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Memória

Um povo sem memória é um povo sem história.

Eric Hobsbawm – A história em uma vida

Eric Hobsbawm – Neste primeiro de outubro, é lembrado em todo o mundo o gênio de Eric Hobsbawm, que faleceu em um dia como hoje em 2012. Se não nos enganamos, ele foi o maior historiador do século vinte. Talvez a sua obra se mantenha ainda acima dos demais até mesmo nos mais recentes dias deste século. Como agora, quando atravessamos um Brasil de governo fascista. É uma pena, é lastimável, que em alguns estudos acadêmicos ele seja posto de lado, porque possuiu até o fim da vida uma filiação marxista. A direita e seus liberais não o suportam. E por quê? Antes de taxá-lo e tachá-lo de indivíduo comunista, como se isso fosse um grau menor de ética em um homem, deveriam pelo menos ver as contribuições e conceitos inovadores que a sua obra inaugurou. Como a “invenção da tradição”, sobre a qual Hobsbawm trouxe esta luz: “Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado… A propósito, deve-se destacar um interesse específico que as ‘tradições inventadas’ podem ter, de um modo ou de outro, para os estudiosos da história moderna e contemporânea. Elas são altamente aplicáveis no caso de uma invenção histórica comparativamente recente, a ‘nação’, e seus fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretações históricas, e daí por diante”. Observe-se a propósito o que o grande historiador Evaldo Cabral de Mello pensa sobre a tradição da Batalha dos Guararapes, até hoje ensinada nas escolas e monumentos cívicos como o cerne da nacionalidade brasileira. No livro “O Negócio do Brasil – Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641/1649”, o historiador pernambucano escreve que a expulsão dos holandeses não foi resultado de guerra heroica, da Batalha dos Guararapes, mas de um acordo pelo qual Portugal pagou 4 milhões de cruzados (equivalentes a 63 toneladas de ouro) para ter o Nordeste brasileiro de volta. Um fato que não entra na tradição inventada. Lembremos ainda, de passagem, o seu conceito de “banditismo social”. Em seu livro Bandidos, moderno e clássico à semelhança de poesia, Eric Hobsbawm fala: “Convém que comecemos com a ‘imagem’ do ladrão nobre, que define tanto seu papel social quanto sua relação com os camponeses comuns. Seu papel é o do paladino, aquele que corrige os erros, que ministra a justiça e promove a equidade social. Sua relação com os camponeses é de solidariedade e identidade totais. O ladrão nobre inicia sua carreira de marginalidade não pelo crime, mas como vítima de injustiça, ou sendo perseguido pelas autoridades devido a algum ato que estas, mas não o costume popular, consideram criminoso”. Notem que Hobsbawm possuía o talento raro, raríssimo, de extrair o que é universal de características locais. Ele escreve Bandidos a partir do estudo partícular de casos de famosos marginais na Inglaterra, China, México, Estados Unidos, Itália, Espanha… Mas é impossível para um nordestino do Brasil não ver no trecho acima um retrato de Lampião! E, de fato, o bandido social do Nordeste é referido em vários pontos do livro, como aqui: “Quando Virgulino Lampião tinha 17 anos, os poderosos fazendeiros Nogueira expulsaram os Ferreiras (da família de Lampião) da fazenda onde viviam, acusando-os falsamente de roubo. Assim começou a rixa que o levaria à marginalidade. ‘Virgulino’, recomendou alguém, ‘confie no divino juiz’, mas ele respondeu: ‘A Bíblia manda honrar pai e mãe, e se eu não defender nosso nome, eu perderei minha humanidade’… (Diante da sua morte) a reação de um sertanejo talvez seja mais típica. Quando os soldados chegaram com as cabeças dos cangaceiros, de forma a convencer todos que Lampião estava realmente morto, um sertanejo disse: ‘Mataram o Capitão porque a reza forte nada adianta na água’. É que o último refúgio de Lampião havia sido o leito seco de um ribeirão, e de que outra forma, senão pelo fracasso da magia, podia-se explicar a derrota de Lampião?”.     Mas esses livros acima, de conceitos inovadores, são apenas duas de suas muitas contribuições publicadas, que vão do jazz à recriação original da história. A sua fama se fez nos livros que se tornaram best-sellers: A Era das Revoluções, que fala da transformação do mundo entre 1789 e 1848, da Revolução Francesa de 1789 à revolução industrial inglesa; A Era do Capital, que trata da expansão da economia capitalista em todo o planeta, de 1848 a 1875; A Era dos Impérios, de 1875 a 1914 ; A Era dos Extremos – o breve século XX, que interpreta o período de 1914 a 1991, do qual fala no prefácio: “o meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida — do início da adolescência até hoje — tenho tido consciência dos assuntos públicos”. Trata-se, portanto de um historiador de vista larga e profunda, que refletiu sobre as dores e alegrias dos séculos sobre os quais escreveu. Ou melhor, dos séculos sobre os quais participou escrevendo. Neste momento, tenho diante de mim a biografia “ERIC HOBSBAWM Uma vida na história”, um tijolaço agradável, suave de 728 páginas, anotado, mastigado e digerido. Pois é, quando um assunto nos interessa, também mastigamos tijolos como a mais apetitosa iguaria. Mas o melhor virá a seguir. Em um resumo da vida de Eric Hobsbawm, o seu biógrafo Richard Evans fala em uma entrevista: “Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, cresceu em Viena e Berlim e se estabeleceu no Reino Unido (nasceu e continuou sendo um cidadão britânico). Hobsbawm passou muito tempo na França na década de 1930 e novamente na de 1950. Seus relatórios escolares indicam que sua língua nativa era inglês/alemão – sua mãe, uma tradutora, insistia que a família falasse em inglês em casa. Ele tinha um francês fluente e, mais tarde, aprendeu italiano e espanhol. Hobsbawm esteve sob vigilância do MI5 desde a guerra – por quanto tempo, não sei, já que não tive permissão para

