Zona Curva

O Marcello de Mastroianni

Roberto Acioli de Oliveira

(Colaboração especial para o Zonacurva)

Mastroianni – Já o vimos na pele de um homossexual, de um impotente, de um corno e até de um homem grávido, mas grande parte da imprensa especializada insiste em referir-se a ele como o grande Amante Latino. Marcello Mastroianni não gostava deste rótulo, segundo ele inventado pelos produtores norte-americanos. “Eu não sou um sedutor”, insistiu o ator, que o amigo Federico Fellini chamava de Snaporaz, em referência ao papel de Mastroianni como o protagonista masculino atordoado e mulherengo de Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980). Neste filme, o cineasta criou situações que muitas mulheres consideraram antifeministas. De modo geral, era uma crítica que pairava sobre ele, contudo Mastroianni o defendeu: “Todos os homens são um pouco misóginos, ora essa! [Fellini] não fez mais que falar de mulheres, e as olhava sempre como um menino guloso” (BIAGI, E. 1997: 17, 18).

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O ator Marcello Mastroianni, retratado pelo desenhista Milo Manara

“- Quem foi o primeiro ator da história?

– Adão, obrigado a fazer os papéis de noivo, marido, pai e por aí afora”

 Mastroianni em entrevista a Enrico Roda (BIAGI, E. 1997: 7)

Marcello Vincenzo Domenico Mastroianni (1924-1996) não nasceu na cidade grande. Fontana Liri, sua cidade natal, fica a meio caminho entre Roma e Nápoles – mas sua família já havia se mudado para Roma desde antes da Segunda Guerra. Com 160 filmes no currículo, Mastroianni passou pelas mãos de muitos cineastas. Dentre os italianos, além do próprio Fellini, os nomes mais conhecidos são Alessandro Blasetti, Luciano Emmer, Carlo Lizzani, Luchino Visconti, Mario Monicelli, Mauro Bolognini, Vittorio De Sica, Michelangelo Antonioni, Pietro Germi, Elio Petri, Dino Risi, Valerio Zurlini, Ettore Scola, os irmãos Taviani, Giuseppe Tornatore, Liliana Cavani e Francesca Archibugi. Gian Piero Brunetta o considera um dos “mosqueteiros da comédia italiana”, ao lado de Vittorio Gassman, Alberto Sordi, Ugo Tognazzi e Nino Manfredi (BRUNETTA, G. P. 2009: 193). Dentre os cineastas estrangeiros que trabalharam com ele, poderiam ser citados o grego Theodoros Angelopoulos, o português Manoel de Oliveira e o brasileiro Bruno Barreto. Mastroianni por Mastroianni:

“(…) Em suma, considero-me um homem cheio de veleidades, sem força de caráter. A prova do que digo está justamente na minha capacidade de fazer bem na tela os fracos de caráter: o barão Cefalù de Divórcio à Italiana, o professor Sinigaglia de Os Companheiros, o intelectual em crise de Fellini 8 1/2” (BIAGI, E. 1997: 8)

 

Mastroianni e Sophia Loren

Trabalhando inteiramente no campo da comédia, a parceria entre o ator e a atriz rendeu a eles mais louros do que suas próprias carreiras tomadas isoladamente. De acordo com Pauline Small, esse é especialmente o caso em relação às parcerias de Mastroianni com outras atrizes. Desde suas primeiras comédias juntos na década de 50 do século passado (a maioria se encaixa no chamado “Neo-Realismo rosa”), até o casal atrapalhado em Prêt-à-Porter (direção Robert Altman, 1994), passando pelo mais sério Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, direção Ettore Scola, 1976), a dobradinha era garantia de bilheteria e fez a felicidade de muitos produtores e cineastas – fizeram 12 filmes juntos (BIAGI, E. 1997: 67).

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Embora fosse ator profissional, muitas vezes Mastroianni parecia servir apenas de escada para Sophia Loren (cena de Peccato che Sia una Canaglia)

A atriz Sophia Loren completou 80 anos no último dia 20 de setembro.

Ao contrário de Loren, Mastroianni possuía experiência de teatro, embora o trabalho em comédias do cinema italiano lhe tenha proporcionado uma experiência que não possuía. Sua parceria com Loren em Peccato che Sia una Canaglia (direção Alessandro Blasetti, 1954), o fez se preocupar com a possibilidade de que passasse a ficar para sempre ligado àquele tipo de papel (houve uma enxurrada de oferecimentos para ele repetir o papel do taxista de Roma), mas admitiu que esse filme em companhia da atriz foi essencial para o aumento de sua popularidade – em quase todos os filmes que contracenou com Loren, Mastroianni aparecia menos do que ela na tela (DEWEY, D. 1993: 72, 128). Referindo-se a sua atuação ao lado de Vittorio Gassman em Os Eternos Desconhecidos (I Soliti Ignoti, direção Mario Monicelli, 1958), Mastroianni faz uma referência à Peccato:

“E realmente eu fiz personagens como esse antes, por exemplo, em Peccato che Sia una Canaglia. Era o habitual inocente bem intencionado que no fundo não é realmente cômico, mas que reage às situações de uma forma que faz as pessoas rirem (…)” (Idem: 90)

Naquela época, em meados da década de 50, começava a surgir uma tendência de se criarem comédias em torno de casais. Contudo, ainda que Mastroianni tivesse no começo de sua carreira concordado em tomar o lugar de “cara legal” (bravo ragazzo) construído por Vittorio De Sica durante a década de 30, logo começou a sentir-se numa camisa de força (o medo de só ser chamado para esse tipo de papel). Tanto que, pelo mesmo motivo, passará a sempre atacar o estereótipo de Amante Latino que nunca desgrudou dele (SMALL, P. 2009: 89-93).

