                                   (…) um jovem casal se beija                                                                                                                                                          confessam segredos que                                                                                                                                         até o final da viagem terão o valor                                                                                                                                                de um bom dia dito às pressas                                                                                                                                                                      Mikhael O. Simões   – ESTAÇÃO FRANCO DA ROCHA. Desembarque pelo lado direito do trem – disse. Sempre a mesma canção: muitos passageiros descem; sobem ainda mais. Chega a ser tragicômico falar de distanciamento social e outros cuidados quanto à pandemia em um local onde cada metro quadrado é disputado. Franco da Rocha é um entreposto comercial das periferias de São Paulo destas bandas, um grande mercado-dormitório onde o que se vende a preços baixíssimos são as horas e a força de trabalho do precariado. A estação parece um porto seco, menos quando alaga. A cidade está encrustada entre o interior e a quebrada, ambos insones. Casas, barracos, esgotos a céu aberto e as gambiarras dos fios elétricos unem-se como se fossem cartões postais que magoam as vistas. Tais realidades repelem os gostos da estúpida classe média, que, alheia, enxerga a si mesma como algo muito distinto dessa condição.     Franco da Rocha, mais uma das crateras entre mares e morros. Da janela do trem, avisto lugares que desconheço, posso ver a geografia, muito embora me escape o que nunca conhecerei por completo: a singularidade de cada ser humano. Vielas irregulares construídas numa arquitetura insalubre. Eu nasci longe daqui, num bairro onde o operariado vive sisudo de segunda a sábado para, enfim, descontar tudo o que ressente aos domingos, em lazeres que acabam num instante. Não sou da quebrada, não vim do gueto, levei poucos enquadros, todavia, sei que o subdesenvolvimento da ilha Brasilis – décima segunda (falsa) economia mundial – é algo que atravessa a mim e a muita gente. O trem fecha as portas. A composição engasga, não arranca – imita o país. Demora um pouco para que o vagão vazado recomece a andar. O trem em transe arrasta-se preguiçoso: crianças estropiadas berram; o reino dos marreteiros está de novo instaurado; e proliferam, tensas, camisetas de times rivais. Não sei se hoje é dia de jogo, não sei se hoje é dia que valha ser lembrado. Num desses relances de distração, meus olhos esbarram na adolescência à frente: um casal efebo troca carícias, segredam – será que Aquiles e Pátroclo cuidavam assim das feridas um do outro? Os meninos sentem medo, sabem que podem apanhar, sabem que a hostilidade é lei e sabem que ainda hoje serão xingados de viados, de bixinhas, de fresquinhos, mas não retrocedem no carinho. E isso é o que importa. O trem não sai. O transporte público é uma jaula. Isso sim é aglomeração. “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”, gaba-se um dos nossos hinos. Somos herdeiros de uma nação que, há menos de um século atrás, acreditava ser normal encarcerar nas mesmas celas pessoas com transtornos mentais e negros recém-alforriados que vagavam juntos a presos que cometiam crimes hediondos. Herdamos uma república, cujo Estado é a perfeita máquina de moer gente e onde o único triunfo é o da amnésia social. Juquery, palavra cujos significados contrastam porque emudecidos foram os povos tupis. Nesta quilometragem, o que a ferrovia também reverbera é a história de mais de cento e vinte anos do asilo de alienados. A Santos-Jundiahy é um legado sombrio.     A ferrovia e o rio atraíram interesses peculiares. O Hospital do Juquery já teve uma porção de nomes, mas o mais adequado seria inferno: maus

Estação Baltazar Fidélis