9 de Julho: quando os paulistas comemoram uma derrota

Revolução de 1932 – A Revolução Constitucionalista de 1932 marcou a insurgência do povo paulista contra o resto do país e buscava a derrubada do governo provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova Constituição.  Os paulistas nunca engoliram Getúlio Vargas na destruição da política do café paulista com o leite mineiro em 1930. E com isto, o nome de Getúlio Vargas foi banido das ruas, praças, avenidas, escolas, faculdades, universidades, hospitais, prédios, bairros, cidades etc…etc… O ex-governador Armando Salles de Oliveira convocou os escritores das academias e do instituto histórico de São Paulo, Afonso d’Escragnolle Taunay, Alfredo Éllis Jr., Alcântara Machado, Paulo Prado, Cândido Mota Filho, Cassiano Ricardo e outros. Era o início de uma lavagem cerebral com o objetivo de destruir Getúlio Vargas do mapa e endeusar os bandeirantes assassinos de índios durante mais de 100 anos. Além de roubarem as pedras preciosas e ouros das nossas Minas Gerais, Goiás e outros estados. As toneladas do metal dourado serviram para reconstruir as cidades e as igrejas ornamentadas de ouro depois do terremoto de Lisboa, em 1755. E ainda sobrou tanto ouro que mandaram para a pobrezinha Inglaterra, que deveria ser para fabricação de dentadura de ouro para a realeza. Os escritores amestrados globalizaram os bandeirantes em materiais escolares, hinos, matérias em jornais, revistas e tudo quanto é propaganda, além nas rodovias paulistas com os nomes de Anhanguera, Raposo Tavares, Fernão Dias, Pedro Taques, Bandeirantes e os Monumento às Bandeiras do Victor Brecheret e a horrorosa estátua de Borba Gato.                   Getúlio descendente de um bandeirante O filho de Getúlio Dorneles Vargas, Lutero Sarmanho Vargas escreveu o livro A revolução inacabada, onde contou que, em relação ao nome Vargas, “cabe registrar que meu pai, se não fosse uma paixão de seu bisavô paterno, poderia ter se chamado Bueno, pois esse bisavô chamava-se Francisco de Paula Bueno. Segundo Aurélio Porto, os Buenos são de ascendência conhecida. Originam-se de Bartolomeu Bueno de Ribeira, natural de Sevilha que foi para São Paulo em 1571. Entre os descendentes de Bartolomeu sobressai Amador Bueno, o homem que não quis ser aclamado rei. “Meu tio Benjamim contou-me que esse bisavô Bueno, apaixonando-se por uma professora, largou a mulher e filhos e foi-se com seu novo amor, montados a cavalo. Quando os filhos chegaram em casa, sua mãe, Ana Joaquina de Vargas, informou-lhes do sucedido e eles, em número de cinco, saem em busca do pai. Encontrando-o, este os recebe de maus modos e perguntou-lhes o que desejavam. Os filhos responderam-lhe que não desejavam brigar e sim apenas levá-lo de volta para casa. Respondeu-lhes: Já estão ‘taludos’ para necessitarem de um pai, voltem para casa. Eu não vou com vocês, vou fazer uma nova vida com esta que me acompanha. Os filhos voltaram e riscaram em definitivamente o nome Bueno”. Lutero lembrou que o exército paraguaio invadiu São Borja em 10 de junho de 1865. Um dos Voluntários da Pátria, estava o jovem Manoel do Nascimento Vargas. Em Itaqui, cidade vizinha de São Borja, chegou o 1º. Tenente Francisco de Paula Sarmanho, vindo do Pará, para servir a Marinha de Guerra do Brasil. Esse tenente casou com Virgínia Ferreira que foi o avô paterno de sua mãe Darcy Vargas. Manoel do Nascimento Vargas como sabia ler e escrever foi promovido a cabo. Quando ele passou pela fazenda de Santos Reis, de propriedade do Major Serafim Dornelles, conheceu Cândida Francisca Dornelles. Depois que deu baixa no exército o jovem capitão foi trabalhar no comércio de couros e erva-mate e, em uma de suas passagens pela fazenda de Santos Reis, pede Cândida Dornelles em casamento, que foi celebrado em 16 de janeiro de 1872. As três filhas do austero major Serafim Vargas casaram com maridos de grandes posses. A mais velha Leocádia, casou com Antônio Garcia, um abastado fazendeiro e futuro padrinho de Getúlio Vargas, que não tinha herdeiros e deixou herança para o afilhado a fazenda Figueira. A filha Luiza casou com Aparício Mariense da Silva, rico fazendeiro e político famoso. A filha caçula Zulmira casou com Periandro Malveiro da Motta, da casa fidalga dos Malveiro de Portugal. No primeiro governo de Leonel Brizola, em 1983 tivemos o Periandro Motta, coronel do exército, que foi tesoureiro do PDT, trabalhou como diretor da Loterj e diretor do Detran na gestão de José Colagrossi quando foi Secretário Estadual de Transportes. E para refrescar a memória, é bom lembrar que uma das grandes vitórias de Getúlio Vargas foi conquistada nas eleições de 1945. Sem sair da sua fazenda, Getúlio recebeu nada menos que 1 milhão e 300 mil votos, sendo eleito senador por dois estados, Rio Grande do Sul e São Paulo, e deputado federal pelo Distrito Federal e mais seis unidades da federação. https://www.zonacurva.com.br/a-paranoia-anticomunista-com-80-anos-de-atraso/