Mastroianni e seus duplos

De acordo com Donald Dewey, antes de chamar atenção pelas performances no melancólico Noites Brancas (Le Notti Bianche, também conhecido como Um Rosto na Noite, direção Luchino Visconti) em 1957 e no simplório Os Eternos Desconhecidos no ano seguinte, Mastroianni era visto como mais um dos bonitões da tela. Foi apenas a partir de A Doce Vida (La Dolce Vita, direção Federico Fellini, 1960), embora ainda em função de um esforço pessoal do ator, que esse rótulo começou a se descolar da mente daqueles que o chamavam para atuar no cinema. Na seqüência, consolidaram essa mudança o papel de protagonista em O Belo Antônio (Il Bell’Antonio, direção Mauro Bolognini, 1960), Divórcio à Italiana (Divorzio all’Italiana, direção Pietro Germi, 1961) e A Noite (La Notte, direção Michelangelo Antonioni, 1961) (DEWEY, D. 1993: 11-2, 15, 247-9, 265).

Com estes quatro filmes em seqüência pode se ter uma noção do alcance de Mastroianni, do aborrecido e pouco sociável repórter de A Noite até o marido safado de Divórcio à Italiana. A galhardia da versatilidade de Mastroianni como ator seria igualada apenas por sua capacidade (suicida, segundo alguns) de recusar convites para atuar em Hollywood. Fica a suspeita de que o ator nutria algum preconceito, já que não recusava convites para trabalhar em várias partes do mundo, passando pela África (Argélia, Marrocos, Congo), outros países europeus (França, Inglaterra, Grécia e Rússia, sem mencionar vários dialetos italianos) e as Américas (Canadá, Argentina, Uruguai e Brasil). Para citar três exemplos extremos Os Girassóis da Rússia (I Girasoli, direção Vittorio De Sica, 1970), O Apicultor (O Melissokomos, 1986) e O Passo Suspenso da Cegonha (To meteoro vima tou pelargou, 1991, ambos dirigidos por Theo Angelopoulos) e Gabriela, Cravo e Canela (direção Bruno Barreto, 1983).

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Marcello Mastroianni deixa sua marca em frente ao teatro chinês em Hollywood, em abril de 1965

Apesar de mais um filme com a dupla Mastroianni e Loren, Os Girassóis da Rússia não foi muito bem de bilheteria, mas poderíamos dizer que teve o mérito de ser a primeira co-produção entre a ex-União soviética e um país ocidental (Itália), numa época em que a Guerra Fria estava muito bem articulada ao complexo industrial-militar. Os filmes com Angelopoulos, por sua vez, em nada lembram um cinema comprometido com a bilheteria. É curioso que Mastroianni não tenha gostado de trabalhar com o italiano Antonioni, mas tenha atuado em dois filmes do cineasta grego, cujos filmes são verdadeiras viagens de questionamentos. Angelopoulos disse que foi influenciado especialmente por Antonioni e seu A Noite, tendo sido esse o motivo de chamar Mastroianni:

“Poucos cineastas que trabalharam com ele deixaram passar a oportunidade para marcar o lugar de Mastroianni no firmamento do cinema. O ponto de partida costumeiro tem sido alguma variação no comentário de Fellini de que esse ator oferece incalculáveis possibilidades por causa de seu rosto ‘sem personalidade’. A versão de John Boorman é que [Mastroianni] era ‘completamente plástico’. A de Mauro Bolognini é de que o ator foi ‘a essência da flexibilidade’. Foi a partir dessa premissa, de acordo com Antonioni nos anos 60 e Angelopoulos trinta anos depois, que a presença desse ator se converteu num campo de força na tela, dotando tudo à sua volta com uma energia que mesmo seus personagens às vezes não possuíam. Se isso nem sempre significa tornar a ‘apatia irresistível’, como se referiu um crítico em relação aos papéis de anti-herói na década de 60, isso geralmente deixa claro porque existe um buraco negro dramático em muitos de seus filmes quando ele está fora da tela” (Ibidem: 284-5)

E foi esse Mastroianni que desembarcou no Brasil em 1983 para atuar como Nacib, o dono do bar Vesúvio (que vem a ser o nome do vulcão que ainda pode ser visto da cidade de Nápoles e devastou Pompéia em 79 d. C.), contracenando com a atriz Sonia Braga em Gabriela, Cravo e Canela. Embora o ator não soubesse que o tema do filme já havia sido objeto de uma novela de sucesso no Brasil, considerou o projeto uma experiência positiva, ainda que não tenha aprovado a mudança das filmagens de Salvador (Bahia) para Parati (Rio de Janeiro). Chegou a comentar que não fazia sentido filmar uma história de Jorge Amado fora da Bahia: seria como ambientar uma história siciliana na Suíça!