                                                                                                                            “(…) A tempestade que faz dobrar as bétulas                                                                                                                                    É tida como violenta                                                                                                                                   E a tempestade que faz dobrar                                                                                                                                  Os dorsos dos operários na rua?”   – Bertolt Brecht   Quais os vestígios que sobrevivem ao tempo? O que permanece na lembrança coletiva? As ruínas de pessoas supostamente ilustres em outras épocas são capazes de conversarem, num diálogo franco, com a gente que vive neste instante, neste agora que sempre desaparece? Desse tal Baltazar Fidelis restou apenas o arremedo que chamam de estação ferroviária, pouco mais de meio século atrás a dependência que demarcou o quilômetro 113 da Santos-Jundiahy, era chamada apenas por Paradinha, uma choupana, um apeadeiro sem cobertura, sem cercas, onde moradores de rua, galinhas, marrecos, passageiros e o mato disputavam espaço ao longo do dia e da noite. Os monumentos públicos, as ruas e os edifícios entronam repetidas vezes a história de quem vence: quase sempre são santas e santos, militares bolorentos, delegados locais, doutores sem doutorados, políticos e demais personalidades endinheiradas, mas quem reaviva os espaços é a gente anônima através das épocas – gente que sobrevive, principalmente com a tarefa de pagar contas. Chegam a minha mente duas perguntas óbvias: quando, para além dos livros de história, o povo será lembrado? Até quando esses trens vão tratar as pessoas como baratas? A população que embarca na CPTM se revoltou tantas vezes e ainda se revoltará muito. Triste é ter os olhos para o ontem ou o amanhã, mas sempre carecer das urgências de hoje. Em 1996, eu nem sequer imaginava pegar um trem sozinho, ir para São Paulo e ficar longe dos olhares acautelados dos meus pais, em 1996, entre setembro e outubro, milhares de usuários paralisaram a via na altura da estação Jaraguá, os protestos se espalharam por todas as direções apontadas por trens e metrôs. Espalhou-se pela cidade. Depredações e gritos ecoavam a raiva contida dos vencidos. Mas dessas lutas poucas fotos restaram – o que continua é esse gosto amargo da submissão na garganta. Naquele tempo ainda existiam surfistas de trens que se arriscavam, driblavam fios de alta-tensão, viajavam como insanos sobre os tetos do lixo férreo; e naquele tempo a estação Baltazar Fidélis quase foi reduzida a pó.   De lá pra cá, somente as fachadas mudaram, um pouco. A multidão que observo é a comunidade imaginada por mim, a cada dia, ela perde um pouco mais de humanidade dentro dessas latarias. Há risos, encontros, amores e amizades, mas o que predomina na linha 7-Rubi é o tédio acumulado, um grande cansaço. Esses trens são azeitados com suor das testas pobres. A maioria dos que usam o trem ganha por dia menos do que custa o quilo da carne moída razoável; e a maioria dos que se apertam nos trens quase não fazem uso de serviços particulares: usam trens, usam ônibus, escolas, hospitais e cemitérios, todos públicos – e é essa parcela do povo que permanecerá sendo atingida pela pandemia e suas outras mazelas. Meu inconformismo de jovem saído do chão de fábrica esfriou. Os trens e as salas de aula me testaram por anos, já antes de 2007, quando fui para a recém-nascida Unifesp. Voltei para o interior, anos depois, com três diplomas, mas sem perspectiva de emprego certo. O trem contribuiu para que São Paulo fosse mais minha casa do que Jundiahy, mas também encubou meus ódios e fracassos. Os vagões que nos carregam não falam o português refinado das teses de mestrado da USP; e os vagões que exalam, num só dia, lavanda e também prensado desconhecem a maioria dos intelectuais que moldaram a suposta identidade brasileira. Mas são esses milhares de usuários que conduzem suas vidas de forma corajosa, de um modo que eu já não consigo conduzir. Meus delírios de esperança sempre apelam, que droga. – A CPTM informa: paramos para aguardar liberação da passagem no trecho à frente – disse. Na plataforma as portas abrem-e-fecham, abrem-e-fecham, abrem-e-fecham. Ouço então o barulho de rodinhas contra o assoalho emborrachado. Só quando o trem recomeça a andar é que vejo outro mendigo de sempre: sem camiseta, de longos cabelos ensebados, esquálido, com as duas pernas recurvas, feito galhos do cerrado, que se equilibram sobre a prancha de um skate velho – talvez acidente, talvez paralisia infantil. A icterícia é escancarada e suas mãos estão cheias de calos, nós e secas feridas. Eu sei, e muita gente aqui sabe também, que ele se arrasta neste chão movediço para tentar vender raspadinhas da sorte,

Estação Botujuru