13 de maio

13 de maio – Os primeiros trezes de maio que lembro, em mistura aos goles do café, me vêm do Ginásio Ipiranga na infância. Olho para o lado agora como se nada visse, assim como os colegas negros em 1961 olhavam de lado, ou baixavam os olhos, ao ouvirem a lição lida em voz alta no livro didático: “ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO – A escravidão negra foi introduzida no Brasil em 1550. Não tendo os portugueses conseguido escravizar os índios para obrigá-los a trabalhar na lavoura, resolveram utilizar negros africanos nessa tarefa…” E mais adiante, todos haviam que decorar a resposta certa da pergunta no questionário: “Por que foi introduzida a escravidão negra no Brasil?”. Ora, respondíamos todos (negros, brancos e mulatos), “porque os portugueses não conseguiram escravizar os índios para obrigá-los a trabalhar nas lavouras”. O espaço daquele aprendizado era um círculo fechado, redundante: os índios não quiseram trabalhar como escravos, daí que a solução foi importar negros da África. E, naturalmente, os negros foram escravizados porque os índios eram rebeldes. Então, para dar substância ao círculo, era ensinado que os negros vinham mansos, passivos, cordatos, porque assim era a sua natureza, ser negro e escravo em uma só pessoa. Então os meus antigos amigos, colegas, olhavam de lado. É interessante notar que, no Brasil de 1961, negros eram os meninos de pele mais escura que a nossa. Negros eram os meninos de cabelo mais duro que o nosso. Negro não era uma raça, era uma cor do lápis de cor, ou a cor do grafite em toda a pele. E por isso líamos todos as lições que confirmavam a exclusão geral, como se fosse uma exclusão particular de outros, dos outros negros, diferentes de nós mesmos: “A PRINCESA ISABEL ASSINA A LEI ÁUREA – … A Regente vai lançar o nome no pergaminho, quando, em nome do povo, recebe uma caneta de ouro, cravejada de pedras preciosas. E é com a bela caneta de ouro que assina a lei que a Nação enternecida cognominou de ‘áurea’. Da rua, a multidão, em altos brados, exige a presença de Isabel. E a Princesa aparece à janela, tendo ainda na mão a pena com que acabou de dar liberdade à raça negra do Brasil. Na praça inteira, o povo agita os braços festivamente, bradando em coro, em pleno delírio: – Redentora! Redentora! Redentora!…” Um dia ainda vou escrever sobre o grande mal que esse tipo de educação fez a todos nós. Uma educação mitificadora, preconceituosa, de omissões e mentiras. Todos nós aprendíamos um Brasil sem conflitos e sem história. Aprendíamos um Brasil ideal para as sinhazinhas prendadas. Lá na sala de aula, em todos os trezes de maio nos virávamos para os negros, para os de pele mais escura que a nossa. Os meus colegas, os meus amigos, incapazes de uma resposta plena da rebeldia dos quilombos, baixavam os olhos. Os meus irmãos de pele e coração às vezes sorriam, sorriam com o seu riso mais branco que os detergentes da televisão, sorriam só com os dentes brancos, quando ouviam: “hoje é teu dia, negão”. E com isso passávamos adiante a formação da escola burra, uma escola que passava o apagador até mesmo em nossa história familiar de negros, com a pregação da redentora Princesa Isabel, Santa Isabel, que libertara os negros do Brasil. Somente muitos anos depois, em São Paulo, vi um treze de maio diferente. Em 1978, vi um treze de maio de negros de todas as cores, de todas as raças, que repunham em lugar da salvadora dos pobres negrinhos um orgulho e uma disposição de puxar o véu da história. Mas então já não estavam ao meu lado os amigos, irmãos, colegas do Ginásio Ipiranga. Aqueles, de pele mais escura que a minha, que baixavam os olhos. Eles haviam carregado para o resto das suas vidas as lições de perguntas fechadas e respostas prontas. Quem salvou os negros do Brasil? “A Princesa Isabel”, os antigos colegas sabiam na ponta da língua. E por isso viraram médicos medíocres, funcionários servis, engenheiros mesquinhos, indivíduos sem humanidade que mantêm distância dos negros mais pobres. Vocês não sabem o quanto é bom ter chegado a um 13 de maio, agora, quando as novas gerações sorriem e zombam da redentora, da princesa que salvou os negrinhos de alma branca. Viva este novo tempo. Do meu canto, saúdo com um cafezinho negríssimo todos os negros. Todos os negros que somos, claros, mulatos, brancos e homens livres do Brasil. As mortes negras e o Estado racista  

Dom Hélder Câmara e o Brasil hoje

Imagino Dom Helder Câmara no país destes dias sombrios, hipócritas, de bancada da Bíblia e fundamentalistas. E não é preciso muito imaginar, porque ele já nos respondeu em uma crônica para o rádio em 28 de janeiro de 1977. Da fala e texto, destaco: “É impressionante como é fácil parecer bom e como é difícil ser justo. Mas Justiça, para muitos, tornou-se uma palavra perigosa e feia”. Dom Hélder Câmara nasceu há 110 anos, em 7 de fevereiro de 1909 em Fortaleza e morreu em 27 de agosto de 1999 em Recife Notaram Sergio Moro e Cia? E continuou Dom Hélder Câmara para estes dias: “Meu amigo Luís Antônio meteu na cabeça que falar em Direitos Humanos, bater-se pela justiça, é linguagem de quem, sabendo ou sem saber, está mordido de comunismo. Tentei um dia lembrá-lo: os Direitos Humanos foram proclamados  solenemente pela ONU, inclusive pelo Brasil” Sim, ministrinho medíocre das relações exteriores. Sim, bancada da bala e da bíblia prestem atenção na fala acima de 1977. E continuou Dom Hélder a falar para o Brasil de hoje: “Meu amigo Luís Antônio comentou:  ‘a ideia de Direitos Humanos foi generosa e justa, mas os comunistas se meteram no meio’.  Ele acha que os Papas se deixaram iludir por esquerdistas, que se a Igreja se preocupar com os Direitos do Homem e com a justiça como condições para a paz, não será mais a Igreja de Cristo. Luís Antônio, cuidado! Você quer é que a Igreja dê cobertura a seus interesses bastante egoístas”. Eu poderia parar aqui. Nos parágrafos acima, Dom Hélder já falou o essencial para os religiosos atrasados do Congresso Nacional. Já expressou muito bem as trevas dos bolsonaristas, bolsominions, que viraram um palavrão. Mas posso ir um pouquinho mais para situar o profeta destes dias, quando ele falava sobre o Brasil da ditadura. Lembro-me de Dom Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese. Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre poucas vezes mencionado. Dom Hélder era um orador excepcional. Franzino, baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu pensamento em nossos espíritos. “A Vida é um dom divino. É o nosso Deus, o nosso Criador e Pai que nos chama à Vida. Ele veio à terra para que todos tenham Vida e Vida plena… Ora, a Vida está sendo atingida, aviltada, ameaçada de extinção”  No discurso vivo de Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de suas palavras. Com os olhos graúdos, sem gritar, ele comovia a todos. Para falar do afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que éramos solidários, ele fez com que todos cantássemos o “Como vai você?”, de Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos: “Como vai você? Eu preciso saber da sua vida. Peça a alguém pra me contar Sobre o seu dia. Anoiteceu e eu preciso de saber” Da segunda vez, eu não o vi, mas pude ouvi-lo no rádio. Dom Helder perguntava no ar: “O que fazer quando as flores murcham? Uma roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores…Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores. O que fazer quando as flores murcham? O que responder a uma roseira sozinha, que não terá um Deus a seu lado na ressurreição, porque um dia ela será murcha?”. E respondia o poeta Hélder Câmara:  “Eu não posso imaginar um céu sem flores”. Hoje, continuamos a sua fala: nós não podemos imaginar um mundo, em qualquer céu, onde não caibam todas as diferenças. E mais. Pois assim como existem urtigas entre as flores de humanidade, também existe chão até para os fanáticos da bíblia, aquela que se lê com preconceito e fundamentalismo. Mas em seu devido lugar: fora do poder de nos obrigar a seu atraso. As flores de Dom Hélder pedem passagem. Papa Francisco defende preservação do meio ambiente em nova encíclica Papa Franciso autoriza beatificação do bispo salvadorenho Óscar Romero