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Mastroianni vivia fugindo dos papéis de galã conquistador, mas foram raros os filmes em que não contracenava com mulheres. (na foto, o ator contracena com Sônia Braga em Gabriela Cravo e Canela)

Segundo Mastroianni, Barreto persuadiu os produtores a mudar o cenário justamente para diferenciar os cenários da novela e do filme. Em Gabriela, Cravo e Canela, novamente Mastroianni encontra uma oportunidade para atacar o clichê de super amante que sempre rondou sua figura. Nacib arruma uma cozinheira para seu bar e se apaixona por ela. Enciumado pela atenção que ela recebe dos fregueses, casa-se com ela com o intuito de retirá-la de circulação. Como forma de protesto contra a indiferença do marido, Gabriela arruma um amante. Nacib acaba com o casamento, mas isso o leva à conclusão de que ele não pode viver sem ela. Sobre essa experiência Mastroianni comentou:

“Em primeiro lugar, eu sempre gostei do papel. A preocupação do proprietário do bar era com a qualidade do pão. Infelizmente, num mundo onde as pessoas estão mais interessadas em drogas, quem se importa com pão de boa qualidade? Mas eu também tive a oportunidade de ir a Salvador, a capital da Bahia. Era como estar em Nápoles. Gente na rua vendendo tudo que se possa imaginar. Cachorros ferozes. Funerárias. Milhares de velas de devotos em todas as igrejas. Prostitutas para onde quer que você olhe. Havia confusão em todo o lugar. Foi maravilhoso” (Ibidem: 248-9)

 

A Doce Vida de Mastroianni

Ao contrário do que possa parecer ao espectador de pouca idade e que não seja de origem italiana, A Doce Vida “apenas” apresenta na tela um modo de vida que fazia parte do cotidiano dos italianos (e especialmente dos romanos) no começo da década de 60. Além do mais, se poderia traçar uma linha direta entre Mastroianni e Loren em A Sorte de Ser Mulher (La Fortuna di Essere Donna, direção Alessandro Blasetti, 1955) e, posteriormente, no par Mastroianni e Anita Ekberg (o jornalista cínico e a jovem aparentemente ingênua), de A Doce Vida. O primeiro filme abre como uma cena mostrando um grupo não identificado de estrelas norte-americanas chegando ao aeroporto de Roma. Eles são saudados por uma multidão de fotógrafos, incluindo a figura de Corrado, interpretado por Mastroianni, e um grupo de curiosos, incluindo Antonietta (Loren), que começa o filme como uma simples funcionária de loja. Essa seqüência de abertura será quase exatamente replicada durante a chegada de Ekberg no segundo filme (SMALL, P. 2009: 93-5, 112n3).

Muitas fotografias de celebridades internacionais chegando ao aeroporto de Roma enchiam as páginas de revistas populares naquela época. Os fotógrafos se espalhavam pelo aeroporto de Ciampino e vários outros locais de Roma (Via Veneto, Hotel Hassler, boates) em busca de celebridades – a função de paparazzi cria um liame entre a celebridade dentro e fora da tela que será explorado no filme de Fellini. Contudo, em A Sorte de Ser Mulher, o foco recai sobre uma mulher local, não uma celebridade importada. As celebridades desaparecem levadas em automóvel, enquanto a balconista retorna mais modestamente para o centro da cidade. Em certo momento, enquanto Antonietta se abaixa para consertar sua meia de seda, Corrado passa de carro e fotografa o instante. Sem pedir o consentimento dela, ele coloca a imagem na capa da revista com o seguinte título, “Apanhada Posando na Via Appia” – essa região é reconhecida como zona de prostituição.

Antonietta/Loren se transforma numa celebridade, Pauline Small acredita que se possa inferir outro tipo de mensagem desta seqüência: a Itália agora, na década de 50, exala seu próprio glamour e expõe suas próprias estrelas, não necessariamente ofuscadas por Hollywood – tal conclusão ligaria o argumento do filme ao breve desafio que atrizes como Gina Lollobrigida e Loren tiveram em Hollywood. O tema não era incomum em filmes italianos da década de 50, algo que faz pensar sobre a sistemática recusa de Mastroianni de filmar em Hollywood – devido ao sucesso de Peccato che Sia una Canaglia, e com a mudança de Sophia Loren para Hollywood, houve certa pressão sobre Mastroianni para que ele se mudasse para lá também e reeditasse a fórmula.

 

Disque MM e Ganhe um Rosto Inexpressivo

Marcello Mastroianni conta uma história pouco glamorosa a respeito de sua participação em A Doce Vida. O cineasta estava procurando alguém para o papel principal quando telefonou para Mastroianni e marcou um encontro, onde Fellini disparou direto no meio da testa do ator: “eu telefonei para você porque preciso de um rosto sem nenhuma personalidade, como o seu”. Fellini disse para Mastroianni que Dino De Laurentiis, o produtor, insistiu em relação a Paul Newman. Mas o cineasta argumentou que era muito importante que o ator escolhido para o papel tivesse um rosto comum. Humilhado, Mastroianni pediu o roteiro para dar uma olhada.