                                                                                                       “(…) Centenas vão sentados e milhares vão em pé”.                                                                                                                     – O trem, Rapaziada da Zona Oeste – RZO   Os trilhos dormentes trados cancelas marteletes apitos ferros lastros britas tirefrão postos telegráficos bitolas ferragens comboios bondes entrevias automotrizes freios aços containers engonços cavalos de força contrapesos cavalo-vapor tarifas guarda-trilhos litorinas eixos fueiros taludes maria-fumaça puas locomotivas sulcadoras freios rodeiros troles de linha vagonetes ferrugens, Tudo. As estradas de ferro são o suor sublimado das gerações, a chegada de migrantes e imigrantes é apenas a foz desses acontecimentos, antes vieram os que foram escravizados, antes ainda viviam os que nomearam essas terras. Botujuru é boca dos ventos num tupi-guarani que para mim é incógnito, aprendi os folclores sem vida de um país que estuprou ancestrais filhas irmãs mães sobrinhas netas e avós. Botujuru, estação-casebre que agora ocupa meus olhos. No trajeto, há um túnel, no túnel, há penumbra e, na penumbra, há sonhos remotos que o trem usurpa: noites que invadem dias; noites dentro das noites; dias de um sol canicular; e tardes nubladas que gestam a próxima tempestade. Mas a estação vem antes, pelo menos para quem, assim como eu, provém desse interior sonâmbulo. Não importa o sentido, sob o túnel, todo céu é passadiço. Um vento encanado assobia entre vagões ladeados por outros séculos. Eu sei que esse trecho das ferrovias já esteve sob os gringos cabrestos da São Paulo Railway: o Engenheiro Chefe Henry J. Beeck, como exímio britânico rico, ignorava qualquer direito trabalhista, chicoteava seus empregados e acabou degolado. Depois a linha férrea passou para as mãos estatais. Parece que, desde sempre, tudo aqui já nasceu no desengano das sucatas. Sei pouquíssimo sobre os povos da morte insepulta que, na escola, a gente aprende a chamar apenas por índios. Também desconheço testemunhos dos que da mátria África vieram e experimentaram, combalidos, o dessabor das ausências: o banzo. Nessas terras, em se plantando, tudo dá! Mas o que sempre se cultivou desde muito antes das vias férreas foram fomes, escravidões e genocídios. As linhas da antiga Santos-Jundiahy ecoam, para quem quiser ouvir, um canto abatido, épocas estranguladas pela desmemória e a modorra dos transportes públicos, que perpetuam adestramentos novos em corpos já envelhecidos. Essas coisas nascem em minha cabeça talvez para desviar-me dos pensamentos sobre vida que quer ser interrompida. Meu avô foi ferroviário. Um velho de poucas palavras e ira. Com mulher e filhas, ele deixou o roçado e só ganhou emprego na estaçãozinha de Ityrapina porque, dentre os filhos de pais sitiantes, que chegaram daquela Nápoles fantasmagórica, era o único que sabia escrever alguma coisa além do próprio nome. Nas minhas lembranças, meu avô materno sempre perambulou como um ser já velho, suas fotos de moço, de pracinha que integrava o exército anêmico, jamais me convenceram. Quando eu era criança, nunca considerei que, em algum momento, ele pudesse ter tido dezoito anos. O velho exibiu a ferida que portava no queixo: já grande levou umas bofetadas do pai por acreditar-se homem feito enquanto acendia o paieiro num almoço de domingo. A rigidez em ter um patriarca fazendeiro que foi parar na cadeia – e de lá saiu alcoólatra e empobrecido – constrangia meu avô, mas logo virou também sua marca, seu distintivo de fidalguia de operário. Batia nas filhas. Vigiava suas beldades com os desmandos de uma palmatória que tinha em casa. Ele mesmo, um tanto sádico, fez o instrumento. Meu avô materno foi sempre o pelego exemplar: nunca caiu no canto das sereias dos sindicatos, repudiava a política que não fosse de cabresto amigo – o típico empregado que desconhecia seus direitos. Foi sempre útil, sempre disponível aos gracejos de um cartão de horas exemplar. Um corpo, como tantos, que viveu domesticado: de segunda a sábado, pelo trabalho; e, aos domingos, pela missa e a macarronada. Ele fazia manutenção nos dormentes dos trilhos, sabia identificar os que apodreciam aos poucos, de dentro pra fora. Trabalhou trinta e três anos, recusou férias e descanso e vigiou o namoro de duas das três filhas. O funcionário do mês, todos os meses – o idiota útil que é o triunfo para patrões. Sim, ele acreditava que São Paulo era a locomotiva que puxava esse país. Por toda vida, meu avô afirmou que “pretos, amarelos, baianos, bugres, atrizes, turcos e viados não prestavam” porque não se empenhavam a sua maneira e, por isso, não