por Urariano Mota
Para a chamada Escola Sem Partido, é preciso escrever sobre os atrasos que virão para o ensino e o pensamento brasileiro. Na medida de minhas possibilidades, chamo atenção para alguns desastres anunciados.
Primeiro, para não falarem que exagero o exagerado, olhem o site do movimento, quero dizer, o sítio do imobilismo, de onde copio estes atentados:
“Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar:
A doutrinação política e ideológica em sala de aula ofende a liberdade de consciência do estudante; afronta o princípio da neutralidade política e ideológica do Estado; e ameaça o próprio regime democrático, na medida em que instrumentaliza o sistema de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores.
Por outro lado, a exposição, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais dos estudantes ou de seus pais, viola o art. 12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
O Programa Escola sem Partido é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo”.
E seguem-se os mandamentos divinos da sarça ardente, que reza entre suas ordens:
“O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas…
O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”
Ora, desde Moliére, no avançadíssimo século dezessete, que filhas resistem ao mando dos pais. Mas estamos, conforme indicação do calendário, no século vinte e um. Consiste um grave assalto à democracia submeter conteúdos ministrados ou impressos ao que esteja de acordo com convicções trazidas da casa do aluno, ou pretender que valores de ordem familiar estejam acima da educação moral, sexual e religiosa. As famílias não se constiutuem de cientistas, escritores e filósofos nem na Grécia de Ouro. Ainda que disponham de pais ilustrados, o que seria algo abaixo de um milésimo, a família como instituição é conservadora.
Com essa projeto de lei e movimento imobilizado, corre-se o risco, no limite, de que em breve se exija a equiparação de ensinamentos bíblicos a descobertas da ciência, como no caso da extraordinária contribuição de Darwin. Na Origem das Espécies, o homem é um animal e como todas os demais seres vivos se originou de processos naturais, o que nega a crença religiosa da criação divina tal como é apresentada pela Bíblia. E aí, como ficamos? Com Darwin ou com os ignorantes pais?
Recuemos mais, até 1543. Nesse ano, um louco e herege, de nome Nicolau Copérnico, revolucionou a ciência ao mostrar que a Terra girava em torno do Sol. A Igreja ficou perplexa com essa teoria, pois, segundo seus teólogos, a Terra era plana, imóvel, o centro do Universo. Enquanto o Sol, esse intruso secundário, é que girava em torno da Terra. E todos ficaram giros com esse tal de Copérnico. Notem o crime contra o evangelho. A primeira edição de De Revolutionibus Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestes) só foi publicada um pouco antes da morte do astrônomo. Quando veio a público, a teoria foi rechaçada pela Igreja e banida por quase três séculos. Hoje, com a Escola Sem Partido, voltaria a ser condenada.
Na verdade, não escaparia nem a Bíblia. Ela somente poderia ser conhecida como expurgos, como, por exemplo, dos trechos pouco edificantes das filhas que embriagam o pai e o levam à cama para o sexo. Leiam que devassidão de costumes:
“Vem, demos a nosso pai vinho a beber, e deitemo-nos com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai.
Deram, pois, a seu pai vinho a beber naquela noite; e, entrando a primogênita, deitou-se com seu pai; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou.
No dia seguinte disse a primogênita à menor: Eis que eu ontem à noite me deitei com meu pai; demos-lhe vinho a beber também esta noite; e então, entrando tu, deita-te com ele, para que conservemos a descendência de nosso pai.
Tornaram, pois, a dar a seu pai vinho a beber também naquela noite; e, levantando-se a menor, deitou-se com ele; e não percebeu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou.
Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai”.
Com agravantes, pois Ló, pai e amante das filhas, era irmão de Abraão, que por sua vez casou com a prória irmã, Sara. Depois, Naor, outro irmão, se uniu à sobrinha Milca. Que fazer? Censure-se a Bíblia ! gritarão os adeptos da nova escola.