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Mastroianni e Anita Ekberg em A Doce Vida

 

“(…) Estou cansado dos filmezinhos. Condenaram-me aos papéis de bonachão,

daquele que faz rir correndo atrás das garotas. Um personagem assim é o sonho

de um ator. Juro que cago e ando para isso e [Fellini] sabe”, Mastroianni sobre seu papel em A Doce Vida (imagem acima) (BIAGI, E. 1997: 96)

Apresentaram-lhe uma pilha de papéis em branco, apenas um deles tinha o desenho de um homem nadando no mar (algumas versões afirmam que ele estava num barco) com um pênis que alcançava o fundo. Em torno desse pênis havia cavalos marinhos, estrelas do mar e sereias nadando e sorrindo. Marcello disse que ficou constrangido e achou que fosse uma provocação, pelo fato do ator estar acompanhado de seu advogado e Fellini explicou que preferia um contato informal. Mastroianni se sentiu acuado e, tão somente para se livrar da sinuca, disse “okay, é interessante, eu vou fazer” (BIAGI, E. 1997: 20, 35-6; CHANDLER, C. 1995: 116-9; DEWEY, D. 1993: 95-6).

Fellini disse que o desenho mostrava um homem num barquinho no meio do oceano, e que em relação ao comentário a respeito do rosto do ator, não havia nenhuma intenção ofensiva de sua parte. Na ocasião, o cineasta até explicou a Mastroianni que resistiu à pressão dos produtores, que desejavam um norte-americano para o papel – parece que se tratava de Robert Redford e Paul Newman. Mas Biagi desfaz o nevoeiro aqui dando nome aos bois. O produtor era Dino de Laurentiis, que se referiu a Mastroianni como um ator frágil, bom, mas do tipo caseiro e não alguém que deveria ter o perfil de um devasso. Na verdade, esclarece Biagi, talvez a resistência de Laurentiis tenha origem no fato de que quando tinha vinte anos, a atriz Silvana Mangano morava no mesmo bairro de Mastroianni e quase se tornaram noivos. O que não aconteceu porque ela foi protagonizar Arroz Amargo (Riso Amaro, direção Giuseppe De Santis, 1949) e caiu nas graças do produtor, Dino de Laurentiis, com quem se casou. Além disso, Mangano e Mastroianni pertenciam ao mesmo estrato social: a plebe.

De acordo com Pauline Small, a trajetória de Mastroianni foi mais bem-sucedida do que a de sua grande parceira, Sophia Loren. Primeiramente pelo fato dele ser um ator treinado e ela haver sido “descoberta”. Em segundo lugar, Mastroianni goza de reputação tanto entre as comédias italianas de caráter mais popular quanto entre os chamados “filmes de arte”. Small argumenta que a hipótese de que Loren tenha feito mais sucesso do que ele não se sustenta, justamente em virtude da diversidade temática dos filmes que protagonizou. Além do que, ainda que seja discutível afirmar que é o resultado da bilheteria que determina o sucesso da carreira de atores e atrizes, não se pode deixar de considerar esse fator. Desse ponto de vista, afirma Small, a carreira de Mastroianni foi mais bem-sucedida do que a de Loren.

Small procura resolver essa questão discutindo a existência ou não de um status de estrela no caso de Mastroianni. Os espectadores foram assistir A Doce Vida e Fellini 8 ½ em função de Mastroianni ou Fellini? É uma questão de importância discutível, até porque os temas de alguns desses filmes podem ser mais relevantes. Daí, talvez, a visão de Mastroianni quanto a sempre haver tentado evitar que sua figura ficasse ligada apenas a um tipo de perfil. Lançando pouco depois de A Doce Vida e antes de Fellini 8 ½, a repercussão de Divórcio à Italiana no sul da Itália foi tremenda. A controversa abordagem da problemática da sexualidade e da vaidade do homem italiano do sul foi especialmente capitalizada pela distribuição nos Estados Unidos. Ao aceitar o papel de protagonista neste caso, o estrelato de Mastroianni combinou a mistura contraditória e interessante de elementos populares de “de arte”, sucesso de bilheteria e prestígio “de arte”. Segundo a conclusão de Small, o trabalho de Mastroianni “(…) e sua persona articulam aspectos da sexualidade contemporânea nos filmes satíricos de Fellini e Germi através de um estilo mais imediatamente vendável e bem distinto do tratamento de temas similares nos filmes contemporâneos de Antonioni ou Bergman” (SMALL, P. 2009: 102-3).

 

Mastroianni e Fellini

            Em pouco tempo, a convivência durante as filmagens de A Doce Vida fez de Fellini e Mastroianni grandes amigos. O cineasta gostava tanto do ator que chegou a escalá-lo para cinco filmes, os outros quatro são Fellini 8 ½ (Otto e Mezzo, 1963), Cidade das Mulheres (La Città delle Donne, 1980), Ginger e Fred (1986), Entrevista (Intervista, 1987). Os dois passeavam muito juntos, freqüentavam as respectivas famílias e até entravam (supostamente por brincadeira) em algumas disputas, comparando seus carros, seus casos extraconjugais… Contra todas as evidências, assim como Mastroianni nunca aceitou se encaixar no clichê de Amante Latino, Fellini insistiu numa entrevista a Charlotte Chandler que o ator NÃO É seu alter ego.Fellini conhecia a fama de Mastroianni, mas não o conhecia pessoalmente ainda. Giulietta Masina, a esposa do cineasta, conhecia melhor o ator. Fellini apenas nutria certa simpatia por ele, já que percebia que compartilhavam o interesse pela comida. O cineasta explicou a Chandler que ele trabalhava muito bem com Mastroianni quando seu personagem se colocava em posições ambíguas.