passavam de “ralé vagamunda, gente imprestável”. Ele também dizia não ser racista, afirmava que Mussolini fez bem à sua Itália e que Vargas era frouxo demais. O velho era duro feito sarrafo e nunca ficava doente, mas, assim como a madeira maciça que também embolora, apodreceu aos poucos, de dentro pra fora; foi comido pelo câncer e nunca soube abraçar netos e netas, jamais agradeceu mulher e filhas por se atarantaram nas despesas dos remédios, convênios e exames. Dias antes de morrer ele odiava a si mesmo por ser reduzido à invalidez; minha mãe contou que ele, já nos delírios da morfina, chorava o nome do pai. Alguns meses depois, quando o luto instalou-se feito parasita nos corações, minha mãe e minhas tias encontraram, num fundo falso de gaveta da cômoda de mogno, um punhado de notas roídas pelas traças, moedas consumadas e bilhetes com nomes imprecisos de mulheres. Meu avô experimentou o desassossego dos que economizam por vaidade, foi um pobre soberbo e seus

Estação Campo Limpo Paulista

                                                                                                                                                                                                                “(…) É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se! Sem cessar, embriaguem-se! De vinho, poesia ou virtude, a escolha é sua”.                                                                                                                                                                                      – Baudelaire   – A CPTM informa: é proibido o consumo de bebidas alcoólicas nas dependências das estações e no interior dos trens – disse. O mais estranho da linha 7-Rubi da CPTM é que todas as pessoas parecem conhecidas entre si, são compadres e comadres. Todos os rostos se igualam no mesmo cansaço, numa espécie de condenação à espera. Um purgatório precarizado de desconforto, barulhos e ansiedades, regidos por relógios sem ponteiros. Ser um indivíduo; uma persona que desponta; ou diluir-se nas massas, eu não sei bem o que isso significa, não agora. Os vagões sempre cheiram a coisa azeda, parece que fraldas de uma criança sem afeto foram esquecidas aqui. Os casebres de tintas descascadas de sempre surgem para mim: tímidos, numa paisagem conturbada. Mais próximo à vista está o pátio das fábricas que geraram esses municípios natimortos, depois há uma garagem com a frota de ônibus acabados. Todo mundo daqui e das redondezas sabe: a Rápido Luxo Campinas, máfia-empresa de viação, não é rápida, não é luxuosa e nem mesmo é campineira. E, ano após ano, aumentam as tarifas, sempre as mesmas facadas contra bolsos pobres. Tenho ainda a recordação de amigos e amigas de Campola City; a maioria debandou e quem permaneceu já não aguarda tanto as minhas promessas de visitas sempre adiadas. Nos primeiros anos do novo século que se amontoavam entre as dobras de dois milênios, tudo o que a gente queria era não estar onde havíamos nascido: Jundiahy, Várzea Paulista, Itatiba, Itupeva, Jarinu, Cajamar, Itu, Campo Limpo Paulista, Louveira, Cabreúva, essas terras e nomes nos repeliam por conta da tremenda apatia, por conta da ausência de outras formas de vida, enfim: por conta da caretice das ruas. Mas São Paulo, a capital, não repercutia assim. Sempre foi mais atraente para nós que duelávamos contra nossos bairros periféricos. Um flerte, uma possível insinuação de amor-sujo com a megalópole infinita. Vagabundear, beber, usar drogas, apartar da mente os problemas, roubar livros dos sebos, dar uns beijos, encontrar outras amizades, sonhar com a vaga naquela universidade, sair na porrada, rir enquanto uma calçada larga era devassada pelos nossos pés eufóricos, ver um cineminha alternativo, shows fodas e gratuitos, amores e putarias diversas; tudo isso compunha a brisa emitida pela Babilônia Cinza, que muitos chamam de Sampa. As nossas senhas para sumir do interior sempre foram: rolê com a Paula, curtir a Paula, beber & foder com Paula. Qualquer canto de São Paulo sempre foi mais foda que as noites de sábado em nossas avenidas e pracinhas de adolescentes bêbados. A 9 de julho, em minha cidade, é igual a tantas: sempre há desfiles de carros dos ricos sobrenomes. – A CPTM informa: é proibido o consumo de bebidas alcoólicas nas dependências das estações e no interior dos trens – disse. Para nós, filhos e filhas de operários, que morávamos afastados de qualquer centro, o melhor era essa espécie de exílio torto, uma rebelião a favor dos excessos. Alguns momentos que sentíssemos viver um eco das vidas