As pautas e os ecos de Junho de 2013

por Tatiana Roque e Mariana Patrício É comum ou­virmos que os ma­ni­fes­tantes de Junho de 2013 não ti­nham pautas. Teria sido uma re­cusa em bloco ao sis­tema po­lí­tico, abrindo ca­minho para a crise de re­pre­sen­tação que es­tamos vi­vendo. Claro que Junho foi muita coisa, e as aná­lises ainda de­pendem da ge­o­grafia dos pro­testos. O Rio de Ja­neiro, talvez pela pre­sença im­por­tante das obras da Copa e dos Jogos Olím­picos, é pa­ra­dig­má­tico de temas-chave abor­dados nas ruas.  Em pri­meiro lugar, as grandes pas­se­atas de Junho apon­tavam de modo unâ­nime Sérgio Ca­bral como sím­bolo da in­sa­tis­fação. Ne­nhum outro grito contra po­lí­ticos era capaz de unir os ma­ni­fes­tantes a não ser aqueles que se in­sur­giam contra Ca­bral. O go­verno fe­deral era lem­brado de modo vago e es­parso, apenas na me­dida em que era aliado do PMDB no es­tado do Rio de Ja­neiro. O slogan “Não vai ter Copa” pre­cisa ser en­ten­dido nesse con­texto. Muita gente se sentia ex­cluída do pro­jeto he­gemô­nico na­quele mo­mento, um pro­jeto de cres­ci­mento sem povo, re­for­çado por con­luios oli­gár­quicos que atro­pe­lavam, li­te­ral­mente, as casas das pes­soas (como na Vila Au­tó­dromo). A in­sa­tis­fação, con­tudo, não sig­ni­fi­cava uma re­jeição em bloco do que ti­nham sido as po­lí­ticas dos go­vernos pe­tistas até ali. Bem pelo con­trário, é pos­sível dizer que Junho de 2013 foi um mo­vi­mento por “mais”: mais ser­viços pú­blicos de qua­li­dade, mais mo­bi­li­dade, mais di­reitos, mais par­ti­ci­pação, mais ações contra nossas de­si­gual­dades his­tó­ricas. Era essa a rei­vin­di­cação im­plí­cita nos gritos por “saúde e edu­cação pa­drão FIFA”. O mo­vi­mento de jo­vens que se or­ga­nizou por uma CPI dos trans­portes, che­gando a ocupar a Câ­mara dos Ve­re­a­dores do Rio de Ja­neiro, iden­ti­fi­cava pre­ci­sa­mente o pro­blema da caixa preta dos ônibus, em grande parte con­tro­lados pela máfia de Jacob Ba­rata em con­luio com di­fe­rentes go­ver­nantes flu­mi­nenses. A von­tade de exercer o pro­ta­go­nismo na pes­quisa dos dados dos trans­portes pú­blicos e a iden­ti­fi­cação da con­cen­tração de poder em torno desse nome deram origem ao Ca­sa­mento da Dona Ba­ra­tinha, pro­testo per­for­má­tico em frente ao Co­pa­ca­bana Pa­lace, onde a filha de Ba­rata se casou. As po­lí­ticas dos pri­meiros go­vernos Lula – em es­cala macro, mas também micro – ti­veram efeito ex­pres­sivo na pro­dução de novos atores so­ciais e po­lí­ticos. São exem­plos: or­ga­ni­za­ções autô­nomas da ju­ven­tude, grupos cul­tu­rais, co­le­tivos de mídia e mo­vi­mentos ne­gros e de mu­lheres. Uni­ver­si­dades mais de­mo­crá­ticas exer­ceram um papel im­por­tante na po­li­ti­zação dos jo­vens, pois fi­zeram emergir forças in­te­lec­tuais cons­ti­tuintes de uma nova ge­ração po­lí­tica.  Ao in­serir grande par­cela da po­pu­lação nas re­la­ções pro­du­tivas que in­te­gram a so­ci­e­dade do co­nhe­ci­mento, a de­mo­cra­ti­zação da uni­ver­si­dade teve efeitos po­si­tivos além dos es­pe­rados. Ou­tras me­didas es­pe­cí­ficas, como os pontos de cul­tura, também agiram nesse pro­cesso. A par­ti­ci­pação na pro­dução de cul­tura e o in­gresso no en­sino su­pe­rior, so­madas às trans­fe­rên­cias de renda, abriam a pos­si­bi­li­dade para novas po­si­ções sub­je­tivas. Isso tudo tor­nava as pes­soas ca­pazes de pedir mais e trazia à cena novas pos­si­bi­li­dades de con­tes­tação. Di­ante disso, é bas­tante sur­pre­en­dente que qua­dros do pró­prio PT as­so­ciem Junho de 2013 a um mo­vi­mento de di­reita, dado que foi um pro­duto po­si­tivo das po­lí­ticas pe­tistas. Fer­nando Haddad, por exemplo, em texto re­cente na re­vista Piauí, per­gunta: “como ex­plicar a ex­plosão de des­con­ten­ta­mento ocor­rida em Junho da­quele ano (…) O de­sem­prego es­tava num pa­tamar ainda baixo; a in­flação, em­bora pres­si­o­nada, en­con­trava-se em nível su­por­tável e corria abaixo dos re­a­justes sa­la­riais; os ser­viços pú­blicos con­ti­nu­avam em ex­pansão, e os di­reitos pre­vistos na Cons­ti­tuição se­guiam se am­pli­ando”. Parte-se da pre­missa de que as pes­soas só vão às ruas quando estão em má si­tu­ação econô­mica. Pen­samos o con­trário. A es­ta­bi­li­dade econô­mica, so­mada à in­clusão de jo­vens ur­banos em es­feras antes res­tritas à elite e ao acesso a bens cul­tu­rais, tor­nava as pes­soas mais po­tentes, “em­po­de­radas”, logo, em me­dida de pedir mais. Por outro lado, os pro­testos mar­cavam o es­go­ta­mento de um tipo de adesão ao pro­jeto de de­sen­vol­vi­mento em curso. Parte do apa­relho pe­tista, em sua de­riva bu­ro­crá­tica, perdeu a di­mensão de que po­li­ti­zação tem a ver com au­mentar a ca­pa­ci­dade e a au­to­nomia das pes­soas co­muns. No livro Quando novos per­so­na­gens en­traram em cena: ex­pe­ri­ên­cias, falas e lutas dos tra­ba­lha­dores da Grande São Paulo, 1970-80, Eder Sader des­creve os novos per­so­na­gens que en­traram em cena. Na época, eles aca­baram se or­ga­ni­zando no par­tido-mo­vi­mento que foi o Par­tido dos Tra­ba­lha­dores. Em 2013, esse par­tido não con­se­guiu en­tender quem eram aquelas novas per­so­na­gens. Não teria sido di­fícil, em di­fe­rentes es­feras de go­verno, con­vocar os su­jeitos so­ciais e po­lí­ticos emer­gentes para for­mular po­lí­ticas vol­tadas para se­tores de­ter­mi­nados. Só para dar al­guns exem­plos: al­ter­na­tivas de co­mu­ni­cação ca­pazes de com­pre­ender as di­nâ­micas das redes so­ciais e pro­duzir maior par­ti­ci­pação; po­lí­ticas pú­blicas em di­fe­rentes áreas dis­cu­tidas em fó­runs na­ci­o­nais já exis­tentes; ex­pansão da ex­pe­ri­ência dos pontos de cul­tura para ou­tras áreas como pro­cesso for­ma­tivo da ju­ven­tude pe­ri­fé­rica; po­lí­ticas para a edu­cação bá­sica, for­mação de pro­fes­sores ou pro­dução de ma­te­rial di­dá­tico, em ar­ti­cu­lação or­gâ­nica com as uni­ver­si­dades e os ins­ti­tutos fe­de­rais; mu­dança de nossa ma­triz ener­gé­tica. Em 2014, co­meça a haver um des­com­passo entre as novas per­so­na­gens que sur­giram das po­lí­ticas pe­tistas e o pa­ra­digma pro­du­tivo então em vigor. Exemplo em­ble­má­tico dessa nova di­nâ­mica, em torno de ou­tros per­so­na­gens que em­pres­tavam pela pri­meira vez seus corpos à ação po­lí­tica, se passou em uma noite fria de julho de 2013, no bairro do Le­blon, um dos mais chi­ques e eli­ti­zados da ci­dade. Jo­vens mi­li­tantes de Junho, oriundos de vá­rios ou­tros bairros, ocu­param a rua do prédio em que mo­rava Sérgio Ca­bral. Foi dali que vimos chegar uma pas­seata de mo­ra­dores das fa­velas do Vi­digal e da Ro­cinha, vindo se juntar ao Ocupa Ca­bral, de­nun­ci­ando o de­sa­pa­re­ci­mento de Ama­rildo, mo­rador da Ro­cinha, que aca­bava de ser as­sas­si­nado pela po­lícia. Co­me­çava a res­soar, em di­versos cantos da ci­dade, a per­gunta que não podia mais calar: “Onde está o Ama­rildo?” Todo mundo sabia que Ama­rildo es­tava morto, as­sas­si­nado pela mesma po­lícia que batia nos ma­ni­fes­tantes. Mas não era uma per­gunta re­tó­rica. Era uma mu­dança na re­lação entre vi­si­bi­li­dade e in­vi­si­bi­li­dade que de­ter­mina a fron­teira entre as­falto e fa­vela no Rio