“(…) Ele está no filme – e, ao mesmo tempo, está fora do filme. Em todos os filmes que fiz com Marcello, o personagem é um eco, sempre o mesmo. Ele deveria ser um intelectual. É difícil representar um intelectual no cinema ou no palco, e mesmo num livro, porque o intelectual é alguém com vida interior. Ele pensa, mas não age muito. Marcello possui essas qualidades particulares. Ele é verossímil como alguém que não reage a acontecimentos, mas apenas olha para eles. Às vezes, é claro, ele é uma pessoa de ação. Deste modo, ele está na posição ambígua de alguém que está vivendo uma história e, no entanto, está distante, observando” (CHANDLER, C. 1995: 118-9)

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Mastroianni e Fellini no set de filmagem

De fato, o próprio Mastroianni dizia que era melhor trabalhar a cada dia sem saber do futuro do personagem na semana (ou no dia) seguinte. Até porque, confessou, seria sem sentido agir de outra forma quando se trabalhava com Fellini, já que ao começar a trabalhar o cineasta sempre mudava tudo – reescrevia falas durante a dublagem e depois mudava tudo novamente. Na opinião de Mastroianni, esse estilo de trabalho era arriscado, mas nunca entediante. (KEZICH, T. 2006: 236). Quanto a trabalhar com Mastroianni, Fellini declarou em 1963, por ocasião do lançamento de Fellini 8 ½:

“Tenho pelos meus atores o mesmo sentimento de ternura e de simpatia que o artista tem por suas marionetes. O primeiro nível de um filme mostra uma radiografia implacável daquilo que você é internamente. O milagre consiste em deixar que o autêntico penetre na ficção. Mastroianni mostrou a mais abrangente e abnegada disposição para tanto: nasceu, assim, uma interpretação bastante incomum” (CALIL, C. A. 1994: 146)

 

Mastroianni e Casanova

No final das contas, talvez por uma dessas ironias do destino, Mastroianni interpretaria o aventureiro veneziano Casanova já velho, em Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes, direção Ettore Scola, 1982). Se o Casanova que Fellini criou em 1976 já havia atacado o clichê da virilidade masculina italiana, o Casanova de Scola estava com setenta anos, bexiga solta e todos aqueles problemas que cegam com a idade. Era um personagem melancólico e cheio de nostalgia pela juventude perdida, que reconhecia sua incapacidade de se inserir num mundo em mutação – os revolucionários estavam tomando Paris e o rei Luis XVI havia fugido, era o primeiro ato da Revolução Francesa. Como o Casanova de Fellini, esse também irá terminar seus dias como bufão de um nobre – alguém que ainda fora do alcance dos revolucionários. Mastroianni admitiu que houvesse desejado interpretar o amante veneziano em Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, 1976), mas Fellini escolheu outro ator (BIAGI, E. 1997: 13-4, 108; DEWEY, D. 1993: 240).

De acordo com Donald Dewey, o Casanova interpretado por Mastroianni constitui uma espécie de piada interna em torno do que teria se tornado o Casanova construído por Fellini. É significativo que o papel de Mastroianni seja melancólico (embora para alguns o comportamento melancólico carregue alguma beleza), atacando novamente o clichê ao qual sempre se procura aprisionar o ator. Como não enaltecia o personagem, os produtores norte-americanos não gostaram de Casanova de Fellini, mas as conclusões de Mastroianni sobre o filme são complementares às de Fellini: um menino grande, um caubói do interior, um retrato fiel do italiano, dado ao servilismo, à submissão infantil à autoridade, sempre buscando a ajuda de uma mulher.

Mastroianni afirmava não ser um conquistador e um casanova, seus encontros foram todos pela metade. Seu personagem em Casanova 70 (direção Mario Monicelli, 1965), um militar e conquistador incurável que só conseguia atingir a ereção em situações de risco, é a verdadeira comédia em torno do tema. O filme antecipa a crítica de Fellini e Scola ao caráter patético e infantilizado do “conquistador profissional” que os italianos (daquela época?) gostavam de pensar que eram (BIAGI, E. 1997: 15, 43). Em 1973 Mastroianni ficaria grávido em Um Homem em Estado Interessante (L’Évenement le Plus Important Depouis que l’Homme a Marché sur la Lune), um filme que o ator reputa como o pior em que participou. De acordo com Dewey, Mastroianni desejava contracenar numa comédia com a atriz francesa Catherine Deneuve – com quem tinha uma filha de um ano (DEWEY, D. 1993: 208). Contracenando com Sophia Loren em 1977, Mastroianni encarna o homossexual Gabriele em Um Dia Muito Especial. Neste filme onde o cineasta Ettore Scola mostra a servidão da esposa italiana durante a era fascista, o encontro com a dona de casa tratada pelo marido apenas como um saco de carne para receber seu esperma levará Gabriele a uma experiência heterossexual.  Quem sabe isso tudo tenha uma relação…

 

Mastroianni e Antônio

Se em A Doce Vida muitos ainda poderiam afirmar que, mesmo confuso, o homem italiano (representado pelo personagem de Mastroianni) é um conquistador (apesar das evidências em contrário: Marcello está à deriva entre uma Anita Ekberg indiferente em relação a ele e uma namorada sem auto-estima como Emma), em O Belo Antônio não restariam mais dúvidas de que Mastroianni definitivamente não pretende servir-se do clichê de Amante Latino com o qual o presentearam. Quando Mastroianni sai da pele do repórter de mexericos Marcello Rubini e se veste com a de Antônio, incorpora o que de acordo com os italianos da Sicília seria uma impossibilidade lógica: um homem com impotência sexual! (DEWEY, D. 1993: 113-5)