dos rockstars que nos deseducaram. Nossos pais e mães vestiam pijamas recorrentes: do-trabalho-pra-casa & da-casa-pro-trabalho e nós jurávamos que não seríamos assim, mas todo juramento dá brechas à traição. Sempre que possível, íamos, sós ou em bandos, encarar as horas dentro do trem, com garrafas enrustidas, por lazer, por uma necessidade devoradora que é própria da juventude. O desembarque já bêbado nas baldeações do metrô era a marca da transgressão, de certo tipo de vida mais espraiada, livre da rotina tosca da cidadezinha. Enfim; dar rolê com a Paula. Não duas, nem três, nem quatro vezes varei madrugadas esperando o primeiro trem que me levasse de volta ao interior. Aquela sensação amarga de destilados fermentados no estômago vazio não incomodava, mas hoje pesa, muito. É claro que vi, com todo fascínio que foi possível, o mundo nascer somente quando longe do meu lar. – A CPTM informa: é proibido o consumo de bebidas alcoólicas nas dependências das estações e no interior dos trens. – disse. E o Magrão? Sim, meu camarada Magrão. Nesse passado achegado que vivemos, ele foi uma espécie de condutor das insanidades, conhecido em todo canto, suas mãos ainda hoje dividem a tarefa de tocar violão ou guitarra em bares e, entre uma música e outra, manusearem cigarros e copos americanos de suco de macaco. Muito antes de ser para nós um flautista doido-varrido de Hamelin, Felippe Astolfine, experimentou a ausência do pai alcoólatra, já aos três anos de idade, ele e o irmão mais novo eram criados pelos tios, que trocavam murros e também faleceram de cirrose. Magrão, sempre indo de galho em galho, sempre um sem-lar, sempre trançando as pernas, uma força inquieta com

Estação Várzea Paulista

                                                                                                  “Essas coisas, agora, são como se não tivessem sido”.                                                                                                                                                                  – Jorge Luis Borges   Jundiahy tinha sequer ficado pra trás e já parecia impalpável para mim. Há sempre o próximo trem. O vagão vai em frente, lotado de ombros que se esbarram e olhares desencontrados. Aquele abafamento. Nós seguimos; porém, inertes, em pequenos mundos celulares. Dos solavancos do trem ressoam o toque das esporas monótonas que levam ao trabalho diário: o transporte público é o ópio do povo: domestica, entorpece e fode. Lá fora há o dia, puro abandono. Algumas fábricas baldias constituem a paisagem de grande banheiro químico a céu aberto. A máquina parece flutuar, só que não. Na vista que corre do outro lado das janelas emperradas, há o chão que se espraia para além dos trilhos, dormentes e britas. Um lodaçal, por aqui passa um rio-raso-de-chorume que se disfarça por conta do mato alto. Esse trecho fica pura merda em dias de chuva, quando aguaceiro, lixo e fedentina vêm à tona. E o lodaçal é também minha memória onde tantas coisas espreitam com pés medrosos. Recordo das vezes em que viajei no caminho oposto a este, afundando no interior da infância mirrada. Minha mãe, cuidadosa, queria-me sempre sob suas asas, temia que seu filho se perdesse no mundaréu de gentes & estações, tudo a repelia; nada a acalmava, nem mesmo quando, transcorrido o caminho, chegávamos, suados, ao consultório do doutor João Milton, no centro velho da capital do interior. A cada dois meses nós, de mãos dadas, embarcávamos em Jundiahy, íamos sentido Campinas, na segunda classe. Dos assentos rijos, eu sentia o desconforto e o atraso. Era o início da década e os valores dos bilhetes escancaravam diferenças na qualidade da viagem para uns e outros, mas eu ainda não entendia o tamanho daquilo tudo. O ano de 1991 goteja lembranças em meus olhos… – Amendoim salgado e doce olha a paçoquinha olha o chocolate cremoso olha a cocada caseira olha a cerveja gelada, a paçoquinha? Sai cinco por apenas um real – disse. – Produtos de moscou, moscou os farda-bege levou – disse. – Olá meu freguês olá minha freguesa, aqui no shopping trem sempre tem – disse. E são esses rumores que me arrancam de mim, essas vozes que vendem coisas de ontem e de agora, pegam e trocam notas amassadas, esses gritos que me puxam do passado ainda tão próximo. Não sei mais dizer onde morriam as linhas férreas que atravessavam o interior. Embaralho tempos e ambulantes. Nós nunca comprávamos nada, a mãe economizava os trocados e forrava a bolsa com maçãs, lanches e garrafas de água fresca – umas vezes ela levou a térmica com dois terços do seu perfumoso