No enterro de Jango, o começo de uma caminhada

Bem-vindo ao Fatos da Zona, em que adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre. Neste vídeo, mergulhamos na vida e na trajetória política do presidente João Goulart, líder progressista que enfrentou desafios e lutou incansavelmente por justiça social no Brasil. Conheça a história desse presidente popular e suas políticas transformadoras que buscavam garantir direitos trabalhistas e combater as desigualdades.   por Elaine Tavares Era o início de dezembro de 1976. Na pequena cidade onde vivíamos não se falava em outra coisa. Jango estava morto. A notícia se espalhou como um rastilho de pólvora, afinal, São Borja era sua terra-mãe. Em casa, o clima era de profunda tristeza. Nossa vida inteira tinha sido marcada pela presença de João Goulart. Meu pai trabalhava para ele na emissora ZYF-2 Fronteira do Sul desde os anos 60, quando Jango já era o dono da rádio. Com essa marca, de ser uma rádio do Jango, a emissora atravessou os anos de chumbo, sempre vigiada e com os censores à porta. Quando veio o golpe e Jango se exilou no Uruguai, ele distribuiu as ações entre os funcionários e a rádio funcionava como uma cooperativa, algo realmente inusitado naqueles dias de ditadura militar. O faturamento era dividido entre eles. O pai tinha o cargo de gerente e, por incrível que possa parecer, a rádio seguiu transmitindo, ainda que vigiada. Quando o governo de Garrastazu Médici já chegava ao final, em 1973, as coisas ficaram mais difíceis. A rádio começou a ter problemas. Os trabalhadores não conseguiam provar que as ações tinham sido passadas pelo Jango, e a fiscalização não deu trégua. O pai chegou a ir até o Uruguai junto com outro diretor da rádio para ver com Jango como regularizar tudo, mas não conseguiram. Finalmente, em 1975, já no governo de Ernesto Geisel, num belo dia, o representante do Dentel (Departamento Nacional de Telecomunicações) na cidade foi até o transmissor e cortou o cabo da antena. A rádio estava fechada, com o transmissor lacrado, sem nenhuma explicação. Era o fim da generosa proposta de uma emissora de rádio cooperativada. Aquilo tudo foi um baque na vida da família. Sem emprego e ainda com a marca de ser um dos caras do Jango, a saída do pai foi montar um pequeno negócio junto com outro diretor da rádio. Uma tabacaria, bem em frente à praça. Não deu certo, mas isso já é outra história. Um ano depois do fechamento da rádio Jango estava morto e hoje é possível fazer as ligações sobre como a ditadura estava no pé do ex-presidente. Por isso não duvido de que tenha sido mesmo assassinado. Naquele triste dezembro de sua morte, surpreendentemente, a família foi autorizada a trazer o corpo para ser enterrado em São Borja, embora houvesse ordens expressas para ser um enterro discreto, sem aglomerações.  Mas, esse foi um “milagre” que a ditadura não conseguiu realizar. A cidade fervia. Todos se preparavam para receber Jango. Ele teria as honras do povo. Lá em casa, preparávamos nossa melhor roupa. Iríamos ver o presidente, chefe do nosso pai, desse o que desse. O exército montou uma operação de guerra para impedir que houvesse qualquer manifestação. Já na ponte entre Libres (Argentina) e Uruguaiana o carro com o caixão foi parado com a ordem expressa de que seguisse até São Borja em alta velocidade, para que as gentes não pudessem saudá-lo. Ainda assim, se soube de centenas de pessoas à beira da estrada, despedindo-se do presidente. O combinado com o chofer era de que seguisse imediatamente para o cemitério. Mas, sabe-se lá como, o carro foi direto para a Igreja Matriz, onde as pessoas já se aglomeravam aos milhares. Nós estávamos lá, eu e meu irmão, agarrados à mão do pai. São Borja nunca vira uma manifestação como aquela. Eram mais de 10 mil pessoas rodeando a igreja. Depois dos ofícios, os milicos ainda tentaram sair com o caixão para levar, de carro, até o cemitério. O povo não deixou. O caixão foi arrancado das mãos dos milicos e levados pelos são-borjenses, em caminhada, até a morada final. Devia ter mais de 30 mil pessoas nas ruas. Eu tinha 15 anos, mas já estava familiarizada com a luta contra a ditadura. Lá em casa, sempre falamos e soubemos de tudo. E politicamente estávamos ligados ao então MDB. Mas, aquele enterro foi uma espécie de batismo na luta aberta, na ação de massa. Porque na clandestinidade já atuava, distribuindo panfletos do MDB, durante as noites, denunciando a ditadura. Só que naquele dia, no meio da multidão, devo ter entendido que quando estamos juntos, os nossos desejos não podem ser detidos. Nada do que o exército planejara aconteceu. Tudo saiu do script, pelas mãos do povo, e Jango atravessou a cidade nos braços dos seus. Aquilo foi bonito demais, e, hoje, recordando cada minuto daquele dia com a ajuda das memórias do meu irmão, percebo que foi também um divisor de águas para mim. Quem conhece a fronteira sabe o quanto um dezembro pode ser calorento. Pois aquele dia foi assim. E durante o dia todo foi uma louca romaria, com os homens em mangas de camisa, suando em bicas, e as mulheres arrumadas para domingo, de salto alto e lágrimas no rosto. Eram quase cinco da tarde quando Jango finalmente desceu à sepultura. O cemitério cheio, gente por cima dos túmulos, todos dispostos a não arredar pé até o último instante de adeus. Eu, meu pai e meu irmão, então com 10 anos, éramos um pingo na multidão. E fizemos todo o trajeto, rendendo as homenagens, como toda a gente. A manifestação, rebelde, popular e massiva, e a quebra de todas as regras impostas pelos milicos ficaram marcadas em mim como um sinal. Era preciso enfrentar o que fosse para que nossa gente enterrasse a ditadura militar. E aquela despedida missioneira, dramática, cadente e sofrida, se fixou nas retinas, para sempre. Dois anos depois, já em Minas, integrei-me visceralmente à luta pela anistia e nunca mais deixei estar