Siciliano de Catânia, Antônio não consegue transar com sua esposa, mas não tem nenhum problema com as prostitutas. A mãe dele chega a expor empregada da casa grávida na janela para a cidade olhar – embora saibamos que ela foi engravidada pelo amigo de Antônio. Querendo provar que o problema sexual do filho não era hereditário, o pai de Antônio acaba morrendo num bordel de tanto transar. Contudo, acompanhando uma conversa entre a esposa e a mãe de Antônio, ficamos sabendo que o pai dele não tocou na esposa durante os primeiros dois anos do casamento. O tema era polêmico e houve reclamações oficiais, que viam todo o projeto como uma forma de desonrar a moral e o bom nome do país. A partir de certo ponto, o cineasta Mauro Bolognini admitiu que parecia impossível realizar um filme sobre um homem impotente na Itália. Bolognini seguiu em frente e realizou o filme, mas revelou que encontrou vários obstáculos de ordem burocrática.

O ator francês Jacques Charrier chegou a aceitar o papel de Antônio, apenas para mudar de ideia a seguir – temendo a repercussão na imprensa, uma semana antes do início das filmagens ele ficou cheio de escrúpulos quanto a atuar como um homem impotente, já que, por ser casado com Brigitte Bardot, era visto como o amante francês ideal. Então Bolognini sugeriu o nome de Mastroianni, as pessoas ficaram horrorizadas com a hipótese. Reza a lenda que Mastroianni, alguém que se orgulhava de sua habilidade de não se misturar com os personagens que representava, certa vez veio a Bolognini e disse: “Disgraziato! Obrigado, não posso mais fazer sexo!” Posteriormente o ator italiano admitiu que essa condição (temporária) seria um pequeno preço a pagar pelas implicações que sua decisão de aceitar o papel de um marido siciliano com problemas poderia ter em sua carreira. Assim Mastroianni definiu sua situação:

“O período imediatamente posterior à Doce Vida foi um tormento para mim. O filme fez tanto sucesso que me inundaram com papéis de conquistador, alguém que anda por aí com paletós azuis e botões dourados. Minha vida privada se tornou totalmente identificada com esse personagem. Meus instintos teatrais me disseram para não cair nessa armadilha, para não aceitar algum rótulo que outros pretendessem colar em mim. Eis porque eu saltei sobre a chance de interpretar um personagem tão diferente e disse sim para Bolognini” (Idem: 115)

Na época do lançamento de O Belo Antônio, alguns críticos sugeriram que o roteiro transpirava certa presunção dos romanos em relação aos sicilianos em relação a uma questão que se referia aos homens italianos em geral. De uma maneira ou de outra, é curioso que nos tantos filmes e tópicos de sua longa carreira comentados em La Bella Vita. Marcello Mastroianni, (livro de entrevistas e dados biográficos organizado por Enzo Biagi), o ator não faça menção a O Belo Antônio – embora tenha insistido sobre não se considerar e nem desejar ser visto como um casanova.

Um dos roteiristas de O Belo Antônio (os outros dois são Gino Visentini e o próprio Bolognini), Pier Paolo Pasolini (que embora fosse do norte da Itália havia adotado Roma como seu lar) foi o responsável pela adaptação do livro de Brancati. De fato, esclareceu Pasolini ao escrever sobre o filme para um jornal em 1960, o roteiro não caminha na mesma direção do livro, que é mais apolítico e ambíguo do que o filme. O tema central deste foi completamente evitado no livro: a saber, a impossibilidade para aquele que possui uma vida privada muito diferente dos outros e muito tirânica (nesse caso, a impotência sexual), de tornar-se um cidadão cheio de preocupações morais e políticas objetivas. O problema de Pasolini era como apresentar a impotência de Antônio, uma questão que tornava o filme um problema para a maioria dos produtores italianos (JOUBERT-LAURENCIN, H. 2000: 68-9).

Pasolini acaba optando por uma justificativa de ordem fisiológica, uma inibição: Antônio só conseguia transar com mulheres que não amava, caso contrário, era como se estivesse fazendo sexo com uma mulher idealizada, uma santa. Procedendo desta forma, que para muitos de nós já constituiria uma maneira de salvar a honra dos machos, Pasolini pretendeu representar o romantismo que dominava a burguesia do sul da Itália (o filme se passa em Catânia, na Sicília), que ele considerava reacionária e cruelmente conformista. A figura do pai de Antônio, que no livro de Brancati era antifascista, torna-se fascista no filme, para justificar a identificação do regime de Mussolini com a masculinidade.