café. Trens e cafés: duas angústias que se atracaram neste país. Estava sempre mordiscando algo essa minha mãe, hoje sei que eram truques para afastar tristeza, exorcismos contra a ansiedade que a habitava. O trem fede. É lento. Dois ou três marreteiros driblam corpos atordoados e vão fazendo seus comércios. O brado metálico, imperativo, diz que estamos chegando à estação Várzea Paulista, antiga Secundino Veiga. A máquina estaciona, os marreteiros emudecem, os que estão dentro permanecem como autômatos, portas abrem. Ninguém desce; sobem muitos. Sopros embrutecidos temperados pelo sol que agora é cambaio em meio às nuvens. Fodeu! Será que vai chover? Será que vai chover muito? Trem parado, mormaços. Dois seguranças se avizinham, querem domar o princípio de um tumulto que logo acaba. Como se fossem guilhotinas que se odeiam as portas cerram, os marreteiros renascem, redobram os gritos. A mochila de um trabalhador ficou presa numa das portas, causa até um pouco de risos. Este homem provavelmente encara o trajeto Várzea-Luz & Luz-Várzea todos os dias. Entre engasgos e tossidas, o trem recomeça exaustivo. A CPTM é um lixo. Os primeiros empuxos são roucos, nada dizem sobre o que virá. O silêncio só é quebrado quando passageiros em pé se espremem além da conta. Uma brecha surge, é o espaço concedido para que um senhorzinho negro recurvo, cego, passe sua caneca de alumínio, guiando-se com o cabo de uma vassoura transformado em bengala – pelamordedeus, uma esmola pro ceguinho, uma esmola pro ceguinho, por favor, pelamordedeus, uma esmolinha pro ceguinho – disse. Há algo nestes olhos falecidos, um não sei quê que transborda existência, que dignifica o mendicante, mas emana um país profundo, arcaico e atrofiado, uma terra enferma da qual todos nós somos sintomas. Esta voz não é de asilo, esta voz já foi um trovão e cada batida da bengala improvisada pontua um metrônomo doído entre chorinhos e ritmenblues. Já o vi incontáveis vezes: pedinte por vocação, os fios puídos de uma barba nunca feita confirmam: na CPTM, os pedintes completam bodas de ofício. Sempre quando ele ouve a moedinha tilintar na caneca devolve afável a gentileza com um verso ou trechinhos de músicas. Mas hoje o velho vem mais cabisbaixo. Aproxima-se, milagroso e equilibrista, entre duas colunas de gente amarrotada. Peço licenças aos três senhores parrudos, uniformizados, que estão em pé diante de mim e dialogam. Estendo a mão desengonçada e deixo cair uma nota de dois reais, talvez ele tenha percebido, mas não há tempo para recitar bondades. O trem avança de novo, mas já descontinua, logo

Estação Terminal Jundiahy

                                                                                                                         “(…) Vai e vem, no vagão do trem,                                                                                            fazendo dinheiro, ligeiro, éh, salve os marreteiros!”.                                                                                                                             – Marreteiros, Organização Xiita.                                 Acordei atrasado, mas ainda em tempo. Levo pouco mais que as roupas e o corpo. Na mochila: maçãs, dois lanches, garrafa com água fresca, meia dúzia de cigarros e dois baseados, a blusa xadrez de sempre, livros e o cantil de Santhiago de Compostela – goles de uísque são bons para recordar minhas antigas viagens, trechos percorridos com um velho amigo pela América Latina dos corações insones. A cada passo dado sinto afastar-se de mim, por um momento, a melancolia dos meses de quarentena, dessa pandemia sem fim. São ansiosos os olhos das pessoas com quem cruzo pelas calçadas, há aquela aflição matinal inclusive nos carros que surgem e logo desaparecem. As árvores exalam nascimento e morte. Dias empilhados em isolamento e contendas, a incerteza pairando em cada minuto – até bem pouco tempo eu procurava um novo fôlego, meu novo fôlego, mas desisti. Pôr a cara nas ruas povoadas por gente anônima parecia, apesar de tudo, um recomeço. Há ruídos nas portas de alguns comércios; conversas que, em vão, tentam afastar as angústias de todos os tempos. Nos arredores da estação ferroviária o preço das passagens é menos abusivo que o da bilheteria. Um ou dois bilhetes a cada cem engasgam na catraca, mas podem ser trocados. Vantagens em driblar a vigilância e comprar dos comércios paralelos, sempre liderados por malandros caricatos. Aqui todo trajeto é terminal. O sol de dezembro maltrata os nossos rostos cansados logo pela manhã. Muitos protegem