Zona Curva

Com o desejo na alma

As tigresas estão à solta. Com o olhar carregado da mais sutil sedução e os lábios pintados com luminosidade de néon, elas atravessam as vitrines da cidade. Cabelos esvoaçantes sob o sol do anúncio do verão, a provocação caminha com elas. Unhas de gata, sem nenhuma ameaça, o tempo parece estar sob o seu inteiro dispor. O imaginário da mulher contemporânea não envolve nenhum caráter enigmático, está exposto, mas não é tão fácil decifrá-lo. Afinal, a incógnita freudiana ainda persiste: “O que quer uma mulher?”

Já não faz o tipo dona-de-casa ou guerrilheira. Antes, é uma profissional que a cada dia vem ocupando mais e mais espaços na sociedade. Assumindo posições de mando, ela surpreende em cada gesto. De macacão, botas e capacete, biquíni, capa de revista, urbanizada, tanto mais, objeto de estudo do IBGE, mães e filhas do prét-à-porter desses shopping times, 51% da população mundial, habitantes dos sonhos das metrópoles modernas, 41% da população economicamente ativa — em 1980 o índice alcançava 27% — mas ocupam apenas 24% dos cargos de gerência.

A inserção da mulher no mercado de trabalho (essa bandeira eleita para a independência, para igualar-se ao homem) tem revigorado e, a um só gênero, transtornado as relações sociais. Análise comparativa feita por pesquisa acadêmica apontou que o rendimento médio real das mulheres brasileiras passou de R$ 982 para R$ 1.115, entre 2000 e 2010, obtendo crescimento de 13,5%. O salário dos homens, por sua vez, cresceu 4,1%, passando de R$ 1.450 para R$ 1.510 no mesmo período. Apesar do aumento registrado, elas ainda ganham menos que eles. Em 2010, as mulheres passaram a receber em média 73,8% do salário dos homens; em 2000, esse percentual era 67,7%.

O que elas nos proporcionam é isso: a fascinação. Vertigem audiovisual. Última emoção espiritual desses pós finais de tempo. Espécie de Sílvia Pfeiffer, personagem musical do Fausto Fawcett e Marcelo de Alexandre, em que os “habitantes de um supergueto capitalista costumam concentrar o olhar no rosto da mais bela e sofisticada das manequins”. Shows de realidade patrocinada. Mundos que só existem no desejo.

— Espelho, espelho meu, quem é mais bela do que eu? Bruxas malvadas, sereias, mocinhas, vilãs sedutoras. Todas delirantemente manequins. Ser modelo continua a ser a profissão mais apaixonante desde as quatro últimas décadas. Corpo sensual, gestualidade energética. To be or not to be, that is the fashion. Guerreiras do império da moda. Marionetes raptadas pelos clicks incessantes de fotógrafos, pelas exigências de mil produtores, pelos retoques inacabáveis de um batalhão de maquiadores.

8 de março dia da mulher

Negras, loiras, ruivas e morenas. Secretárias. Executivas. Juízas implacáveis. Deusas desinibidas dos anúncios de lingeries, cervejas, margarina, carros e relógios. Cabelos sedosos de todo e qualquer shampoo. Donas de mil caras e gestos que se metamorfoseiam. Em suma, uma over lap (superposição) de sentidos como é próprio desses tempos tão caleidoscópicos.

A palavra modelo é de origem flamenca com função (oh doce semântica dos corpos) aperfeiçoada nos meados do século passado, quando bonitas moças cheinhas e róseas à la Renoir desfilavam delicadamente os imensos xales de arabescos cashmere para as clientes art-nouveau, nas melhores lojas de tecidos de Paris, eterno centro da moda feminina.

Atravessando vitrines e lentes, com o desejo na alma, super-top-model dos melhores desfiles internacionais, sabem vender caro o fetiche de curvas volutas. Ou, lidando com tubos de ensaio, abrindo e controlando válvulas, operando equipamentos pesados, atletas imbatíveis das Olimpíadas, propondo e debatendo políticas públicas, seja no Congresso, assembleias legislativas, câmaras de vereadores, oh claro, na presidência da República, impõe-se profissionalmente com o desejo de continuar sendo vista como mulher, bonita e charmosa.

Sim, adormecendo ao lado dos filhos, com ou sem o fardo de Eva, prenha do mito do amor materno, elas vão continuar sendo o máximo do mínimo divisor comum da linguagem cosmética que nos resta sobre a epiderme desses tempos em que, duvide não, o futuro já passou.