50 anos da morte de Che Guevara

por Elaine Tavares Sempre que se fala em Che Guevara a primeira coisa que vem a mente é a imagem do soldado, do revolucionário. Essa era uma das facetas do Che. Mas não a única. Desde bem garoto ele inventou de andar pela América Latina, gostava de conhecer as gentes e, com elas, estabelecia vínculos de amor. Formou-se em medicina e ainda estudante voltou a percorrer os caminhos da América do Sul. Seu coração de jovem médico era apaixonado por essa América profunda, pelos trabalhadores e empobrecidos.  Não queria que a realidade fosse assim, tão dura, com os trabalhadores. E foi esse amor pela sua gente latino-americana que o levou a ser um soldado da revolução cubana. Com seus companheiros cubanos ele empunhou o fuzil para derrubar uma ditadura, mas também cuidou dos caídos, doentes e feridos. Médico e soldado, coração e razão, sempre andando junto. Quando a revolução foi vitoriosa, ele acabou sendo Ministro da Indústria e Comércio. Mas seu trabalho nunca foi só de gabinete. Ele andava pela ilha vendo as coisas com os próprios olhos, trabalhando junto com os trabalhadores no corte da cana, no carregamento dos grãos. Vivia como pensava. Ele acreditava que um homem e uma mulher revolucionários precisavam ser perfeitos, éticos, pautados pelo bem comum. Ele dizia: “temos de ser o melhor marido, o melhor filho, o melhor pai, o melhor estudante, o melhor trabalhador, o melhor tudo. Temos de ser perfeitos, para ser exemplo. Tudo aquilo que formulamos como moral para o outro, temos de ser”.  A palavra para ele não era coisa vã. Era a escritura de uma ação concreta na vida. Tanto que não conseguiu aquietar-se num cargo de ministro da recém liberta nação cubana. Aquela gente sofrida da América que ele conhecera nas suas andanças continuava amargando dores, misérias e exploração. Então, para ele não podia haver acomodação na vitória. Seu desejo era voltar e iniciar uma revolução na parte sul do continente. Mas, naqueles dias, outros povos clamavam por libertação. Eram as gentes do continente africano que começavam suas lutas de independência das colônias europeias e do racismo fomentado por elas. Che não pensou duas vezes. Largou a pasta de ministro e foi se fazer soldado de novo. Ele era movido por profundos sentimentos de amor. “Enquanto houver um irmão injustiçado, somos companheiros”, era seu lema.  Como poderia descansar se outros companheiros e companheiras estavam em luta. E lá se foi para o Congo e Angola, batalhando contra o apartheid e o colonialismo. Na volta da África, de novo, seu coração decidiu por fazer valer a ética que o caracterizava: o amor pelo outro, pelo caído, pela vítima do sistema capitalista, pelo que se levantava em rebelião. E, mais uma vez recusou cargos ou honrarias. Não haveria de descansar enquanto toda a América Latina não avançasse para um tempo de justiça. Foi quando viajou para a Bolívia, onde iria combater outra ditadura. Lá, por conta das diferentes condições históricas e erros de estratégia, foi capturado. Um dia depois, assassinado friamente por um soldado boliviano, mas a mando de agentes estadunidenses que foram chamados para documentar a morte do revolucionário. Não contentes em executar o então prisioneiro, desarmado e indefeso, os agentes lhe cortaram as mãos. Um toque de sadismo. Era preciso tripudiar do homem que ousara sair do comodismo de uma boa vida de médico burguês, e abraçar a causa dos trabalhadores, dos oprimidos. A última imagem que temos do Che é a de um homem morto, deitado numa mesa fria, com os olhos bem abertos, mirando o infinito. Nem na morte os seus carrascos conseguiram apagar a luz que emanava do seu ser. Amou as mulheres, amou seus filhos, amou Cuba, amou o conhecimento, amou os cubanos, amou os africanos, amou os latino-americanos, e por conta desse amor incondicional entregou sua vida.  Ele curou vidas, produziu teoria, dirigiu uma revolução, comandou um ministério, morreu por seus ideais. Esse é seu maior legado. Viveu o tempo todo, na prática, aquilo que apontava como teoria, como moral e como ética. Morreu de pé, olhando o inimigo no olho. Seu exemplo de ser humano é sua maior herança. E hoje, quando lembramos os 50 anos do seu assassinato, é isso que nos conforta. Che Guevara ainda é um caminho. Meu amigo Fidel  