Hoje no Brasil, conservadores e fascistas, em Santa Aliança, julgam que reprimir a palavra vida consegue conter a própria vida. Isso equivale a dizer: eles imaginam que o expurgo de aulas sobre o comunismo acabará com a existência do comunismo. Ou então pensam que reduzir o amor ao papai e mamãe de antes de Cristo acabará com toda forma de amor, dos séculos passados ao futuros. O projeto da Escola sem Partido é bem uma luta desigual entre a repressão e a vida. Desde o poeta Horácio que se conhece a luz dos seus versos: “Reprime a natureza, ela voltará sem freios”. Ou de modo mais literal, “Expulsa a natureza com um forcado, que ela voltará sempre a correr”.
Nessa cruzada do obscurantismo, não sobrará nem mesmo Machado de Assis. É sério. A obra de Machado não passará de um amontoado de palavras de negação dos valores da família, porque contrária à moral mais casta de evangélicos. Se pensam que escrevo em delírio, olhem por favor a prova da febre direitista a seguir. Tudo que copio abaixo existe e está sendo divulgado – uma reavaliação porca, de extrema-direita sobre o maior escritor brasileiro:
“Pois então, chegamos ao que considero o ápice da obra machadiana e que não fora antes explorada nesse sentido de conteúdo das coisas narradas.
A partir de Dom Casmurro, romance central e divisor de águas de seu percurso literário, temos a certeza que se trata de um romance sobre o ódio que um pai sente, inexplicavelmente, pelo seu filho.
Lê-lo, para mim, é vomitivo, digno de embrulhar-me os intestinos.
Machado de Assis cria deliberadamente um romance de ódio cujo resultado final é a destruição completa da própria família….
De Dom Casmurro, o romance que narra a história de um homem que mata o próprio filho, nego-me a falar mais.
(Já) Brás Cubas passa a vida praticamente vagabundeando, trapaceando, dissimulando. Chama isso de nossa miséria. Não é uma miséria dele. Ele socializa seu maucaratismo de forma escancarada. E considera que seu único erro não fora ter usado a paternidade para passar adiante, para qualquer criatura, a sua cartilha de vícios. Poderia resumir essa frase assim: ‘fui um filho da puta, pena que não tive filhos para meter-lhes em encrencas que culpo você, leitor, pelas sucessivas ocorrências’.
Chamar Machado de Assis de autor patriótico é um escárnio”.
Amigos, chegamos a esse ponto. Os bárbaros não mais se escondem envergonhados. Não. Desfilam e gritam a sua estupidez e procuram matar pela infâmia até um escritor que nos eleva para a civilização no planeta.
Mesmo que a lei 7180/2014 ainda não esteja em vigor da sua decrepitude, professores já têm sofrido pressões. No mês passado, um mestre de história em Natal foi ameaçado de morte depois que o pai de um aluno entendeu como ataque político da esquerda uma explicação dele sobre a Lei Rouanet. Uma escola tradicional do Rio proibiu um livro que foi considerado comunista por pais de alunos (a obra “Meninos sem pátria” retrata vida de família exilada na ditadura). Professores começam a ser demitidos já.
Muitos pais da chamada classe média procuram a direção de escolas para que se demitam educadores porque a culpa dos questionamentos dos filhos é dos professores comunistas, petistas e guerrilheiros, que estariam doutrinando os adolescentes. Está visto que o câncer anunciado para os colégios se propaga em metástase para as universidades.
Panfletos distribuídos na Universidade Federal de Pernambuco vieram com ameaças a professores e alunos nesta semana. Na noite da terça-feira (6), nas redes sociais as postagens passaram a circular e chamaram a atenção, sobretudo, do eixo acadêmico e estudantil. A lista é intitulada de “Doutrinadores e alunos que serão banidos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) em 2019”. No fechamento, também é feita alusão ao presidente eleito Jair Bolsonaro: “o mito vem aí”.
Este, por enquanto, é o quadro da educação no Brasil. Escola Sem Partido? Pelo contrário, tem muito partido nela, a favor da direita, das trevas. Mas escritores, artistas, intelectuais, cientistas, educadores, alunos resistiremos. Parafraseando Machado de Assis: cada qual sabe lutar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba lutar.