Acaba de estrear em São Paulo o novo longa do cineasta cambojano Rithy Panh, “A Imagem Que Falta”. Panh é um dos diretores mais interessantes surgidos no cenário internacional nas últimas décadas. Embora tenha dirigido algumas ficções, ele tem em nos documentários seus melhores e mais fortes filmes. Esse texto é sobre seu cinema.
Nos filmes de Rithy Panh existe uma matéria central: o indivíduo. É um cinema construído sobre o homem em sua existência mínima. Uma obra que tem na gente do Camboja seu espaço central. É a partir dessa matéria que Panh desenvolve uma filmografia pautada na relação entre esse indivíduo mínimo, as asperezas da vida cotidiana, a onipresença de um genocídio vivido em escala nacional e o espaço viciado, decadente e em ruínas em que esses seres estão inseridos. Um ambiente condenado por um passado incapaz de ser superado, seja pelas atrocidades do Khmer Vermelho, seja pelas violências de uma guerra barbaresca de mais de 25 anos, mas também por uma história de miséria intransponível para uma população sem chance de existir além das amarras da condenação a uma pobreza calculada. O passado atormenta os indivíduos como espectros de uma abjeção inominável.
A violência esmaga o indivíduo mínimo. As lembranças vivas dos genocídios se relacionam no interior de cada tipo com décadas e décadas em que nada puderam fazer para escapar ao sofrimento do cotidiano sem esperanças, assim como seus antepassados diretos nada puderam fazer além de sucumbir na morte ou serem forçados a traição do resto de humanidade que ainda não lhes tinha sido subtraída.
Para milhões de cambojanos, viver de trabalhos degradantes nas cidades grandes representa a mesma condenação que está presente na vida dos que ficaram nos campos. O indivíduo no cinema de Rithy Panh é um condenado. Cada homem, cada mulher no Camboja é antes de tudo uma vítima, um derrotado mesmo sem ter tentado nada, sem ter tido sequer a opção de fazer uma mínima escolha.
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Existe um eixo que perpassa a obra de Panh: o conflito entre indivíduos e espaços que carregam as marcas do tempo. Como se todo o tempo passado, o tempo vivido (e sofrido) se refletisse nos rostos, nos corpos e nas almas dos personagens, ao mesmo tempo em que está impresso nos ambientes em que eles vivem. Não existe uma só figura humana no cinema de Panh que não esteja oprimida pelo peso do horror. Horror que deixou marcas também nos prédios em ruínas, nas construções degradadas, nos cortiços imundos, nas ruas sujas e nos campos que não oferecem nada além do que mais condenação.
Os milhões de mortos pelo Khmer Vermelho, pela guerra civil, pela fome, pela miséria, pela violência das cidades e dos campos estão presentes a na vida dos que sobraram. Ter sobrevivido obriga o indivíduo de Rithy Panh a um cotidiano de resignação. Os breves momentos em que a esperança passa pela cabeça de um personagem, ela logo leva a uma violência punidora, como se num ambiente como o Camboja ousar ter esperança fosse uma sentença de condenação física e emocional.
Esse peso faz do cinema de Panh uma obra em que a tristeza está impregnada em cada fotograma. Não se trata aqui apenas da melancolia, tão presente no cinema asiático contemporâneo. Melancolia pode ser vista como um luxo para os seres que não conhecem nada além da dor.
Um dos grandes méritos de Rithy Panh é abordar toda a dor de seus personagens mínimos e dela tirar um respeito profundo por cada indivíduo que aparece em seus filmes. A construção de seus personagens é concebida a partir de uma relação sincera com tudo aquilo que o diretor quer retratar. Os homens e mulheres em seus filmes são fruto de um olhar humano desprovido de preconceitos e julgamentos. Essa ternura com que Panh retrata seus indivíduos mínimos reflete na construção das cenas, nos dramas que ele recria com naturalidade espontânea. Existe uma relação entre pessoas e espaços. Entre tipos humanos e ambientes. Relação essa que só é possível pelo tratamento impecável do tempo (e as sobreposições desse tempo) em seus longas.
Os indivíduos mínimos nos filmes de Rithy Panh
Os indivíduos mínimos, essa matéria fílmica do seu cinema, aparecem o tempo todo em cada um de seus filmes. Quem são eles?