Thomas Sankara lutou contra o fardo colonial na África

Bem-vindo ao Fatos da Zona, onde adaptamos os textos mais acessados do site do Zonacurva Mídia Livre. Este vídeo mergulha na vida extraordinária de Thomas Sankara, um líder revolucionário que desafiou o imperialismo e o colonialismo no Burkina Faso. Sankara é frequentemente chamado de ‘Che Guevara da África’ por sua visão progressista. Ele liderou uma revolução socialista que buscava justiça social, igualdade de gênero e independência econômica para seu país.   por Fernando do Valle Sankara -Alto Volta, pequeno e pobre país colonizado pelos franceses, sem acesso ao mar e fronteiriço a seis países (entre eles, Mali, Níger e Costa de Marfim) sofreu em 1983 um golpe de Estado, infelizmente comum nos países africanos. Mas dessa vez quem assumiu não foi mais um corrupto ditador defensor dos interesses das antigas metrópoles. Quem passou a comandar o país foi Thomas Sankara, jovem capitão do exército de apenas 34 anos, que rebatizou o país como Burkina Faso, a Terra dos Homens Íntegros, e se tornou figura emblemática no combate à pesada herança de séculos de colonização. Fortemente influenciado pelos ideais socialistas e anti-imperialistas, Sankara pregava que seu país não necessitava de ajuda humanitária como a doação de alimentos dos países ricos, que utilizavam esse método falsamente generoso para manter os africanos na miséria, como verdadeiros “pedintes”. Sankara afirmava que Burkina Faso produzia alimento suficiente para alimentar sua população e isso não acontecia devido à desigualdade, como sempre, e a desorganização do país. Em alguns anos de governo, Sankara realmente alcançou a autossuficiência alimentar do país. Thomas Isidore Noel Sankara nasceu em 21 de dezembro de 1949 e foi assassinado em 15 de outubro de 1987. Emiliano Zapata cumpriu a promessa que fez ao pai Acusado por um funcionário francês das Nações Unidas de militarizar o país, Sankara respondeu que tinha consciência das forças contrárias ao seu projeto político e que seus soldados eram treinados dentro do projeto político e ideológico para conscientizar a população do país. Sem essa consciência, afirmava Sankara, todo soldado é um potencial criminoso. É lógico que a teoria não funcionava com perfeição na prática. Segundo os ditames da revolução de Sankara, os soldados dos exércitos africanos deveriam libertar o povos reprimidos por regimes reacionários e opressores. Para isso, ele criou em Burkina Faso “Os Pioneiros”, grupo de meninos de até 12 anos educados dentro dos ideais do anti-imperialismo e do anticolonialismo. Se Sankara conseguiu feitos notáveis na área social, também tratava com mão de ferro sindicatos que se opunham ao seu governo. Durante uma greve, chegou a prender 1400 professores. Muitos desses professores passaram a ser substituídos por “professores da revolução” que passaram por breve treinamento de 10 dias. O autoritarismo e intolerância com os opositores era o traço que jogava a figura de Sankara na vala comum de dezenas de líderes e ditadores africanos. Além disso, Sankara chegou a criar tribunais revolucionários onde opositores do regime eram julgados com severidade. Por outro lado, algumas decisões de Sankara modificaram a dura realidade de Burkina Faso. Entre elas: ampla campanha de vacinação que praticamente erradicou doenças como poliomielite e sarampo, criação de programa de reflorestamento no país que sofria com a desertificação de boa parte de seu território, duro combate à corrupção, programa de mutirão que construiu centenas de casas retirando grande parte da população de barracos precários, reforma agrária e programa de irrigação que praticamente dobrou a produção de trigo por hectare no país, além da construção de estradas de ferro. Mesmo em um país pobre e com poucos recursos, o forte carisma de Sankara conseguiu mobilizar os burquinenses nessas empreitadas. O líder burquinês também reconheceu o direito das mulheres e incentivou a emancipação feminina na forte cultura machista africana indicando mulheres como ministras e na formação militar. Vídeo produzido por “Media Alien” reúne alguns trechos de discursos de Sankara: Adepto do pan-africanismo, Sankara aproveitou uma conferência em Adis Abeba, na Etiópia, que reuniu vários líderes africanos, para questionar a imoralidade da dívida externa contraída por governos africanos submissos aos antigos colonizadores. O líder burquinês enxergava na dívida externa a perpetuação do poder dos países europeus sobre o continente africano. Ainda dentro dos ideais da união africana, Sankara fez um duro discurso em que colocou o presidente francês François Mitterrand contra a parede quando o recebeu em Burkina Faso em 1986 ao questionar a recepção em solo francês do líder sul-africano Pieter Botha. Sankara afirmou que Botha passeou com suas “mãos e pés cheios de sangue” tranquilamente em Paris. Botha reprimia com violência a luta contra o apartheid na África do Sul. Para escapar da saia justa, Mitterrand falou que o discurso do presidente de Burkina Faso era fruto da “juventude e do amor por seu povo”. Sankara também tomou fortes medidas de austeridade nos gastos públicos: diminuiu seu salário e de seus ministros, substituiu a frota oficial de Mercedes pelo carro mais barato vendido no país, o modelo 5s da Renault, cancelou viagens de primeira classe de funcionários públicos e acelerou o julgamento de ex-membros do governo anterior por corrupção.   O assassinato de Sankara Em 15 de outubro de 1987, Sankara foi fuzilado por opositores, em seu corpo foram encontrados balas de armas como a russa Kalashnikov e até estilhaços de granadas. Essa foi a conclusão de uma autópsia realizada somente em 2015. Centenas de pessoas choraram a morte de Sankara nas ruas da capital Uagadugu. Na época do golpe de Estado que colocou Blaise Comparoé no poder (braço direito de Sankara), o laudo indicava morte natural como causa mortis do revolucionário burquinês. Oito pessoas foram acusadas em 2015 pelo crime. Tudo indica que o governo francês e a CIA tiveram participação no crime como também Compaoré. Quando o fiel amigo Compaoré assumiu a presidência (poucos dias após o assassinato de Sankara), ele comprometeu-se a ratificar as conquistas revolucionárias, mas o que se viu foi mais do mesmo, o retorno à conhecida política de alinhamento aos interesses das potências europeias e dos Estados Unidos. Compaoré governou Burkina até 2014 quando também foi deposto e refugiou-se