Pasolini afirma que esse Antônio não tem nada a ver com o personagem de Brancati e com o seu próprio – sabemos que outras quatro mãos influenciaram o roteiro de Pasolini. Posterior em alguns meses ao seu antológico papel em A Doce Vida, Mastroianni ressurge nas telas em 1960 como uma figura bem mais problemática e complexa do que o clichê do Amante Latino ao qual curiosamente ele é ligado até hoje pela indústria do cinema. Assim Pasolini resume em 1960 a participação de Mastroianni em O Belo Antônio, um filme estranhamente relegado ao ostracismo:

“(…) Ele é interpretado por Mastroianni, que não tem nada de efebo, e que está excelente nesse papel. Talvez esteja ainda melhor do que em A Doce Vida, que foi para ele um teste extraordinário. Seu belo Antônio é um personagem introvertido, angustiado, doce, às vezes muito fechado, às vezes muito expansivo; sua dor contida, mas contagiosa e apaixonante. Em suma, Bolognini, com muitas limitações, fez dele um personagem romântico; mas não um falso romântico de segunda mão. Trata-se de um romântico, digamos, primário. Quer dizer, de tipo decadente, tal como se manifesta em certas camadas avançadas da burguesia. Eis porque a angústia do belo Antônio, que emana de sua anormalidade, possui acentos tão maravilhosamente novos e atuais” (Idem: 69)

 

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Mastroianni e Cardinale em O Belo Antônio

Mastroianni 8 ½

Tendo passado por A Doce Vida, A Noite e O Belo Antônio, em 1962 Mastroianni procurou se recuperar de uma péssima experiência em Vida Privada (Vie Privée, direção Louis Malle) embarcando em Dois Destinos (Cronaca Familiare), adaptação do cineasta italiano Valerio Zurlini para um romance de Vasco Pratolini. De acordo com Dewey, esse foi o filme de maior carga literária da carreira de Mastroianni. Embora o próprio ator não classificasse esse filme dentre suas obras mais importantes, muitos críticos o consideram como uma de suas melhores e mais maduras performances.

No filme anterior, Mastroianni teve uma relação profissional desastrosa com Brigitte Bardot. De qualquer forma, no mínimo, Dois Destinos deveria chamar mais atenção pelo simples fato de constituir um dos poucos momentos da carreira de Mastroianni onde não está contracenando com uma mulher – um Jacques Perrin bastante jovem co-estrela a produção (DEWEY, D. 1993: 126). No ano seguinte, porém, não só Mastroianni retorna a contracenar com mulheres, como Fellini lhe dará a oportunidade de possuir todo um harém. Finalmente, pode-se dizer, Mastroianni se encaixaria na categoria de Amante Latino mesmo que não desejasse.

Depois de A Doce Vida, o filme mais famoso de Mastroianni com seu amigo cineasta foi Fellini 8 ½. Parábola surrealista e cheia de referências à psicanálise junguiana, Marcello agora deixa o jornalista e se transforma em Guido Anselmi, o cineasta – o traço comum entre os dois é a indecisão. Aliás, indeciso estava o próprio Fellini naquela ocasião, o protagonista seria um arquiteto, um romancista, um roteirista, ou um professor trabalhando num verbete de enciclopédia sobre figuras tão distantes entre si como Messalina ou São Francisco de Assis – o responsável pelo guarda-roupas do filme pressionava o cineasta para poder projetar as vestimentas de Mastroianni.

Fellini chegou a dizer que sempre conheceu esse personagem, mas apesar de conseguir descrever seu comportamento em detalhes, não era capaz de enxergá-lo como um todo. Toda a equipe já havia percebido, mas Fellini levou algum tempo para encontrar a solução. O protagonista de Fellini 8 ½ já possuía um rosto. Foi quando, de acordo com Tullio Kezich, o cineasta perguntou a um membro da equipe, “você não acha que ele poderia ser um cineasta?” Entretanto, numa entrevista a Angelo Solmi em 1963, Fellini disse que pensou em fazer de Guido um roteirista de cinema. Descrevê-lo como um cineasta, explicou Fellini, deixaria a coisa autobiográfica demais. Depois do filme ficou pronto, Fellini começou a admitir publicamente, “eu percebi que sou Guido Alsemi” – podemos concluir que o alter-ego de Fellini é Guido, o personagem, e não Mastroianni, o ator! Finalmente, as roupas de Guido eram as mesmas que Fellini usava na época: um casaco preto e um chapéu preto de aba larga (BONDANELLA, P. 2002: 144, 146; CALIL, C. A. 1994: 145, 148; KEZICH, T. 2006: 239-40).

Na opinião de Mastroianni, Fellini 8 ½ é uma obra-prima, porque representou o homem daquele tempo (BIAGI, E. 1997: 113). Alguém que promete transformações, inteligência, cultura, sensibilidade, mas que não conseguia realizar nada e termina o filme implorando/desabafando para ser aceito com todos os seus defeitos e limitações pela esposa: “É uma festa a vida, vamos vivê-la juntos. Só direi isso, Luisa, a você e aos outros. Me aceite, se puder” – ela aceita… Mas se ele a ajudar compreender.

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Não era Mastroianni, mas Guido o alter-ego de Fellini em 8 ½ (acima, a cena do harém)

Na famosa seqüência do harém, anterior a esse desfecho, acompanhamos um bizarro delírio de Guido que poderia muito bem representar o imaginário do homem latino ensimesmado na projeção narcisista de uma suposta qualidade de super-amante-infalível – o elogio de Carla, a amante na vida real, em relação às pernas de Guido, provavelmente foi uma provocação de Fellini, pois Mastroianni achava que tinha pernas finas e escondia essa parte do corpo (Idem: 9). No harém, a esposa dele é a única que trabalha duro e alegremente (faz a comida, esfrega o chão, cuida das outras mulheres de Guido e o elogia). Suas várias amantes deliram ao receber seus presentes, mas a coisa muda de figura quando uma delas se rebela por estar sendo mandada para o porão, onde Guido estoca suas mulheres velhas. A rebelião se espalha e Guido é obrigado a usar o chicote para controlar a situação. Contudo, numa seqüência anterior, já havíamos visto até onde a imaginação de Guido pode chegar. Ele promove um encontro (em sua mente, é bom frisar novamente) absolutamente bem sucedido entre sua esposa e sua amante.