São todos, ao mesmo tempo em que são únicos. Cada um, em sua pequenez diante de um emaranhado de gente que se desloca sem destino certo, carrega um pedaço da história de um lugar condenado. Cada drama individual é um naco no registro em aberto dessa história.
Em “S-21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho” (2003), esses indivíduos são ex-soldados do Khmer Vermelho que recriam e interpretam em detalhes, anos depois, seus atos mais cruéis, seus assassinatos cometidos, as torturas que impuseram a seus conterrâneos sem terem a menor ideia do porquê estavam cometendo tais atos. No mesmo filme, esses indivíduos são os torturados, os prisioneiros desses outros. Não existem julgamentos, maniqueísmos, apenas a constatação de um horror indescritível em que o indivíduo mínimo era o agente e a vítima, em que todos sentem culpa por todos, em que todos sofrem e explicação nenhuma pode dar conta.
Na ficção “Condenados à Esperança”/ Rice People (1994), esses indivíduos são camponeses, sobreviventes do regime do Khmer que enfrentam uma vida de trabalho físico que não pode lhes dar nada além do sustento mínimo. São homens, mulheres e crianças em constante conflito com a natureza e que carregam o horror vivido e, mais cedo ou mais tarde, cedem a um estado de loucura inevitável. Os fantasmas da pobreza, da guerra e do genocídio rondam o arrozal em que esperam pelo destino.
Em outra ficção, “Uma Noite após a Guerra” (1998), os indivíduos são jovens soldados que foram jogados de volta a uma vida sem sentido na cidade grande, na metrópole miserável que tenta se recuperar de décadas de horror e morte. São adolescentes que foram vendidas para a prostituição por famílias de camponeses miseráveis. São infelizes que por vezes caem no erro de desejarem viver um amor, mesmo sabendo que isso é impossível para indivíduos mínimos condenados à servidão e à miséria de um país no quintal do mercado livre mundial.
Em “Atores do Teatro Queimado” (2005), existem indivíduos que habitam um teatro em ruínas, indivíduos que são atores, artistas sem plateia. Pessoas que trazem, cada um, histórias de resignação, morte e distanciamento forçado daqueles que amam.
No excepcional “Papel não Embrulha Brasas” (2007), os indivíduos mínimos são prostitutas que moram em um cortiço em ruínas e que trabalham em regime de semi-escravidão vendendo seus corpos e se expondo às mais diversas formas de violência física e emocional.
Em cada um de seus longas, esses indivíduos mínimos estão presentes. Sejam como protagonistas, sejam como coadjuvantes ou até mesmo meros figurantes. Eles surgem em primeiro plano ao mesmo tempo em que passam em plano de fundo. Estão em cada canto do que está no quadro, mas são ainda mais numerosos no que Panh deixa fora de plano.
A grande potência de seus filmes está ligada a um cuidado constante em evitar sentimentalismos desnecessários. Trata-se de um realizador que não poupa em nada seu espectador dos mais profundos sofrimentos humanos, que não disfarça dores, que não omite fatos bárbaros e que não mascara a realidade condenatória de seus tipos. Mas a grandeza de Rithy Panh está em fazer isso sem em nenhum momento escorregar em apelações sentimentalistas. O cinema de Rithy Panh flui no registro da sinceridade daquilo que ele encena.
O quadro nas cenas de seus filmes é composto rigorosamente em função do que é encenado. Seja na profundidade de campo que opõem duas ações ou tipos em diferentes registros, seja na relação dos indivíduos entre si ou com os espaços em que estão inseridos. A duração dos planos é precisa. A câmera se move, fica estática ou acompanha os tipos e registra os ambientes pelo tempo necessário para a reflexão, sempre em função de que o discurso interno de cada cena seja completado antes do próximo corte. O tempo de seus planos é muito mais sentido do que percebido.
Os indivíduos mínimos de Rithy Panh não são nada além de fantasmas, de cambojanos condenados por terem sobrevivido ao genocídio e à guerra, condenados a ainda sobreviver ao horror e a miséria e a levar adiante, como agentes insignificantes da história, todo o infortúnio de um mundo que teima em continuar existindo. Rithy Panh é o documentarista dessa gente.
Assista ao trailer de seu último filme “A imagem que falta”