os olhos com uma das mãos; outros usam bonés e não são raros os que fazem dos amarrotados envelopes de papel pardo, para currículos, uma proteção contra a claridade. Muita gente já abandonou o uso das máscaras e há quem ainda relute colocando-as, mesmo de forma incorreta. Eu disfarço como posso. À direita e à esquerda rangem ferros. Há tempos as faixas amarelas de segurança estão descascadas. As linhas principais são para trens de passageiros. Num segundo plano, ecoam apitos magoados das composições de carga; e, já ao longe, alguns rebocadores e peças de manutenção somem da vista panorâmica. Empregados e usuários trocam de turno e assim executam o mesmo ballet mecânico das atividades. As duas plataformas assemelham-se a ilhotas repletas de náufragos assombrados – um bando de solitários: o início e o fim de tudo estão sempre aqui. – Estação Terminal Jundiahy – disse. Ressoam dos aços as palavras dispersas até que enfim esbarram em tijolos e em madeiras podres da construção avelhantada. Gente pobre, gente cansada e fodida que irá acotovelar-se até o fim dos tempos à espera desses vagões negreiros. – A CPTM informa: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma – disse. – A CPTM informa: evite desconforto aos demais usuários! Ao embarcar, leve sua mochila nas mãos. Colabore! – disse. Esses alto-falantes não dão trégua. O aglomerado se agita ao assobio ainda distante, mas que já vem se aproximando. Trens lotados que esvaziam e reenchem: odores, idas e vindas; cargas e descargas – A CPTM informa: Senhores usuários, bom dia. Este trem tem como destino a Estação Terminal Luz. – disse, mas já não havia quem se dispusesse a ouvir. Vidas periféricas, bairros e assentos dormitórios disputados no grito e no soco. Lá, bem longe, a cidade grande em concreto armado se insinuará para mais um dia de cansaço. Afobação, correria e estrondos, mas não por causa do esguicho de vômito de um pinguço de meia-idade, nem mesmo se trata de algum suicida que se jogou na linha. No instante em que a embarcação abre as portas, num ponto próximo da plataforma, alguém que saiu empurrando tudo pela frente tenta escapar dos fardas-bege. Mas é pego antes de alcançar o alambrado que abraça a estação. Leva coronhadas, muitos chutes, um dos milicos vai à forra e lhe cospe na cara, três vezes. – A CPTM informa: evite acidentes, não sente no piso do trem – disse. É um marreteiro com suas sacolas pesadas. A mercadoria de amendoins salgados e doces que seria para o dia inteiro é apreendida, os guardas gritam para que ele mostre o dinheiro, o lucro proibido – ninharias de dar pena, ele ainda não havia começado sequer a fazer os corres. É só um marreteiro, inexperiente, ambulante nos seus mangueios. Talvez venha daí o único sustento, talvez tenha sido o único jeito de pagar as contas de uma casa alugada ou a pensão alimentícia de um filho que quase não vê. Ninguém saberá. Agora ele permanece com a cara no chão, imobilizado. Gritos de revolta contida, algumas pessoas empunham celulares, gravam o ocorrido. Os milicos o levantam e ele reluta enquanto fios de saliva rubra lhe escorrem da beirada da boca e empapam a camiseta velha cheia de números de um vereador arcaico. Ele é levado, seus olhos pesados de vergonha evitam a direção das plataformas, diante dele viram os rostos. Um homem exposto à reprovação e

Estação Francisco Morato

HOMENS HORA [HH]: – É a soma das horas consumidas pelo total de homens que executam determinado serviço.   Glossário dos Termos Ferroviários A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa: A CPTM informa – disse. E essas frases sem paz ressoam entre ouvidos castigados, perturbam os ânimos, esfolam os sentidos e derrubam todo e qualquer ímpeto de esperança. Os trens da CPTM são comboios sucateados de mortos-vivos que pagam bilhetes num preço absurdo pelo conforto mínimo. Aqui o povo negro e pardo vive explorado e não é figurante no cenário, é a regra da desigualdade: são empregados, repositores de estoque, açougueiros, sapateiros, mães solteiras, enfermeiras, balconistas, faxineiras terceirizadas, ex-presidiários, mecânicos, pedreiros, motoristas, cantineiros, ajudantes, babás, desempregados, chapeiros, jardineiros, pintores, universitários e universitárias, cozinheiras, porteiros, torneiros, manobristas, mc’s, policiais, vigilantes, marceneiros, secretárias, bicheiros, garçons, serralheiros, padeiros, soldados, vendedores & vendedoras, marreteiros, putas, funcionários públicos, atendentes de telemarketings, manicures, caixas de supermercados, pedicures, cuidadoras de