O curioso é que a mulher ideal de Guido, representada pela silenciosa personagem interpretada por Claudia Cardinale (muito convenientemente uma enfermeira), não está presente na seqüência do harém. O que não deixa de evocar os problemas de Antônio, o belo, quando tem de transar com uma mulher a quem ame, quando tem de transar com uma mulher que não é só um corpo. Depois de suas encarnações como conquistador pessoa confusa em A Doce Vida e A Noite, e como impotente em O Belo Antônio, o papel de um cineasta confuso e mulherengo em Fellini 8 ½ cai como uma luva na pele de Mastroianni, sempre preocupado em destruir o clichê de campeão dos pegadores – clichê ao qual muitos homens, secretamente ou não, gostariam de se entregar. Além disso, Fellini insistia (ou tentava se convencer) de que se tratava de um filme cômico, o que poderia constituir outra razão indireta para a presença de Mastroianni. Apenas uma vez Fellini e Mastroianni quase brigaram. E qual poderia ser o motivo? Fellini esclarece:

“A única vez que nos enfrentamos foi durante as filmagens de Fellini 8 1/2, quando pedi a ele para raspar o cabelo do peito. Chocado, recusou-se inteiramente, queixando-se de que isso seria impróprio para um homem italiano. Eu expliquei para ele que Guido deveria ser percebido como um imaturo com quarenta e três anos de idade, incapaz de organizar seu complexo mundo interior, um bebê grande com assaduras. O tórax cabeludo tinha de sair. Nós discutimos e brigamos até que finalmente eu disse para ele, ‘escute, Marcellino, se você perder seu senso de humor nós nunca faremos um filme cômico’. Ele raspou” (PETTIGREW, D. 2003: 96)

Saltando agora para seu penúltimo ano de vida, Mastroianni protagonizou Páginas da Revolução (ou Pereira Afirma, como foi lançado em Portugal, Sostiene Pereira, direção Roberto Faenza, 1995). Ele é Pereira, editor de um jornal na Lisboa dominada pelo regime ditatorial do pró-fascista Salazar (1889-1970) durante o ano de 1938, às portas da Segunda Guerra Mundial. Impedido de publicar sua tradução de um livro anti-nazista, Pereira não se contém quando um jovem ativista político é torturado e morto pela polícia salazarista. Escreve um obituário denunciando o regime pelo assassinato e foge para o exílio com o passaporte falso do morto. Numa entrevista publicada no prefácio do roteiro, mimetizando o comportamento de Fellini (que construiu Guido para se mostrar e a seu ofício) Mastroianni se compara à Pereira, mas para fazer um duro julgamento de si mesmo:

“E então eu disse para mim mesmo: olhe para esse Pereira, com toda sua previsibilidade, seus dias organizados em torno de omeletes, clássicos franceses para traduzir no seu jornal, diálogos com a fotografia de sua falecida esposa. Ele é alguém que em determinado ponto teve coragem de mudar radicalmente a própria vida. E então eu pensei: Marcello, como você está longe da dignidade de Pereira. Você está com mais de setenta anos de idade e continua a ser um ator porque não sabe fazer mais nada” (MARCUS, M. 2002: 111)

 

Referências Bibliográficas

BIAGI, Enzo. Marcello Mastroianni: La Bela Vita. Tradução Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

BONDANELLA, Peter. The Films of Federico Fellini. New York: Cambridge University Press, 2002.

BRUNETTA, Gian Piero. The History of Italian Cinema. A guide to Italian film from its origins to the twenty-first century. Princeton, New Jersey: Priceton University Press, 2009.

CALIL, Carlos Augusto (org.). Fellini Visionário. A Doce Vida, 8 ½, Amarcord. Tradução dos roteiros Hildegard Feist, tradução das entrevistas André Carone e José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CHANDLER, Charlotte. I, Fellini. New York: Random House, 1995.

DEWEY, Donald. Marcello Mastroianni. His Life and Art. New York: Carol Publishing Group, 1993.

JOUBERT-LAURENCIN, Hervé. Pier Paolo Pasolini. Écrits sur le Cinéma. Petits Dialogues Avec les Films (1957-1974). Paris/Lyon: Cahiers du Cinéma/Presses Univ. de Lyon et Institut Lumière, 2000.

KEZICH, Tullio. Federico Fellini. His Life and Work. New York/London: I.B. Taurus, 2006.

MARCUS, Millicent. After Fellini. National Cinema in the Postmodern Age. Baltimore (USA): The Johns Hopkins University Press, 2002.

SMALL, Pauline. Sophia Loren. Moulding Star. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

PETTIGREW, Damian. I’m A Born Liar. A Fellini Lexicon. New York: Harry Abrams Inc., 2003.

 

TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA RUA (Revista Universitária do Audiovisual) da Universidade Federal de São Carlos.