Joaquim Nabuco, um profeta do Brasil

por Urariano Mota Lembro que em 2010, quando se completaram os cem anos da morte de Joaquim Nabuco, muitas reportagens foram publicadas. Em quase todas, o destaque foi para o  homem liberal, o personagem ilustrado de Quincas, o belo. Nas breves menções às ideias mais radicais de Nabuco, dava-se um pulo esperto para o conceito de “homem complexo”. Copio um trecho eloquente da Veja: “As mulheres não resistiam a Nabuco… (já o abolicionismo) foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado… assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos.” ​Notem que as coisas mais graves foram escritas assim, entre amenidades e atualizações que vulgarizam ou difamam. A paixão de Nabuco pela causa abolicionista como uma extensão de galã de telenovela se tornou insuportável. Não era justo que ele se destacasse pelo obscurecimento de homens tão fundamentais quanto Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens, enfim, talvez menos belos ou apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade das gentes. A grandeza de Nabuco protesta contra anestesias desviantes. Suas ideias, pensamento radical,  visão de futuro,  percepção aguda do Brasil até hoje não superada, estão no que escreveu, na bela e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Quem anda pela zona rural, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe o quanto Nabuco acertou. Ou então aqui: “Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão”. Quem vê a quantidade de negros ou quase negros presos,  quem conhece as matanças nos presídios agora, sabe. A obra da escravaria não acabou. E mais: “A emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”. Que ideia definitiva da dialética entre escravos e senhores! Quanta precisão do que diminui, do que avilta a pessoa no jogo e conflito entre opressor e oprimido. Em Joaquim Nabuco se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não estava no físico do Belo Quincas de um metro e oitenta e seis. Está em linhas lapidares em que o pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. Isso porque Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. A divisão estúpida que dá aos ficcionistas o grau único de escritores, aqui, em Nabuco, comete o seu maior crime. Pois ele gravou esta profecia, que todo homem é obrigado a carregar: “O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber”. Desse desertor da sua casta, classe e raça, como o notou Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico do que continua urgente, 107 anos depois da sua morte. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravidão nos campos e nas cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu pedido ao médico, no último leito: “Doutor, pareço estar perdendo a consciência… Tudo, menos isso!” Sorte nossa que ele não a perdeu. A sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de oito anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo, Quincas ficou eterno. *Trecho do Dicionário Amoroso do Recife https://urutaurpg.com.br/siteluis/a-escravidao-brasileira-na-holanda-e-em-pernambuco/  

Rasputin: entre o místico e a figura histórica

Rasputin – Nascido em um vilarejo na Sibéria, Grigoriy Yefimovich Rasputin era filho de mujiques (camponeses) e já era assunto quando ainda era menino, corria à boca miúda que tinha poderes sobrenaturais. No anos finais do czarismo entre 1906 e 1916, era próximo ao casal real, o czar Nicolau II e sua esposa Alexandra Feodorvna, muitos diziam que foi amante da czarina. O olhar mezzo psicopata mezzo místico de Rasputin, seus longos cabelos e sua interferência política e religiosa incomodavam parte da nobreza russa, que chafurdava em decadência e intrigas. Enquanto isso o povo sofria as agruras da comida escassa e criava mil histórias sobre aquela estranha figura, que morreu há 100 anos, em 30 de novembro de 1916. Enquanto a nobreza vivia em sua bolha de privilégios, a Revolução Russa de 1917, que já havia tido sua premiére na Revolução de 1905, era preparada em frente a um czar titubeante e a penúria do povo russo. O jornalista norte-americano John Reed que registrou esse momento histórico no monumental livro Os 10 dias que abalaram o mundo escreveu: “para conseguir leite, pão e açúcar e tabaco era preciso permanecer horas em uma fila debaixo de uma chuva gelada”. O fim estava próximo para os Romanovs, dinastia à qual pertencia Nicolau e que dominou a Rússia e boa parte da Ásia por mais de três séculos. Em 1905, a fama do místico Grigoriy já circulava entre os nobres e o povo. Ele havia se mudado para São Petersburgo e foi apresentado ao Czar Nicolau II e sua esposa, Alexandra Feodorovna, de origem alemã. Na adolescência, Rasputin estudou no mosteiro de Verkhoture, nos Montes Urais, com o objetivo de se tornar um monge, mas não completou os estudos. Rasputin nasceu em Pokrovskoye em 1869 e morreu em 30 de dezembro de 1916, um ano antes da eclosão da Revolução Russa. De maluco para maluco, o músico arubenho Bobby Farrell, da banda Boney M., e sua performance única (para dizer o mínimo) na música “Rasputin”:   O casal real procurou Rasputin para que ele tentasse curar Alexei, quinto filho, único homem e o herdeiro dos governantes russos. Ele sofria de hemofilia (doença em que o sangue não coagula) e Rasputin fez uma simples oração na cabeça do jovem príncipe que sentia dores. O menino dormiu e acordou revigorado. Além disso, o mago conseguia estancar os sangramentos do menino. Os supostos poderes místicos também se somavam à sedução sexual que o místico exercia sobre as mulheres. Rasputin fazia sexo com suas seguidoras em orgias regadas ao vinho da Madeira, sua bebida predileta. O estagiário de santo gostava de beber como nunca. Depois de muito pecado, ia rezar na igreja mais próxima. Dizem que certa vez, ironizou: “não há arrependimento sem pecado”. Apesar de não primar pela higiene, conta a lenda que passou seis meses sem trocar sua roupa de baixo, Rasputin possuía uma fila imensa de seguidoras que encontraram a “graça de Deus” na cama com ele. Em um monastério, chegou a ser acusado pelas freiras responsáveis de organizar bacanais com as noviças. Aos 18 anos, casou-se com Praskovia Fyodorovna, que fazia vista grossa as suas inúmeras puladas de cerca, o casamento durou até a morte do infiel Rasputin. Tiveram três filhos. Alguns historiadores identificam Rasputin como peça-chave para afundar ainda mais a baixa popularidade do czar e da nobreza. No início de dezembro de 1916, Rasputin previu sua morte em carta ao chefe de governo russo Nicolau: “Czar de todas as Rússias, tenho o pressentimento de que até o final do ano eu deixarei este mundo”. E ainda vaticinou a queda da monarquia um ano antes da Revolução Russa: “Dentro de 25 anos não restará um único nobre neste país”. Como Rasputin incomodava, sua morte era sempre arquitetada pelos seus inimigos. A primeira tentativa ocorreu em 1914 pelas mãos de uma prostituta que conseguiu esfaqueá-lo, ele sobreviveu. Parente do czar Nicolau, o príncipe Felix Yassupov armou a cilada para assssiná-lo em dezembro de 1916 em seu palácio. O bolo com alta dose de cianeto de potássio não surtiu o efeito esperado em Rasputin. Então Yassupov e seus comparsas partiram para as armas de fogo, o monge Rasputin tomou 11 tiros e apanhou muito, o que também não o matou. Muito ferido, o místico xingava seus algozes e jurava vingança. Seus assassinos o enrolaram em um tapete e o jogaram em um rio próximo. O corpo do monge foi encontrado no dia seguinte e a causa da morte foi identificada como hipotermia, ou seja, os ferimentos não o mataram, o que aumentou ainda mais as histórias sobre Grigoriy Yefimovich Rasputin. E ainda tem mais, o pênis do mago foi retirado antes de seu corpo ser arremessado no rio. Nos anos 20, uma seita de mulheres o usava o utilizava como amuleto de fertilidade em rituais em Paris. https://www.zonacurva.com.br/os-misterios-da-madame-blavatsky/

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