idosos, cabelereiras, recepcionistas, temporários, encanadores, eletricistas, camelôs, estudantes etc. Assalariados e assalariadas que prestam serviços longe de suas casas quase sempre alugadas e que, na maioria das vezes, atendem à gente que jamais imaginou a correria diária na imundice dessas latas de sardinha. As mãos e os pés anônimos que vendem centenas de milhares de horas para oferecerem confortos que desconhecem. – A CPTM informa: estre trem não prosseguirá viagem. Por favor, desembarque nesta estação. ESTAÇÃO FRANCISCO MORATO. Desembarque pelo lado direito do trem. A baldeação em Francisco Morato é degradante, mas o simples fato de milhares de pessoas passarem uma parte da sua jornada em condições assim não abala os poderosos. Eles disseram que haviam eliminado a necessidade de baldeação, pura lorota politiqueira. Quantos políticos pegam trens lotados? Quantos políticos saem no soco por conta de um lugar para sentar? Quantos políticos suportariam a subaqueira diária? Quantos políticos suportariam o cheiro de mijo, merda e vômito nos banheiros ridículos das estações? Quantos políticos tomam enquadro dos farda-bege? Quantos políticos esperam pelo próximo trem a dar entrada na estação? Quantos políticos economizam para o dinheiro da ida e da volta no dia seguinte? Quantos políticos bebem a água podre desses bebedouros? Quantos políticos transpiram rancor nas plataformas? Quantos políticos andam com os pobres fora da temporada de caça aos votos? Toda vez que sigo nesta viagem sinto o desconforto em ser um universitário pobre que acompanha a injustiça escancarada das linhas férreas. Há anos que ando de trem e nunca vi melhorias reais. Os inconvenientes das reformas da estação Francisco Morato duraram anos, mais de uma década: licitações, concessões, melhorias nas vias, modernizações da estação, das máquinas, dos sistemas de segurança, dos trilhos, todos esses termos são palavrinhas bonitas para maquiarem o desvio de dinheiro público e a destruição generalizada de um transporte que nunca, jamais, teve vocação pública e digna. E assim o mundo segue… Em 2007, usuários e usuárias da CPTM se revoltaram; em 2013 – enquanto muita gente acreditava viver a belle époque dos esportes – também houve manifestações e destruição nas dependências da estação; mas, em 2018, a fúria foi maior: vidros foram quebrados, choveram pedras sobre alguns trens, os pichadores exerceram sua arte da revolta e a bilheteria e todas as catracas foram incendiadas sem dó. Foi lindo e eu, anárquico, estive lá. Foi lindo, apesar da milícia de São Paulo, cães de guarda dos poderes alheios, ter atirado balas de borracha e spray de pimenta contra a população. Foi lindo, apesar dos jornais e canais de tevês retratarem tudo de forma ultraconservadora, hipócrita, sempre com o mesmo discursinho furado de quebra-quebra. A estação Francisco Morato passou quatro dias com as catracas abertas, até quem nem queria fazer viagem de trem deve ter entrado, só pelo prazer – e por que não dizer direito – da gratuidade dos meios de transporte. Incrível é ver como vidros quebrados chocam mais nossa opinião pública do que o descaso diário e as condições de vida dos empobrecidos. E ainda assim há quem acredite que vandalismo contra o poder é mais nocivo que o próprio poder. – A CPTM informa: Senhores usuários, boa tarde. Este trem tem como destino a estação LUZ. A CPTM deseja a todos uma boa viagem. – disse. São quase nove horas da manhã de um dia angusto e, enquanto penso-rabisco isso, um senhor de uns cinquenta anos que viaja ao meu lado no banco exíguo tosse duas vezes, puxa a carteira miúda, e acena para um marreteiro que passa com quatro sacolas pesadas. – Taí, meu patrão, três amendoins e três sorvetes, obrigado meu patrão, toma aí seu troco, gratidão, gratidão. O senhor de uns cinquenta anos abre os três pacotes de amendoins quase que num só fôlego, come tudo. No instante seguinte ele desembrulha os três sorvetes quase derretidos de milho verde, sorve tudo. Não quero crer, não quero crer, mas sei que a verdade última do cotidiano me faz ver que a soma dos sorvetes e amendoins será a maior refeição que este homem fará hoje. No trem, todos os estômagos sofrem, são ansiosos. Os marreteiros recomeçam: amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado, amendoim salgado. https://urutaurpg.com.br/siteluis/lucio-um-cadeirante/ ASSISTA AO PROGRAMA PAUTA LIVRE COM HILDON VITAL DE MELO, O CAMALEÃO ALBINO: Estação Franco da Rocha Estação Baltazar Fidélis Estação Botujuru Estação Campo Limpo Paulista Estação Várzea Paulista Estação Terminal Jundiahy